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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Saturday, August 27, 2005

“A Casa das sete Mulheres” de Leticia Wierzchowski (Âmbar)


Já lá vão dois anos que vimos a série passar na televisão. A tranquilidade das férias que se avizinham permite-nos desfrutar de um romance de quase seiscentas páginas, com a devida atenção que merece uma obra literária desta têmpera.

Este é um romance épico, totalmente impregnado do romantismo tão ao gosto do séc.XIX, onde a trama e as personagens que a compõem lembram o intemporal Guerra e Paz de Leon Tolstoi.

O romance trata, essencialmente, da perseguição de um sonho, de um ideal: o da liberdade (para os escravos do Rio Grande do Sul) e o da autonomia e independência de um território face ao poder imperial que sangra os produtores da região com impostos e tarifas alfandegárias.

Bento Gonçalves da Silva começa por contestar a política económica do imperador do Brasil em 1835 e acaba por encabeçar uma guerra tão longa e tão trágica quanto aquela que foi cantada por Homero.

Curiosamente, Bento Gonçalves – líder da Revolução Farroupilha e, temporariamente, presidente da República do rio Grande do Sul, contou com o auxílio de uma personagem mítica na história da Europa moderna, que desempenhou um papel fundamental na unificação da Península Itálica: Giuseppe Garibaldi.

Garibaldi chega à Estância da Barra (o cenário principal onde decorre a acção e que é propriedade de Ana, irmã mais velha de Bento) com o objectivo de construir os barcos fluviais para exercer a actividade de corsário ao serviço da República riograndense. E aí conhece Manuela…

Mas quem é Manuela?

Manuela é a sobrinha mais jovem de Bento Gonçalves, filha da irmã deste, Maria Manuela. As três filhas de Maria Manuela - Rosário, Mariana e Manuela – vão, juntamente com Caetana (esposa de Bento) e respectivos filhos, viver temporariamente para a protegida e praticamente inexpugnável Estância da Barra, propriedade de Ana.

É neste idílico cenário campestre que a jovem Manuela irá narrar as crónicas de amor e de guerra relacionadas com a sua família e que estão na base da construção deste romance.

Trata-se de um episódio da História do Brasil, contado de uma perspectiva exclusivamente feminina, uma vez que toda a temática relacionado com actividades bélicas propriamente ditas, não foi directamente vivenciada pela cronista, mas narrada através do recurso a cartas e relatos dos seus familiares e amigos. Por este motivo, Manuela é, simultaneamente, uma narradora participante – quando fala das experiências vividas na estância, do quotidiano doméstico de sete mulheres que assistiram a dez anos de guerra num recanto edénico e não participante, quando narra aquilo que os outros viram, sentiram ou viveram em campanha, recorrendo quer ao discurso directo, ao introduzir o conteúdo integral das cartas que lhe foram confiadas, quer ao discurso indirecto.

Manuela é uma jovem romântica, que conta com quinze anos no início da guerra, invulgarmente “pensativa”, como a define, de uma forma algo depreciativa, a sua irmã Rosário.

Manuela possui, na realidade, uma inteligência e cultura muito acima da média, com uma clareza de raciocínio que lhe permite construir as crónicas que legaram a história da sua família e do Rio Grande para a posteridade.

Para além disso, Manuela tem uma capacidade invulgar de amar para além dos limites. A nobreza e o romantismo desta personagem fazem lembrar a Natasha do já mencionado romance de Tolstoi.

O estilo literário e o léxico de Manuela estão adequados à época, à região e ao estatuto sócio-cultural da personagem.

A narrativa está povoada de indícios e presságios como indica o dueto entre Manuela e Rosário, no primeiro capítulo, em cujas entrelinhas se pode perfeitamente ler o destino que marca a evolução dos afectos destas duas jovens. De facto, tudo indica haver nelas uma predisposição para amar da forma como amaram: o altruísmo e o egoísmo nas suas formas mais extremas.

Manuela é uma personagem completamente sibilina, intuitiva, tal como as suas tias Ana e Antónia. O cenário telúrico, o sol vermelho, as cores vivas da paisagem, o agreste vento de Inverno – o minuano, cujos gemidos chorosos arrasam com os nervos das mulheres da Estância da Barra e remetem para a atmosfera funesta de O Monte dos Vendavais de Emily Brontë –, sendo este quase sempre o arauto da tragédia.

Rosário, a irmã mais velha (que não é, nem de longe, a personagem doce, de que nos lembramos na série televisiva), é uma jovem cuja estabilidade emocional não resistiu aos condicionalismos e, muito menos, ao isolamento imposto pela guerra.

Secretamente, pois não o admite nem para si própria, culpa o tio pela guerra que a obriga a ficar confinada na Estância, longe dos olhares dos admiradores que poderia conquistar na Corte.

É esse o motivo que a leva a projectar o seu medo e ódio na figura de Steban – o jovem oficial que, supostamente, teria sido morto pelo tio.
Steban representa, na mente de Rosário, a sua oportunidade de fazer um bom casamento na corte, oportunidade esta que é vetada pela posição política do tio.
O jovem é produto da imaginação febril de Rosário e das suas emoções recalcadas e distorcidas. A cisão com a realidade acentua-se. Rosário enlouquece de forma irreversível, vítima de esquizofrenia.

Mariana é a mais feliz e independente das três irmãs. Esta última característica permite-
-lhe encontrar e lutar por aquele a quem ama e que também está disposto a lutar por ela.

Ao contrário de Manuela que está afectivamente mais presa à família.

Talvez por isso, Garibaldi não insista em enfrentar o General Bento, por sentir que ao acompanhá-lo Manuela deixaria parte de si mesma com os seus e ele deseja uma mulher que seja como as filhas de Loth, que tenha a possibilidade de partir para qualquer lugar sem olhar para trás.

Mariana não hesita em deixar a companhia amarga e castradora da mãe e este facto é, talvez, determinante para o cumprimento do seu destino. É por este motivo que o episódio de Mariana e João inclua algumas das mais belas cenas da obra.

As tias são as grandes adjuvantes de Manuela e Mariana, sobretudo a Tia Antónia, que auxilia as duas sobrinhas nos seus momentos mais difíceis.

A tia Ana, a matriarca, é o general doméstico que comanda toda a logística da quinta, interna e externa.

Por todos estes motivos, vale a pena aproveitar as férias para ler A Casa das sete Mulheres, uma obra que fala de sonhos. De utopia, de amor e de liberdade.

Palavras, talvez, sinónimas.

Cuja identificação não figura, porém em nenhum dicionário.


Cláudia de Sousa Dias

Wednesday, August 24, 2005

“A Desobediência” de Alberto Moravia (Ulisseia)


Lucca dá entrada na conturbada fase da adolescência.

As alterações hormonais traduzem-se em mudanças bruscas de humor e num desafio radical à compreensão, pela via racional, daqueles que o rodeiam.

À semelhança do que acontece em Agostinho, Moravia explica, em A Desobediência, cada nuance, cada cambiante, por mais ínfimo que seja, dos processos mentais, indo em busca das motivações mais profundas a fim de explicar as alterações de comportamento de Lucca.

Estas manifestam-se através da luta pela afirmação da própria personalidade, demarcando-se dos padrões de comportamento dos pais e dos outros agentes de socialização (professores, amigos e grupos de pares), que Lucca só consegue por em prática usando uma única via: a desobediência.

A desobediência relativamente ao dever de estudar, de preservar os seus bens e até de ingerir comida (a principal preocupação dos pais).

O seu processo de afirmação e construção da personalidade envereda rapidamente pela via da autodestruição e desencadeia o fim das relações sociais, levando-o ao isolamento e alheamento sociais progressivos.

É então que, descobre o Desejo e a rebelião dos sentidos. Estes acabam por inverter o processo, ajudam-no a construir a própria autonomia e identidade de uma forma positiva. O amor é o motor da liberdade e, ao mesmo tempo, a energia anímica que impulsiona a vida.

Emílio Cecchi, crítico literário italiano, contemporâneo de Moravia, classifica este escritor como sendo “…mais retratista que juiz. Mais psicólogo que moralista…”.

É por este motivo que a escrita de Moravia em A Desobediência é, essencialmente, descritiva. Sem juízos de valor. Sem artificialismos poéticos. Realista em toda a sua crueza.

É por este motivo também, que se aconselha vivamente a leitura de A Desobediência a todos os pais “à beira de um ataque de nervos”.

Isto, apesar de o livro estar imbuído, de um forte pendor freudiano no que respeita à perspectiva da construção da personalidade: para muitos investigadores do ramo da Psicologia do Desenvolvimento, Freud centra a construção da identidade baseado apenas no desenvolvimento da sexualidade, sem ter em conta outras dimensões do comportamento como a sociabilidade ou as capacidades cognitivas.

É, contudo, um ponto de vista pertinente e audaz, tendo em conta a época em que foi escrito (1953).

Feito à medida do génio de Moravia.

Indispensável.

E, acima de tudo, pedagógico.

Cláudia de Sousa Dias

Monday, August 22, 2005

“A Mennulara” de Simonetta Agnello Hornby


“A Mennulara” de Simonetta Agnello Hornby

A Mennulara é a história da ingratidão, da inveja, da mesquinhez e avareza absolutas. Todos os impulsos mais baixos da natureza humana são, aqui, exibidos e postos a nu em toda a sua crueza.

Morta a “mennulara”, a “galinha dos ovos de ouro”, administradora do património da família Alfallipe, os herdeiros vêem-se totalmente desorientados e, subitamente, conscientes da sua inépcia no que respeita à gestão do património da família, cujo valor e conteúdo, inclusive, desconhecem. A tudo isto, junta-se a humilhação de, mesmo depois da morte de “Mennù”, sentirem-se, ainda, dependentes daquela que foi, durante mais de quarenta anos, sua empregada: primeiro como “mennulara” – apanhadora de amêndoas - depois, como criada de servir e, por último, como administradora.

Para cúmulo, os seus colegas e, mais tarde, subordinados, também não perdoam a afronta de “Mennú” ter voltado as costas “aos da sua classe” e passado para o lado dos “patrões”.

À rapacidade dos herdeiros face àquilo que suspeitam restar da herança, junta-se o mistério da origem do gordo pé-de-meia de “Mennù” – ao qual também tencionam, se possível, deitar a mão – e, por outro lado, da fonte de poder e autoridade da ex-empregada. O que despoleta as emoções mais negativas e as mais execráveis especulações no seio dos Alfallipe, rapidamente espalhadas pela pequena povoação como folhas ao vento. Depois de morta, a ex-governanta é alvo do mais completo processo de difamação proveniente de várias frentes. Os habitantes da vila falam e especulam a seu bel-prazer.
Um dos aspectos mais interessantes do romance é o facto de cada personagem imprimir, no retrato que tece de “Mennú”, a marca da sua própria personalidade, através da exposição dos seus próprios sentimentos, projectados nas qualidades e defeitos que nela conseguem identificar. A percepção que cada uma delas tem acerca do carácter da “mennulara” é nitidamente influenciada pelo prisma com que se olha a ex apanhadora de amêndoas da casa Alfallipe.

É por este motivo que A Mennulara é um romance que se reveste de uma contundente crítica social cujo objectivo é o de mostrar que a lealdade e o esforço dificilmente são reconhecidos pela “boa sociedade” que não possui “código de honra”.

Uma sátira social excelentemente bem construída, escrita por uma advogada anglo-italiana, perita nas questões de direito da família e herança. A acção é situada no período conturbado post Segunda Guerra Mundial, marcado pela dissolução do fascismo e pelo crescimento incontrolável das associações criminosas.

O “polvo” espalha os seus tentáculos por toda a Itália ameaçando derrubar as velhas elites. Uma possível aliança de “Mennú” com um uomo d’onore (ou seja, mafioso), aumenta as suspeitas da população relativamente à ilicitude dos seus negócios…

Somente o médico e o padre detêm as peças que reconstituem o puzzle da verdade…

Os nomes atribuídos à maior parte das personagens são de molde a criar uma espécie de trocadilho, carregado de ironia relativamente a determinadas características psicológicas das mesmas: “Pecorilla”, a ovelhinha de inteligência limitada, maria-vai-com-as-outras; “Leone”, o leão que só ruge em privado, sobretudo quando bate na mulher, Buonmaritto, o bom marido (traído) e assim por diante.

Uma deliciosa comédia recheada de humor negro, sem artifícios delicodoces.

Inquietantemente realista.


Cláudia de Sousa Dias

Thursday, August 18, 2005

"O Enigma e o Espelho" de Jostein Gaarder (Presença)


"A alegria é como uma borboleta
que esvoaça baixinho sobre os campos
mas a dor é como um pássaro
de grandes asas negras e robustas
que nos transporta acima da vida
que existe lá em baixo ao sol por entre a verdura
E esse pássaro voa alto
até onde os anjos da dor estão de vigília
sobre o leito da morte"

EDITH SODERGRAN, 16 anos

O Natal está à porta. Uma doença grave prende Cecilie à cama e impede-a de desfrutar, por antecipação, os seus esquis que aguardam a sua convalescença debaixo da árvore de Natal. Entretanto começa a receber a visita de um novo e estranho amigo que mais ninguém vê. Um amigo que é a sua imagem ao espelho, durante o período em que frequentava as sessões de quimioterapia.

Da solidão do seu quarto, Cecilie tenta seguir, valendo-se da audição, os preparativos para a festa de Natal, no andar inferior.

Gradualmente, apercebe-se de algumas ligeiras mudanças na rotina e o estado emocional dos seus familiares que tentam passar o máximo tempo possível na sua companhia.

Cecillie está contudo cada vez mais ligada ao seu amigo imaterial e cada vez mais curiosa em relação ao mundo do lado de lá do espelho.

Os seus apontamentos, reflexões resultantes dos diálogos com Ariel, o anjo da dor, ou com os seus familiares vão se acumulando....

A magia, a beleza melancólica dos contos de Andersen estão presentes nesta magnífica obra literária, cheia de candura e melancolia que, levada pelas asas da imaginação de Cecilie, nos leva a viajar pela belíssima paisagem do Inverno norueguês, gelada, como a vida da adolescente após as idílicas férias com a família na soalheira ilha de Creta...

Os diálogos de Cecilie e Ariel são dotados de elevado dinamismo, caracterizados por frases curtas que estimulam a reflexão e estimulam o pensamento dialéctico.

O editor afirma que a época em que decorre este lindíssimo conto com cheiro a Natal "propicia o encontro entre o eterno e o temporal..." e que o diálogo em que Cecilie é conduzida por Ariel transporta-nos "numa teodisseia que, à luz da maiêutica socrática", indaga sobre os mistérios da existência, da criação da vida antes do nascimento e depois da morte.

De facto, Cecilie e Ariel conseguem, a dada altura, resolver a principal questão debatida por Sócrates em "Fédon": a vida depois da morte.

Cecílie abandona a borboleta oferecida num gesto de amizade, borboleta que é o símbolo das alegrias terrenas e da efemeridade, voa com Ariel pelas alturas e distancia-se cada vez mais da realidade, permanece no mundo do lado de lá do espelho, legando à família os seus apontamentos.

Um livro sublime, cujo argumento de que “vemos tudo através de um espelho”, faz lembrar a teoria das formas de Platão.

De alto teor emotivo, destinado a todas as idades, é um livro essencialmente metafórico, cuja polissemia faz com que seja equiparado a "O Principezinho" de Antoine Saint-Exupery.

Belíssimo.



Cláudia de Sousa Dias

Friday, August 12, 2005

“Os Amores de Safo” de Erica Jong (Bertrand)


A vida romanceada da maior poetisa, música e cantora da Antiguidade, a quem Platão apelidou de “A décima Musa”. Uma vida inteira dedicada ao Amor, à Arte, à Filosofia e, sobretudo, à defesa da autonomia das mulheres na condução das rédeas do próprio Destino.

A história de Safo de que aqui falamos – ficção construída por Erica Jong, a partir de escassíssimos dados biográficos –, começa com a subida ao lendário penhasco de onde se afirma que saltou para a Morte.

O título original é, precisamente Sappho’s Leap, isto é, O Salto de Safo, que a editora, por razões comerciais decidiu alterar para Os Amores de Safo. Mas o facto é que o romance foi, todo ele, construído a partir do momento em que a cantora pára, junto à falésia, para evocar as suas memórias. O que aconteceu depois do lendário salto permanece, até hoje, um mistério.

Porém, antes do salto, que a levará ao reino de Perséfone e Hades, a poetisa e cantora evoca os episódios mais marcantes da sua vida. As memórias afluem, em retrospectiva, perante a aproximação da Barca de Caronte.

Cansada de viver, Safo recorda a perda ou o afastamento dos entes queridos: a mãe, a filha, a escrava favorita e amante, o poeta Alceu, o primeiro e grande amor de toda uma vida…Os reveses da fortuna que a impeliram para o exílio, juntamente com Alceu, estão directamente relacionados com os condicionalismos políticos que obrigaram os dois amantes a separarem-se.

Os dois poetas, de cuja obra, só nos chegam alguns fragmentos (na época em que ambos viveram ainda não se tinha generalizado o hábito de passar à forma escrita as obras literárias e muito menos as peças musicais facto que se conjuga com as sucessivas destruições que foram sofrendo as principais bibliotecas da Antiguidade), foram perseguidos e expulsos da sua terra Natal, a ilha de Lesbos, devido à sua frontal oposição aos actos de tirania e prepotência do governo local da Ilha, o rei Pittakos.

O mesmo se passando posteriormente com o Faraó Necau e, segundo a lenda, com a rainha das Amazonas. Em ambas as situações, a poetisa viu-se, contrariamente à sua vontade, na necessidade de colocar a sua arte ao serviço do Poder, situação da qual tentou libertar-se a todo o custo.

A sua rebeldia encontra-se estritamente ligada à sua devoção a Afrodite, a deusa da Beleza e do Amor. Safo gostava de reger a sua vida pelo princípio do prazer e não pelo princípio da realidade, atitude manifesta no total desprezo pelo desejo de Poder, Riqueza ou Ambição.

O conflito inerente à oposição destes dois princípios pode corresponder, respectivamente, à oposição do princípio feminino - personificado por Afrodite - ao princípio masculino, personificado por Zeus, rei dos deuses, símbolo do Poder. Esta oposição encontra-se metaforicamente representada pelo diálogo entre Zeus e Afrodite. Os dois imortais observam, do Olimpo, o desenrolar do destino de Safo como se assistissem a uma peça de teatro e elaboram hipóteses acerca do seu desempenho e comportamento futuros.

O elemento mítico está presente na obra, não só na expressão do diálogo entre os dois deuses mas, também, no episódio relativo às Amazonas, no qual não se consegue distinguir se se trata de um sonho da cantora ou da realidade. O mesmo se passa aquando do regresso desta a Lesbos, durante o qual Safo, à semelhança de Ulisses, desce até aos Infernos onde encontra alguns familiares que já partiram para o Reino das Sombras.
Trata-se, provavelmente, de um período no qual a poetisa sofreu uma grave crise de depressão. O seu carácter hipersensível e a sua extrema necessidade de afecto e apreciação tornam-na vulnerável a este género de patologia.

Safo é como que um cavalo que transporta o estandarte da Deusa a quem dedica grande parte das suas canções, uma divindade a quem até os outros deuses obedecem. Apesar disso, Zeus duvida que a poetisa alcance o triunfo da imortalidade. Ambos os imortais fazem entre si apostas acerca do seu desempenho e consecução dos seus próprios objectivos, para iludir o tédio de uma existência eterna.

Entretanto, a fama da cantora ameaça espalhar-se para além das fronteiras do mundo grego. Incógnita, regressa a Lesbos a tempo de recuperar as suas raízes familiares. Pittakos torna-se indulgente face à fama generalizada da poetisa. Esta abre uma escola destinada a jovens oriundas da aristocracia grega.

Mas a arte, a cultura e principalmente a autonomia da sexualidade feminina, tornam-se uma série ameaça à autoridade patriarcal. As jovens querem, elas próprias escolher os seus parceiros ou parceiras sexuais. O suicídio de uma adolescente, perpetrado para fugir a um casamento indesejável, é motivo de escândalo, largamente ampliado pela maledicência relativa ao relacionamento ambíguo entre Safo e as suas alunas – isto numa sociedade assumidamente bissexual – o que provoca, mais uma vez, conflitos com a autoridade local.

Para cúmulo, surge uma “raposa” dentro do “galinheiro”. O mais recente namorado de Safo, o jovem e belíssimo barqueiro Fáon, engravida várias das suas alunas.

O cansaço supremo instala-se. O impulso para a Morte manifesta-se cada vez mais intensamente.

O lendário penhasco da Leucades apresenta-se como a solução mais fácil para fazer face às feridas do Amor: aqueles que sobrevivem ao salto curam-se, para os que não sobrevivem a morte resolve o problema…

A surpresa final: o salto de Safo como o último passo para a bem-aventurança.

O triunfo de Afrodite é total.

Ela é, afinal, a Deusa Suprema…


Cláudia de Sousa Dias

Tuesday, August 09, 2005

“Intimidades” – Vários (Dom Quixote)


Antologia de contos eróticos, pela voz de dez autoras portuguesas e brasileiras, com prefácio de Luísa Coelho. A ensaísta fez questão de clarificar os conceitos de erotismo e pornografia cuja fronteira, por motivos culturais e religiosos, está longe de ser estanque.

Luísa Coelho, a ensaísta brasileira encarregue de elaborar o prefácio para a obra, faz uma breve exploração relativamente às semelhanças e diferenças temáticas e estilísticas que caracterizam as autoras portuguesas e brasileiras, focando tanto o aspecto psicológico como o antropológico e o social, presentes em ambas as culturas.

É o que acontece com a relação entre o erotismo e o sagrado, sobretudo nos contos brasileiros, devido ao forte sincretismo religioso, fortemente impregnado na cultura deste País. Tal como a relação entre o amor erótico e as normas sociais de que está imbuída a escrita portuguesa devido a condicionalismos históricos e religiosos que condicionaram, durante muito tempo, a livre expressão dos afectos.

Nos contos portugueses foca-se, segundo Luísa Coelho, aquilo que é interdito, contrário às normas inerentes aos papéis sociais que correspondem ao comportamento esperado de cada sexo, numa dada época.

Nos contos brasileiros, a transgressão vais mais longe. Esta propõe-se a quebrar alguns tabus universais.

A obra inicia-se com o mini-conto Animal da brasileira Ana Miranda. Trata-se de um texto que percorre as zonas erógenas do corpo feminino como se de uma montanha russa se tratasse. A narradora explora a dimensão obsessiva da expressão da paixão do seu amante, da necessidade absoluta deste na procura do refúgio, da paz, do encontro consigo próprio no corpo do objecto amado e da necessidade imperiosa de fusão com ele. A dimensão material do corpo da mulher amada ou desejada ganha, aqui, terreno em detrimento da dimensão espiritual, aniquilando-a.

Seguem-se mais dois contos de vindos do Brasil.

Cobertor Engomado de Branca Maria de Paula descreve um cenário bucólico onde proliferam elementos da fauna e flora tipicamente tropicais. A transgressão impera tanto na linguagem, como nos cânones da evolução e orientação da sexualidade, que não seguem o curso esperado. Luísa Coelho chega mesmo a afirmar que “o erotismo manifesta-se através da fusão totémica, de um antropomorfismo zoológico e botânico” e que “ a ruptura da harmonia (…) levará o personagem a desviar-se do percurso e à perda da sua sexualidade primitiva e original.”

Assiste-se, aqui, ao conflito que opõe o prazer selvagem, associado aos instintos mais básicos e primitivos, às leis que regem a sociedade.

No Sudário de Guiomar de Grammont, observamos o erotismo canalizado, face a um objecto de paixão que é idealizado. Essa paixão é despoletada por um botão (analogia erótica com determinadas parte do corpo feminino, como os mamilos ou o clítoris) branco (cor tradicionalmente associada à inocência e à virgindade) de uma blusa.

A consumação do desejo só é realizada no plano do imaginário, sendo ao mesmo tempo imortalizada na obra daquele que ama. Há uma relação directa entre a satisfação do desejo e a morte, uma porta para a extinção da vitalidade do personagem. “É diante da morte que ele experimenta o prazer do interdito, experiência que se traduz na sua dissolução enquanto ser” – Luísa Coelho. A linguagem utilizada na parte final do texto implica, toda ela, o estiolar da vida decorrente do esvair do fluido vital.

Segue-se a primeira autora portuguesa, Inês Pedrosa, com Só Sexo.

Um conto de grande beleza, sensualidade e intensidade emocional, que fala de uma mulher que tenta resgatar o passado interrompido, cristalizado, na juventude. A autora do prefácio refere que, neste conto, o erotismo “é alimentado pela noção de um vazio que se instalou na vida da personagem, mas que lhe permitiu sonhar”.

A emoção aliada à sensação é a tónica dominante, em contraste absoluto com o título do texto. Apesar de, entre os amantes, tal como no romance o deus das pequenas coisas de Arundhati Roy, as coisas importantes ficarem sempre por dizer…

Com Lídia Jorge e o seu Conto do Nadador o erotismo é, sobretudo, visual, marcado pela contemplação da nudez dos corpos semi-velados pelas roupas molhadas, pela espuma e pela areia da praia. Na escrita desta autora está presente a crítica social, o conflito entre o desejo de livre expressão da vontade individual e as regras ou convenções sociais que o contrariam.

É por esta razão, que as jovens não podem deixar-se olhar a não ser que o Outro não tenha a consciência que elas sabem que estão a ser observadas. O conto é o retrato de uma época de forte repressão da sexualidade e da sedução femininas, sobretudo quando fora do âmbito conjugal, obrigando à criação de uma série de máscaras ou situações fictícias.

Regressamos aos autores vindos de terras de Vera Cruz.

Desta vez, com um conto de Lygia Fagundes Telles, autora do conhecido romance Ciranda de Pedra, adaptado ao formato televisivo sob a forma de telenovela. Apenas um saxofone é um dos contos mais intensos da antologia e fala-nos de uma mulher fatal que recorda a passagem do Amor pela sua vida. Mostra, sobretudo, a forma cruel como nos tornamos vítimas das opções que fazemos. O texto começa por evidenciar o medo da perda da beleza face à inevitabilidade do envelhecimento, acompanhado pelo tédio instalado numa vida afectivamente estéril.

Um conto em que é particularmente notória a perda da fé no deus do Amor e a consciência de que a possibilidade de resgatar a felicidade está a perder terreno na corrida contra o tempo. O amor só chega à protagonista e narradora através da magia da música que despoleta a memória da paixão que ligou os dois amantes.

Regressando a Portugal, deparamo-nos com o escaldante Mónica de Maria Teresa Horta, sem dúvida o mais sensual e provocador de todos os contos desta colectânea. A loucura dos sentidos e a paixão no seu estado puro são os seus principais ingredientes. Um pouco à semelhança do que acontece com o conto de Inês Pedrosa. Mas aqui é a mulher quem domina, quem assume o controlo absoluto da situação, ao passo que a protagonista de Só Sexo é totalmente dependente das acções do parceiro.

A música, tal como no conto da brasileira Lygia Fagundes Telles, também está presente. Mas aqui, são as pulsões da paixão, surda, cega e muda, emanadas das profundezas do inconsciente, que são identificadas com as tonalidades escuras da música de Mahler e não propriamente despoletadas por ela.

Sons e desejos emergem do mais profundo da fantasia humana quebrando tabus.

Mais uma incursão pelo Brasil.

Nelida Piñon mostra-nos um conto que fala de posse, de obsessão em O Revólver da Paixão.

Fome voraz, desejo sem limites.

A protagonista não deixa espaço para a liberdade individual do parceiro. A satisfação torna-se impossível de atingir, transformando uma relação ardente num inferno asfixiante. Também aqui a mulher pretende dominar os termos do desenvolvimento da relação, mas a paixão em vez de a libertar a si e ao companheiro acaba por sufocá-los, como se subentende nas entrelinhas da carta que escreve ao amante.

A portuguesa Rita Ferro coloca diante dos nossos olhos uma situação de transgressão e subversão dos cânones da construção da sexualidade feminina em O Segredo do Chiffon.
O texto poderá parecer um tanto ou quanto polémico pelo facto de as atitudes da protagonista contrastarem, de uma forma quase chocante, com a idade da mesma.
O tema, apesar de, aparentemente, tratado com alguma leveza, não deixa de, nas entrelinhas, conter uma forte dose de ironia e crítica social face à frivolidade das personagens que gravitam no universo do conto.

O Noctário de Teolinda Gersão, trata da procura do amor na sua forma mais completa, que se manifesta na total cumplicidade de corpos e almas e é inspirado nas mulheres dos nossos dias: autónomas, independentes, seguram as rédeas da própria vida.
Mas não as do Destino. Ou da Fatalidade. Os indícios chegam até nós através dos sonhos da protagonista que nos fazem adivinhar o que vai acontecer. Sonhos que são medos codificados. Medos potenciais, contudo reais. Ou talvez a manifestação da célebre intuição feminina que nada mais é do que a identificação de algo que tem uma grande probabilidade de se tornar realidade.
Até à consumação da tragédia, os sonhos são premonitórios mas, a partir de então, manifestam-se impregnados de uma nostalgia que pretende trazer de volta o passado, retendo-o o mais tempo possível. Sonho que se torna o cenário do prazer.

Dez estórias.

Dez perspectivas diferentes de olhar o Eros.

Mesmo assim reunidas, estão apesar de tudo, longe de abarcar a complexidade e a totalidade do comportamento humano quando se fala de Amor…

Para oferecer a quem se ama. Ou deseja.

Cláudia de Sousa Dias

Friday, August 05, 2005

“A Guardadora de Gansos” de Luísa Monteiro (Âncora)


Não. Não é o conto infantil, na versão dos Irmãos Grimm ou de qualquer um dos autores os antecederam – nas suas múltiplas adaptações ou recriações -, tal como acontece com a maior parte dos contos tradicionais.
Trata-se de uma belíssima história, que exprime o quão grande e profundo pode ser o amor de uma filha por um pai. Mesmo que não seja o único. Ou talvez por isso mesmo
.

E porque o amor carnal é outra das dimensões do Amor, explorada por Luísa Monteiro nos seus livros, a busca da harmonia perfeita entre corpos e almas, torna-se a cruzada de Vita. A busca dessa união perfeita que só encontra na infância perdida e na relação telúrica que estabelece com a terra que dá as uvas, o fruto da fertilidade, segundo a tradição cigana.

O romance gira à volta de um triângulo amoroso que cinde o coração de Vita. Esta sente, ao longo de todo o desenrolar do romance, que há sempre uma parte dela que lhe falta.

Trata-se de uma história contada a quatro vozes. Em primeiro lugar, a da narradora e protagonista, Vita, que parece ser, ao que tudo indica, um heterónimo da Autora, como iremos verificar a seguir.

Todo o discurso de Vita exprime, de uma forma extremamente poética – por vezes codificada, numa linguagem onírica, da qual é necessário extrair o seu conteúdo latente -, o amor absoluto à terra, à natureza, à vinha e ao vinho, o néctar dos deuses. A paixão pelo processo que envolve a produção do vinho reveste-se de um fervor quase que sagrado situado, paradoxalmente, no limiar do profano. A terra é a sua ligação às origens genéticas e culturais, inculcadas pelo pai.

A segunda voz é a das Horas, as fadas-madrinhas, as estações que se sucedem e que vigiam o desenrolar do destino de Vita; elas exprimem o pensamento (auto)-crítico da personagem, a imagem que ela tem de si própria. São o seu duplo. São o lado positivo da auto-imagem da protagonista.

Paralelamente, temos a voz das Moiras ou das Parcas que selam o destino da vida dos humanos. São elas, sobretudo a última, Átropos, quem decide quando cortar o Fio da Vida. Neste caso, o fio que liga Vita à Vida. A linguagem das Moiras é sempre altamente provocadora, imbuída, muitas vezes do travo amargo de certo cinismo. Elas representam o pólo negativo da auto-imagem de Vita, a parte mais obscura do seu pensamento e emoções.

Vita é, afinal, detentora de uma personalidade múltipla, isto é, que se desdobra em várias outras: no discurso das Horas e das Moiras, apercebemo-nos que, apesar de estas se referirem a Vita na terceira pessoa, o pensamento expresso é o da própria Vita. Esta sai de si própria para encarnar noutras personagens e refugiar-se numa avaliação crítica que pretende ser o mais objectiva possível.

Por último, a quarta voz, a das personagens dos contos infantis que influenciaram e ajudaram à construção dos arquétipos que constituem a referência axiológica na construção do carácter de Vita: Pinocchio, Polegarzinha e Cinderela.

Estes personagens dialogam entre si, num discurso à parte e comentam as atitudes e as escolhas de Vita.

São exteriores à consciência da personagem principal, ao contrário das Moiras e das Horas que se limitam a descrever as situações – de uma forma poética seja ela romântica ou cínica -, mas sempre sem emitir juízos de valor.

Os personagens dos contos de fadas actuam como juízes, representam a sociedade com os seus cânones mais ou menos rígidos e julgam constantemente as atitudes de Vita.

Cinderela, crítica e fútil, representa a parte do tecido social que se rege pelas aparências e pelo materialismo. É a personagem mais frívola e superficial, que a narradora não hesita em catalogar de estúpida, à laia de retaliação!

Pinocchio é o “juiz” mais benevolente, ingénuo e ligeiramente transgressor.

Polegarzinha aparece como a personagem arquetípica mais inteligente e ponderada, racional.

Os três comentam entre si a vida de Vita como se de um filme se tratasse.

A biografia de Vita é contada em capítulos que narram os acontecimentos relevantes para a protagonista de sete em sete anos, número que segundo a tradição judaica simboliza o poder divino.

A segunda parte do livro é constituída pelos contos narrados e recriados por Vita, a herança legada pelos caseiros da quinta. Que para ela constituíam a família de gansos que lhe deixa a lembrança da época em que realmente se sentiu como pertencente a uma colectividade, com o sentimento de segurança e protecção que isso acarreta.

Os contos, dezassete ao todo, são povoados de grande beleza e conteúdo emocional onde o tema recorrente é, quase sempre, a perda.

Destaque para a beleza pungente de O Sorriso dos Ponteiros, onde impera a inocência e o amor altruísta no seu expoente máximo.

A Coroa de Pérolas Negras que fala de humildade no infortúnio e da arrogância e avareza na prosperidade.

Violetas em Gelo, mais uma referência às aveludadas, escuras e perfumadíssimas pétalas, já presente em O Evangelho das Rãs no nome atribuído a uma das personagens principais e, também, em diversos episódios da vida de Vita. Neste conto, as flores aromatizam os cubos de gelo que refrigeram o vinho. Uma estória que fala de beleza: intrínseca e extrínseca.

A sensibilidade à flor da pele e extra-sensorial em Transplante de Mar.
A incompreensão em A Bicicleta Fantasma.

E, por último, o fabuloso conto intitulado de O Baptizado. Futurista, povoado de personagens de nomes bíblicos, protagonistas de factos que pouco ou nada têm a ver com aqueles que são relatados nos Evangelhos. Trata-se de um mundo modificado, que já nada tem a ver com o nosso, onde já não há lugar para religiões, dinheiro, governo…Um mundo árido, onde só há lugar para o Amor…

Mais um livro genial, de uma das melhores autoras portuguesas da actualidade.

Soberbo.


Cláudia de Sousa Dias

Tuesday, August 02, 2005

"Celtika" de Robert Holdstock (Contemporânea – Publicações Europa-América)


A civilização celta é o cenário cultural onde se desenrola o epílogo da história de Jasão e Medeia. Trata-se de uma tragédia que envolve paixão, traição, ciúme e vingança, retirada de uma das mais apaixonantes lendas da tradição grega e que prossegue, setecentos anos depois, com um único objectivo: recuperar o passado, resgatar a felicidade roubada.

Robert Hodstock elabora uma trama na qual as personagens que estiveram envolvidas na corrida ao Velo de Ouro, em plena Idade do Bronze, permaneceram como que encantadas, suspensas no Tempo, ao longo de sete séculos.

Um dos aliados de Jasão, o Argonauta, é o visionário Antíoco que, alguns séculos mais tarde, será o Mago Merlim, mentor do Rei Artur.

O feiticeiro reencarna várias vezes, em diferentes épocas da História, ampliando, de uma forma exponencial, a riqueza e o dinamismo do romance. Ao identificarmo-nos com Antíoco/Merlim ficamos com a sensação de imortalidade. O Tempo torna-se irrelevante, porque a morte é aqui encarada não como o fim, mas apenas como uma mudança de ciclo.

As personagens oriundas do mundo helénico movimentam-se num mundo onírico, situado no limiar do sonho e da realidade.

Merlim ou Antíoco irá, então, resgatar o herói grego do Sono da Morte no fundo do Lago que Grita, na Escandinávia, a região a que os antigos chamavam de Terra dos Hiperbóreos.

Neste passeio pelo supra-real, que nos faz transitar de época para época, de cultura para cultura, deparamo-nos com muitas situações, aparentemente insólitas, mas que remetem claramente para a teoria freudiana do inconsciente, da qual Holdstock se serve para enriquecer ainda mais a trama que constitui o romance.

A procura das motivações mais profundas que orientam o comportamento humano, a Esperança como o último alento de energia, escondida no fundo da caixinha de Pandora que é a mente humana, e nos impulsiona a agir, fazem com que o herói de Iolcos reúna as forças que já não tem para sair do Hades, do Reino das Sombras. É desta forma que enfrenta a depressão ultrapassando o trauma saindo vitorioso na luta contra o Desespero.

Merlim ocupa-se de sondar, estimular e trazer à superfície o último fio de esperança em Jasão, arrancando-o da inconsciência, do limbo onde jaz debaixo da superfície gelada do Lago que Grita, imune à passagem dos séculos, trazendo-o de volta à consciência e à razão. O acordar da morte gelada do Argonauta encontra sentido nas crenças druidas nas quais se insere a cultura de Merlim.

“Celtika”é um livro de forte sincretismo cultural e religioso que integra várias etapas da História que serviram para consolidar a cultura Europeia.

A reconstrução do navio “Argo” é disso exemplo pela junção da tecnologia celta, viking e grega da Idade do Bronze.

Uma viagem por terra e mar, através da Europa, povoada de seres hostis, humanos e sobrenaturais.

Com esta obra, Autor pretende, sobretudo, mostrar que há uma chave para a desumanização em personagens como Merlim, Jasão ou Medeia: as paixões incontroláveis e destrutivas como o ódio, a posse ou o medo de perder algo de precioso e raro que não se obtem facilmente: o Amor na sua forma mais perfeita.

Quando as paixões ultrapassam os limites da ética, provocando as Fúrias, gera-se uma espiral de violência que leva sempre à intervenção de Némesis, a deusa da Justiça Punitiva, cuja função é a de recolocar sempre as coisas no seu devido lugar.

A paixão recalcada também acaba por se revelar como portadora de armadilhas expressas na contradição dever/ querer ou sentir.

Mas o tema central da história é algo de extremamente actual que apesar das alterações culturais que a relação entre os sexos foi sofrendo ao longo da História, sempre afectou a humanidade: qual o destino a dar aos filhos de um casal quando, findo o amor, se impõe a quebra do vínculo conjugal? E quais os limites do ódio, do despeito que leva um cônjuge a magoar o outro utilizando os próprios filhos para o efeito?

Uma questão que preocupa a humanidade há já alguns milénios…

Um drama imune ao próprio tempo.


Cláudia de Sousa Dias