HÁ SEMPRE UM LIVRO...à nossa espera!

Blog sobre todos os livros que eu conseguir ler! Aqui, podem procurar um livro, ler a minha opinião ou, se quiserem, deixar apenas a vossa opinião sobre algum destes livros que já tenham lido. Podem, simplesmente, sugerir um livro para que eu o leia! Fico à espera das V. sugestões e comentários! Agradeço a V. estimada visita. Boas leituras!

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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Wednesday, March 30, 2005

"O Evangelho das Rãs" de Luísa Monteiro (Quasi)



Neste romance, Luísa Monteiro fala-nos do amor como a forma mais elevada de utopia, sobretudo, quando este é sinónimo de transgressão.


No amor nada é racional. E porque esse mesmo amor “é um pássaro rebelde” - como afirmava a efervescente Carmen, ao som da provocante melodia de Bizet -, não pode caber dentro do espaço limitado do socialmente correcto.

É por isso que a transgressão está presente desde o início até ao fim da obra, pela mão dos dois protagonistas do romance – Marcos e Vitória – cujas trajectórias de vida encontram, respectivamente, um paralelismo com as vidas de Óscar Wilde e Virgínia Woolf, personagem à qual a Autora dedica a obra.

A trama desenrola-se ao longo de três momentos que implicam uma mudança quanto à localização espácio-temporal.

Na primeira parte, intitulada de “A aldeia”, a acção decorre numa pequena povoação algarvia durante o período do Estado-Novo. A Autora começa por, logo no início, atirar a primeira pedrada no charco: o protagonista masculino, o jovem pároco Marcos, arde numa paixão desesperada por uma criatura selvagem, etérea, lembrando a bravia deusa Diana, uma mistura de fada e duende que brinca com as emoções dos comuns mortais e que parece concentrar em si o fogo verde da vida.

Sendo de origem judia, a pequena feiticeira dos bosques, que atende pelo nome de Violeta é, por isso mesmo, extremamente difícil de aprisionar no redil de ovelhas do pároco. Que, para saciar a paixão animal não correspondida, passa o tempo a seduzir as jovens adolescentes, por vezes ainda impúberes, que gravitam à volta da sua paróquia e que lhe são confiadas pelos pais.

A agreste Violeta desperta, também, a atenção da ultra-sensível Vitória, a poeta (oriunda de uma família burguesa ligada à maçonaria), cujo olhar negro é, fatalmente, aprisionado no bosque verde-esmeralda do olhar de Violeta.

As personagens femininas que gravitam à volta dos dois protagonistas são fascinantes, pela extrema fragilidade emocional e solidão que delas emana. As excepções são, obviamente, Violeta - pela sua aparente volubilidade - e Gertrudes, com o seu ar maternal e o seu afecto quente e doce como pão a sair do forno. Os seus voluptuosos e requintados cozinhados fazem lembrar Tita, a personagem do romance de Laura Esquível intitulado “Como água para Chocolate”.

Após as eleições de 1953, o pároco, até aí ultra-conservador, começa, gradual e imperceptivelmente a interiorizar ideias revolucionárias…

Vitória também não consegue adaptar-se ao mundo claustrofóbico da aldeia…

…e refugia-se no seu próprio mundo durante sete anos.


O inconformismo de ambos obriga-os à procura de novos horizontes…

Na segunda parte intitulada de “A Cidade” (a utopia do tempo), assistimos a um desconcertante volte-face nas vidas de Marcos e Vitória cujos caminhos se cruzam, por um momento, passando depois a divergir, de uma forma irreversível.

Marcos largou o hábito, esqueceu Violeta, abraçou ideias revolucionárias, transformou por completo a sua sexualidade, casou com Vitória cuja personalidade, entretanto desabrochou juntamente com o talento e a vida social, despertando a sua figura andrógina o interesse do ex-padre.

Mas para ambos, os interesses e ambições são opostos, bem como a visão e expressão dos afectos, sendo o casamento apenas a máscara que esconde os verdadeiros desejos de ambos tal qual a face oculta da Lua.

No terceiro momento da narrativa, intitulado de “O Solar (A utopia da História)” ocorre mais uma reviravolta na vida de um e abate-se a fatalidade na existência de outro…

Luísa Monteiro habituou-nos, já, a uma escrita de grande riqueza estilística, mas anti-convencional, de carácter associacionista, recheada de conexões, trocadilhos linguísticos e filosóficos, que conferem a alguns trechos um ritmo e musicalidade extremamente cativantes, uma sonoridade envolvente, remetendo, ao mesmo tempo para uma pluralidade quase infinita de significações. Um exemplo é o simbolismo das rãs (pps 36 e 37) a significar o umbilicalismo do gineceu – espaço feminino por excelência -; ou a parábola do anãozinho e da rosa contada pela “rã-matriarca”, a ama Gertrudes.

As vidas de Marcos e Vitória têm, de certa forma, alguma semelhança com as de Óscar Wilde e Virgínia Woolf. O primeiro, pela necessidade de ocultar da sociedade os impulsos da líbido, a segunda, pela necessidade imperiosa de se libertar das amarras dessa mesma sociedade para exprimir livremente a sua forma e necessidade de amar e ser correspondida – a sua última e maior utopia.

Para Vitória, libertar-se das raízes que a amarram à terra e partir mar adentro, em direcção à liberdade, enfrentando as ondas cruéis, o frio, o gelo da morte, torna-se inevitável…Tal como para Virgínia…O Destino espera-as a 11 de Outubro com um abismo de 73 anos…

Duas flores que se incendiaram na água, e que a Autora aproxima, num romance que faz lembrar Arundhati Roy e o seu “o deus das pequenas coisas” pelo constante questionar de tabus acerca de “quem deve ser amado. E quanto. E como.”(sic)

Um livro desconcertante pela beleza das palavras.

Um poço de angústia expresso no coaxar das rãs.

Um grito no silêncio, quebrado pelo marulhar das ondas.


Cláudia de Sousa Dias

Friday, March 25, 2005

"O Código DaVinci" de Dan Brown (Bertrand)


Um misterioso assassínio ocorre diante de um quadro de Caravaggio, numa das mais visitadas galerias do Louvre. O conservador do museu é encontrado morto nas circunstâncias mais peculiares.

Nu, colocado na posição do Homem de Vitrúvio, uma das mais conhecidas obras de Leonardo DaVinci, com um pentáculo desenhado no ventre, a vítima deixa uma série de pistas codificadas a marca d’água. À sua volta, e nas obras do antigo Grão-Mestre do Priorado do Sião, uma verdadeira trilha de enigmas a serem decifrados pelo Professor Robert Langdon, simbologista de Harvard e pela criptóloga Sophie Neveu. Os dois seguem o rasto do misterioso e espectral assassino e descobrem algo impensável: um tesouro de sabedoria envolto num ninho de víboras…

Um ano após o lançamento deste best-seller em Portugal, parece, à primeira vista, já nada haver mais a dizer sobra a obra.

No entanto, esta trama, brilhantemente urdida, onde os acontecimentos se sucedem em catadupa num tempo narrativo de 24 horas, obriga o leitor a agarrar-se avidamente às páginas do livro que quase se viram por si próprias.

O livro é uma caixinha de surpresas. Um verdadeiro labirinto de Creta povoado de enigmas por decifrar que mostram, por etapas, o caminho a seguir. Um labirinto onde espreita um Minotauro, sob a forma de um membro fanático da Opus Dei - Silas, o monge psicopata.

Que, apesar de tudo, nada mais é do que um mero testa de ferro do verdadeiro assassino, que se esconde na sombra…

E é este o verdadeiro ponto de polémica no livro de Brown: o Autor critica, de forma extremamente contundente, a organização, chama a atenção para a prática de castigos corporais por parte de alguns dos seus membros, para a subalternização das mulheres que fazem parte da organização, para as técnicas consideradas agressivas no que toca à angariação de fiéis (insinuando a utilização de processos de lavagem cerebral), para a cobrança do dízimo, para a sua fulgurante ascensão económica. Define a Opus Dei como “uma seita religiosa de cariz católico”, a ala mais conservadora do catolicismo, defendendo os seus valores mais tradicionais. Iliba, contudo, de uma forma extremamente inteligente, a organização dos crimes perpetrados no romance.

O que sobressai no romance de Dan Brown, e que tem vindo a ser objecto de estudo e dissecação por parte dos seus principais detractores, é nada mais nada menos do que uma visão antropocêntrica dos Evangelhos. Que tem as suas raízes no Iluminismo cuja ideia-chave pretende transmitir que “A Bíblia não foi enviada do céu por fax”, “...é obra do homem e não de Deus” e “...a história oficial nada mais é do que o ponto de vista dos vencedores, quando há um choque entre duas facções diferentes, sejam elas duas culturas duas classes sociais, duas religiões, etc”…

Mais uma pedrada no charco e uma verdadeira provocação ao Vaticano, na medida em que uma das personagens principais do livro afirma que Cristo delegou em Maria Madalena e não em Pedro a responsabilidade de fundar a sua Igreja…o que não foi muito bem aceite pelos seus discípulos (já é do conhecimento geral a ginofobia inerente à religião judaica…).

No entanto, o que são factos e o que é ficção?

A tese do casamento entre Jesus e Maria Madalena é baseada em textos apócrifos censurados no Concílio de Niceia pelo Imperador Constantino, dos quais sobreviveram alguns exemplares, encontrados recentemente num mosteiro copta. O objectivo de Constantino seria o de unificar o Império, instituindo um deus absoluto incarnado num homem que fizesse desta forma a ponte entre o humano e o divino. Isto implicaria a destruição do seu lado humano…

Trata-se de uma tese que já foi divulgada em romances anteriormente publicados como ”O Pêndulo de Foucault” de Umberto Eco e “Jesus na Fogueira” de Catherine Clément, que contudo não atacaram a pedra basilar do Vaticano, isto é, a anti-tese daquilo que foi dito antes, ou seja, que Cristo delegou em Pedro a responsabilidade da fundação da sua Igreja.

Por outro lado, o facto de Cristo ter ou não deixado uma linhagem que, a partir de Maria Madalena, se fundiu com a dos reis Merovíngios é uma hipótese que, até à data, não tem elementos sólidos que a confirmem.

Convém, não esquecer que o Código DaVinci é, antes de mais, um romance policial genialmente construído, embora com um final que, ao aproximarmo-nos das últimas páginas, se adivinha um pouco previsível. É um estimulante exercício mental que permite a desconstrução de mitos que nos são inculcados desde a infância, obrigando-nos a considerar a possibilidade de verdades alternativas.

Um livro herético, audaz.

Uma trombeta que anuncia o despertar de uma nova era?


Cláudia deSousa Dias

Wednesday, March 23, 2005

"Meia-Noite ou o Princípio do Mundo" de Richard Zimler (Gótica)




“Meia-Noite” é o mais recente romance de Richard Zimler, autor do best-seller intitulado “O Último Cabalista de Lisboa”.

Desta vez, a acção passa-se no Porto, no início do séc. XIX e conta a história de um rapazinho herdeiro de duas culturas cujos valores chocam frontalmente com os principais traços culturais que constituem a base da mentalidade portuguesa. Filho de pai escocês, John Zarco Stewart é alguém cujo liberalismo e espírito empreendedor colidem com a, então, ultra-conservadora mentalidade portuguesa. Para não falar da herança judia por parte da mãe, cuja fé tem de ser exercida no mais absoluto segredo, porque apesar de a Inquisição já não ter o mesmo poder de outrora (só foi oficialmente extinta em 1921), a segregação social de todos aqueles que pratiquem uma fé distinta é fortíssima e as retaliações sociais para os heréticos são de uma eficácia atroz.

Zimler exibe a sua mestria narrativa começando por contar a história do ponto de vista de um rapazinho de sete anos que encontra uma carta de amor, perdida entre as páginas de um livro numa biblioteca. O conteúdo da carta emociona-o de tal forma que a procura do amor absoluto, completo vai ser a sua ambição maior ao longo de toda a vida, marcando a linha do seu Destino. John Zarco Stewart vai ser um homem de afectos, coleccionando-os, como se de tesouros se tratassem. Daniel e Violeta (o amigo e o amor da infância), os pais (o amor absoluto e incondicional) e, claro, o curandeiro africano Meia-Noite o maior de todos os pilares afectivos que sustentam a vida de John, sem contar com Francisca (aquela que virá a ser a sua esposa) e as filhas.

É Meia-Noite quem coloca John em contacto com as crenças animistas africanas cujas lendas acerca da criação do mundo lhe ensinam o respeito pela Natureza, o equilíbrio entre os elementos, a alternância entre o bem e o mal, entre o tempo do Louva-a-deus e o tempo da Hiena.

E é Meia-Noite quem lhe ensina a enfrentar os próprios medos, a rugir para afugentar a Hiena (pois “quem persegue o mal persegue-o até à morte”), a lidar com a dor da perda durante o Tempo da Hiena. Meia-Noite é a pedra-base para a construção da personalidade de John, tornando-o capaz de amar qualquer ser humano por inteiro, independentemente da cor da pele.

Ao longo da obra verificamos o crescimento interior de John, a formação do seu carácter, pela voz de quem Zimler descreve, com a precisão cinematográfica já presente em “O último Cabalista de Lisboa” , a cidade do Porto, com as suas vielas escuras, tortuosas, com toda a sua beleza e mistério, o mercado e os seus cheiros, ruídos e gentes.

Zimler, um americano naturalizado português, dotado de um apuradíssimo poder de observação e enorme sensibilidade, descreve, com pormenores de um realismo angustiante, situações de perigo eminente ou mesmo de violência física, psicológica e até sexual dirigida às crianças durante as deambulações de John Zarco Stewart pelos bairros mais pobres do Porto, com Daniel e Violeta. A chamada de atenção para a fragilidade a que, por vezes, as crianças são expostas, pela indiferença dos adultos para com os sinais de perigo é de tal ordem que quase que podemos visualizar a cena impregnada de um suspense em crescendum que obriga a um virar de páginas compulsivo.

O Autor foca, também, a problemática do assédio sexual, a questão da infidelidade e a necessidade de autonomia e independência da mulher, bem como a forma como essa necessidade é encarada com desconfiança pela população em geral, colocando numa posição extremamente vulnerável qualquer figura feminina que tente, de alguma forma, destacar-se em alguma área.

Por outro lado, a simplicidade da cultura dos boxímanes (a tribo de Meia-Noite) contrasta fortemente com a desconfiança e arrogância quer dos portugueses quer dos americanos quanto à forma como vêem os negros.

Na segunda parte do romance, passada nos Estados Unidos, John prossegue a sua demanda dos afectos perdidos durante o Tempo da Hiena. Nesta fase do romance Zimler alterna as vozes narrativas de Stewart, já adulto, que se tornou um humanista liberal, com a voz de Memória, filha de Meia-Noite, cujo nome serve para recordar as suas origens no Continente Africano (para Meia-Noite África é memória). Memória relata o clima insuportável de uma plantação de algodão na Carolina do Sul e a opressão a que os negros são sujeitos mesmo às portas da Guerra Civil Americana, após a qual o tratamento igualitário entre brancos e negros está longe de constituir uma realidade.

Ao longo de todo o livro, está presente a simbologia do pássaro ou o ser alado que sobrevoa os diferentes continentes e vê a humanidade como um todo. No início da história, os pássaros aprisionados no mercado do Porto causam uma profunda impressão em John. Tal como a pena branca do pássaro da felicidade, amuleto com o qual Meia-Noite presenteia John na infância e que o acompanha na sua viagem à procura da felicidade perdida, durante o Tempo da Hiena. A mesma pena que é o símbolo do livro e que marca o início de cada capítulo.

A figura alada faz, também, parte da capa, retirada de uma gravura de Albrecht Dürer, representando um gaio azul, juntamente com o esboço de uma caravela.

O mar e os céus como duas extensões de azul a unirem a terra e os homens.

Um romance histórico-épico que une dois continentes e três culturas.

Uma obra prima.

Ímpar.



Cláudia de Sousa Dias

Monday, March 14, 2005

"O Tamanho do Mundo" de Helena Malheiro (Oficina do Livro)


“As vozes que percorrem estes textos esvaziam o mundo (…) porque procuram nele outras esferas. Essa alternativa é revestida de beleza, perfeição e unidade”. Eunice Cabral in “Público”


“O Tamanho do Mundo”é uma colectânea de quinze mini-contos, com um denominador comum: o espaço onde se movimentam as personagens situa-se para além da fronteira da realidade, do tempo presente, explorando outras dimensões do consciente humano.

Dédalo, o protagonista do primeiro conto, é um criador, um inventor de outros mundos; um arquitecto-escritor, que traça o rumo, o caminho das personagens que transitam entre os mundos por ele construídos…

Dédalo é um construtor/desconstrutor de personalidades, ora moldando-as, ora desenquadrando-as dos seus limites permitindo-lhes circular livremente num espaço onírico, sem os limites impostos pela lógica do quotidiano.

A prosa é extremamente rica, o estilo é poético, dolorosamente belo, já que a temática central são as feridas da alma, como podemos adivinhar pelas escolhas das duas maravilhosas epígrafes da autoria de Rimbaud e David Mourão-Ferreira, à laia de introdução.

O mundo de Helena Malheiro está impregnado de beleza, de saudade e esperança, embora os seus limites transcendam por completo o imaginário banal.

Trata-se de um mundo cujo eixo foi descentrado e que, por isso, surpreende o leitor a cada minuto. Este é, constantemente, obrigado a sair do seu “quadrado”, ou seja a abandonar a sua lógica habitual.

São contos onde prevalece o arracional e, por isso, transmitem a sensação de estarmos a percorrer um labirinto de espelhos, na tentativa de descortinarmos quais são as imagens “verdadeiras” e quais são as “falsas”.

É um livro narrado a várias vozes. Dédalo, o deus-criador, e as suas personagens permitem-nos destrinçar as dimensões do quotidiano onde estas se movem. É através do seu monólogo interior que nos apercebemos dos diferentes pontos de vista entre elas, as cognições, a forma de perceber, interpretar e sentir o que as rodeia, o que as une e separa, o significado que atribuem às coisas e às situações.

Dédalo é a projecção da personalidade da Autora, no momento em que procede ao acto de criar, na sujeição à situação de tensão pela necessidade auto-imposta de produzir uma obra perfeita, exaustiva que não deixe nada por dizer. Por isso, o texto de Helena Malheiro é tão compacto, tão denso.

Dédalo, o criador, que escreveu durante sete dias sem parar, até sucumbir à exaustão, abandona o seu mundo, perfeitamente ordenado, passando então a espelhar as desordens emocionais das suas personagens, à semelhança do caos no seu escritório após a obra acabada. Por último decide, ele próprio, espelhar-se nas suas próprias personagens assumindo-se tão imperfeito como a sua criação.

A história que se segue, “Ela”, é uma alegoria que fala da Felicidade ou da Alegria, transfigurada em forma de mulher. “Ela” é omnipresente na infância, mas, na vida adulta, só está presente quando acompanhada pelo amor. Porque um e outro são inseparáveis, caminham pela vida de mãos dadas. Com a dor da ausência, resta a Esperança, como o fio último que liga à vida antes de ser cortado pelas Parcas.

Segue-se “O Tamanho do Mundo”, a história de uma viagem interminável e infinda, de dois residentes num palácio italiano que, para os seus minúsculos habitantes, possui o tamanho do mundo inteiro. Estamos, obviamente em presença de dois seres cuja visão da realidade transpõe os limites de uma construção arquitectónica à qual estão fisicamente confinados mas que, através da visualização, se transportam para lá dos muros onde habitam (ver capa).

“Invenção” é mais um conto onde participa a personagem Nuno presente em “Dédalo”. Aqui ficamos a saber um pouco mais acerca da sua vida dupla, que se reflecte na (des)estabilidade emocional da sua companheira. São peças que vão completar (ou complicar ainda mais) o já intrigante quebra-cabeças que é o retrato desta personagem. Este é um casal onde a paixão está já ausente e onde os muros entre os dois impõem a sua presença de uma forma cada vez mais opressiva levando-os a refugiarem-se no seu próprio mundo e a adquirirem formas de reagir cada vez mais próximas da esquizofrenia. Um ciúme obsessivo, sufocante, aliado ao sentimento de exclusão dos projectos profissionais do ser amado. E, por outro lado, a realidade simétrica, inversa como que do outro lado de um espelho, a inversão de papéis, da percepção. Como se de uma ilusão de óptica se tratasse e, através da segregação de fundo, as coisas tomassem uma forma completamente diferente - como afirmam os teóricos da Psicologia da Gestalt. O conto não é mais do que a descrição do processo de projecção dos próprios sentimentos no outro, como mecanismo de defesa do ego.

“A Quinta Velocidade” é uma viagem que efectuamos ao volante de um Alfa Romeo, atravessando a Europa Central numa corrida louca onde ocorre, literalmente, a fusão completa entre homem e máquina, numa simbiose perfeita atravessando, pela eternidade, a fronteira entre os mundos.

“O Outro lado” mostra como as variações da intensidade da luz alteram a perspectiva (a forma como percebemos o real), bem como o nosso estado anímico. É o olhar do vigilante do museu que se apercebe de todas estas nuances ao longo do dia…Até reparar num detalhe que nunca lá tinha estado antes…Um crime na tela…Um aviso? Um presságio?

“Tarantelle” é a magia da dança em Florença, cuja protagonista tem muito a ver com Dédalo do primeiro conto (como aliás todas elas uma vez que todas são desdobramentos do labiríntico Dédalo) pela omnisciência relativamente à situação de todas as outras personagens. A dança é a fuga à realidade de um relacionamento desgastado, desfeito, simbolizada pela imagem da “torre demasiado inclinada” presente no postal do companheiro. A angústia está, pelo contrário, patente pela constante referência à cor amarela associada ao adjectivo “pesado”. A indiferença pesa nesse mesmo relacionamento, acentuada pelo imobilismo e pelas expressões vazias das estátuas na torre do Palazzo Vecchio, na cidade onde se encontra. A beleza intemporal de um passado idílico está implícita na referência à estátua de David de Miguel Ângelo - “…o olhar de David de Miguel Ângelo, brancura de mármore a rasgar a noite e o tempo” - , fazendo pensar tratar-se da recordação do objecto amado.

“Espelhos” é um intrincado triângulo amoroso em que os dois vértices da base são, provavelmente o desdobramento da mesma personalidade sendo o conto uma parábola que fala da necessidade de aceitação do amante por inteiro, amando mesmo as suas limitações.

“O Grande livro do acaso”é um conto que explora, tal como o título indica a relação entre acaso e determinismo. Este conto tenta mostrar como todos os nossos actos são previamente previstos e determinados por uma entidade superior, uma élite ou comunidade detentora de conhecimento absoluto e sabedoria infinita, usando, para o efeito, um argumento lógico que faz lembrar um pouco o “Fédon” de Platão. Aliás, toda a obra é de cariz nitidamente platónico, pela distinção entre o mundo real e o supra-real.

Facto que observamos perfeitamente em “Luas Pretas” onde temos, mais uma vez, o supra-real, povoado de seres perfeitos, um mundo ideal onde impera o Belo, a Arte e o Sublime, o mundo dos “numes”. Por outro lado, o mundo real, onde a lua é branca, é o mundo imperfeito, onde as pessoas sentem necessidade de se camuflarem, de se confundirem com a maioria, sob pena de serem excluídas, eliminadas, pela não aceitação da diferença.

“Loto” apresenta, novamente, a temática do binómio acaso/determinismo e da procura da fórmula da sorte, seja ela no jogo ou no amor…


“Yptagor ou o Segredo” fala de uma descida aos infernos, a um mundo subterrâneo onde se pretende que a doença da Guerra, que tem origem no vírus do Poder, esteja enterrada. Yptagor é um arqueólogo vindo, tal como Ulisses e Orfeu, da Hélade e que trabalha na descoberta de mundos passados, em colaboração com Luapa (anagrama de Paula, irmã da Autora). Juntos vão trabalhar de forma a manter a Guerra encerrada no seu túmulo intemporal, já que esta não faz falta aos humanos, atrasando consideravelmente a sua evolução. A limpidez e profundidade do olhar verde de Yptagor, simbolizam aqui, a esperança e a redenção da humanidade.

Em “A Noite”, o feitiço da noite simboliza o sonho, a paixão intensa e fugaz, “…a magia da noite é triste e enganadora”, mas cuja recordação é indelével – “És noite nunca apagada”. O fogo verde de um olhar que não se apaga. Um conto que fala de saudade.

“Á procura do Sol” é uma parábola na qual o sol é sinónimo de alegria e bem estar, que influencia o estado anímico, tal como o amor. Morre-se de frio no Inverno sazonal e morre-se de amor no Inverno dos afectos. Para a personagem Lynn, o amor é sempre tão fugaz como o sol de Inverno; “…o Vento gelado que vem do Norte” significa a ausência, o abandono, o esfriar da paixão.

A cura é longa. O Verão vai demorar muito a chegar. A mágoa vai demorar muito a desaparecer. Porque é sempre difícil partir, romper com o passado.

Em “Itinerários”, o narrador dialoga consigo próprio como se diante de um espelho encontrasse o seu alter-ego. Alguém tenta entrar na sua esfera, mas ele fecha-se no seu próprio mundo. Trata-se de um “eu” fragmentado, como Dédalo, que se refugia na própria solidão,

O livro termina com o criador dos mundos imaginários a fechar o seu próprio livro, que é uma gaveta da sua própria mente, um ego que se desdobra em muitos outros, cada qual uma esfera que contém em si várias outras à semelhança de uma “matrioska” ou aquilo a que, clinicamente, se atribui a designação de múltipla personalidade.

Um livro, de certa forma, transgressor onde a arte de criar expande as suas raízes, quebrando limites.

Um verdadeiro psico-puzzle.




Cláudia de Sousa Dias

Wednesday, March 09, 2005

"Aclive" de Marta Duque Vaz

O livro da adololescência de Marta Duque Vaz, um riquissímo mundo interior povoado de afectos, nostalgia e muita criatividade

Olhando para a capa de “Aclive”, da autoria de Francisco Dinis, que dá rosto ao “poemário” de Marta Duque Vaz, vemos um declive acentuado que parece ser o precipício de um pico situado algures na cordilheira dos Himalaias, com as agulhas dos seus cumes mais altos a perfurar as nuvens.

Mas ao invertermos a capa vemos um “aclive”, isto é, pelo processo de segregação de fundo, a nossa vista realça-nos, através de uma ilusão de óptica, o branco gélido de um iceberg realçado por um céu de um negro opaco numa noite polar sem lua nem estrelas.

A capa está, por isso, ligada ao poema cuja temática dá o nome ao livro - “Noite sem poesia” - , do qual falaremos mais adiante.

Marta Duque Vaz ofereceu-me o seu “poemário” da adolescência e início de uma vida adulta (uma colectânea elaborada entre os catorze e os vinte anos), que exibem a turbulência de emoções em alguém que está a sofrer as “dores do crescimento” e vive o conflito gerado a partir da luta pela independência, pela autonomia, sofrendo, por vezes, decepções.

O primeiro poema intitulado “Depois” é, segundo a Autora, como que um aviso no qual, ela adverte os seus leitores de que o que está contido nos poemas de “Aclive” são apenas as palavras que traduzem uma forma de sentir que já passou, isto é, trata-se de uma recordação de algo que já foi sentido e, por isso mesmo, transfigurado pela memória (que é selectiva) e trabalhado pela beleza das palavras, como esclarece no poema seguinte intitulado “Noção”.

A Autora prossegue a sua catarsis em “incerteza” onde, através da escrita, mostra a dificuldade em acrescentar algo relativamente a tudo o quanto já foi dito acerca da forma de transpor as emoções para o papel em formato de poesia. São contudo, as últimas duas quadras deste poema que, por si só, contém toda a alma do mesmo, começando já a revelar o interior da Poeta e a ilustrar a necessidade de fazer uma reengenharia emocional, de fechar um ciclo e recomeçar uma nova etapa da vida.

“Quarto” mostra a sensibilidade então tipicamente adolescente da Autora, refugiada no seu próprio mundo de cuja janela tenta compreender o exterior – aproveito, aqui, para salientar a qualidade dos quatro primeiros versos e dos dois últimos do mesmo poema. Observamos a mesma necessidade de refúgio num mundo interior em “Noctívaga”.

A poesia está, também, presente na alma do poema “Cinderela sem Vocação”, apesar da sua naïfté, mais uma vez a temática da conquista da autonomia - poema no qual se destacam alguns versos de particular beleza, embora, algumas das comparações utilizadas ganhassem, provavelmente, mais “força” se convertidas em metáforas.

Do poema “sentir”, destaca-se a segunda quadra que contém o essencial do mesmo.

“Deixa-me ser” exprime a ânsia de liberdade, seguindo-se “Desconhecer” com destaque para a última estrofe. Depois chega-nos o “Poeta”, um dos mais belos da obra, juntamente com “Calma ou Insónia”, quadro que revela a sensualidade secreta da Autora e que transparece, também, em “Reparo” – pormenor de grande sensibilidade -, depois um “Momento” de trocadilhos que exprimem a fluidez temporal da existência humana e um sonho de felicidade intocada pela crueza da realidade em “Monte Some”.

Em “Canto” temos, mais uma vez, os transtornos emocionais da adolescência, o sonho de felicidade ideal em “Sempre assim” e a felicidade adiada em “Espera”, uma limitação imposta pela impossibilidade temporária de liberdade de escolha.

Espreita, de seguida, a volúpia em “Delícia”, expressa, numa forma mais sublimada, em “Lúcida”, misturada com a nostalgia do passado.

Em “Barco de Barro”, vemos uma divagação sobre o sonho de liberdade combinada com o desejo de regressar sempre a um porto de abrigo, um apego às raízes num texto em formato de prosa. A escrita é extremamente naïf embora, revele já todo o potencial criativo de Marta Duque Vaz e a sua grande sensibilidade.

O sentimento de saudade antecipada impõe-se em “Vou Ficar” e em “Primeiras Folhas”. Estes dois poemas ilustram o final de uma adolescência idílica, povoada de sonhos - que se reflecte no verso “O verão que se despede na esplanada” - , juntamente com a tomada de consciência da realidade “ao cair das primeiras folhas”.

Assistimos a uma partida ou separação expostas na nudez de uma “Verdade” de grande significado polissémico e à nostalgia dolorosa de um tempo passado em “Rever”.

Passamos, em seguida, à desilusão em “Entardecer”, que traduz a ânsia desesperada por um novo dia, pelo encerramento de um ciclo e começo de uma nova etapa de esperança. A noite traz, exactamente, a esperança de um novo dia com a promessa de uma felicidade renascida, tal como acontece com a Primavera.

“Cartas e Quadros” é um recordar dos momentos perfeitos, aprisionados, cristalizados no tempo.

Temos, também, o medo da perda em “Inconsciência”, pela sensação de que tudo na vida é efémero.

“Abetum” mostra um ser solitário à espera de um rumo, à sua frente, um leque infinito de possibilidades.

N’ ”As mãos de Vargas” a poesia faz o elogio à arte e à destreza das mãos do artista.

Mais uma vez, a presença da nostalgia de um sonho desfeito em “Praia de Areia Preta”.


Com “Distância”, estamos, novamente, em presença da dor da perda, a consciência da irreversibilidade da morte. Na paisagem descrita em “De Longe”, um poema povoado de vivências de um passado que não conhece em primeira mão, mas que imprimiu a sua marca. São dois poemas que falam da temática que dá título ao livro. Mas é em “Noite sem poesia” que a dor da perda se manifesta em toda a sua dimensão, reflectindo-se nos objectos, nas pessoas, nos rituais, no vestuário mas, sobretudo, na casa e no próprio clima expresso no verso “Quando Novembro entrou comigo”. Novembro anuncia a chegada do Inverno e o final dos dias amenos do Verão de S. Martinho. Novembro traz consigo o frio, o gelo das geadas e das neves, sinónimo de morte; e a noite sem lua nem estrelas - sem poesia - significa a desolação, a morte da alma e da alegria. Sem dúvida, um dos melhores, se não mesmo o melhor dos poemas de toda a colectânea.

Segue-se “Uma data” fundamental na vida da Autora exprimindo um afecto pleno, total, indelével.

“Por dentro” é mais um poema nocturno em que a beleza da noite se manifesta em todo o seu esplendor numa poesia de grande valor estético e riqueza estilística que será grandemente realçada pela eliminação de algumas partículas.

Em “Sem Tempo” e “Presente” apercebemo-nos da sensação de que tudo é efémero e por vezes, não há tempo ou espaço para cultivar a felicidade, tal como já foi referido no parágrafo 18º, no já citado poema "Inconsciência" a propósito dos poemas nele mencionados.

“Abrigo” exprime a necessidade de conforto e aconchego tal como no poema seguinte, “Santa Cidade”.

O livro termina com chave de ouro, sob a forma de um poema-desejo, uma chama a arder crestando a brancura do papel, intitulado “Chama por mim” que mostra todo o potencial de Marta Duque Vaz como poeta.

Uma poeta insubmissa, idealista com uma escrita recheada de rebeldia mas também de nostalgia e alguma saudade.


Cláudia de Sousa Dias