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Friday, February 29, 2008

“Três tristes Tigres” de Guillermo Cabrera Infante


Guillermo Cabrera Infante nasceu a 22 de Abril de 1929, em Gibara, no nordeste da ilha de Cuba. Filho de um jornalista membro do Partido Comunista, GCI cedo se torna militante do mesmo partido, juntamente com o pai. Ambos foram membros fundadores do PC em Gibara, razão pela qual são detidos, ainda no Governo de Batista, altura em que Cabrera Infante contava apenas com sete anos de idade. Em 1941, a família muda-se para Havana. Cabrera Infante publica pela primeira vez, aos dezoito anos, uma obra de ficção, El Señor Presidente. Após interromper os estudos em Medicina, o jovem Autor decide dedicar-se ao jornalismo, descobrindo uma especial apetência pelas áreas do Cinema e da Literatura. No entanto, ao publicar as suas obras de ficção, vê-se a braços com a censura do regime do ainda ditador Batista a qual classifica alguns dos seus contos como obscenos. É proibido de publicar com o seu nome, valendo-se, para isso de um pseudónimo – G. Caín, utilizando a contracção dos seus dois apelidos. Torna-se, então, um crítico de cinema na revista Carteles, onde assina com pseudónimo.

Com a ascensão de Fidel Castro ao poder, 1959, Cabrera Infante é nomeado Director do Conselho Nacional de Cultura e executivo do Instituto del Cine, assim como subdirector do
Diário de la Revolución, encarregando-se do seu suplemento literário.

Apesar de tudo, as suas relações com o regime acabaram por se deteriorar, devido a uma curta-metragem, realizada pelo seu irmão, Sabá Cabrera, em 1960, a qual foi proibida por Castro, sendo suprimido do semanário
Lunes de Revolución nesse mesmo ano.
Em 1962, Guillermo Cabrera Infante é enviado a Bruxelas como adido cultural da embaixada cubana. Ao regressar, em 1965, para o funeral da mãe, o Autor é retido, durante quatro meses, pelo Serviço de Contra-Inteligência e, finalmente, exilado. Primeiro em Espanha e depois em Inglaterra, onde viveu até à data da sua morte, em 2005.
É em 1968, já no exílio, que publica o romance
Três Tristes Tigres, cujo título original seria Ella cantava boleros – um trocadilho com o nome de Ella Fitzgerald e a ligação dos ritmos sul-americanos ao jazz, que resulta num jogo de palavras, alusões culturais e cruzamento de elementos pertencentes quer à cultura cubana quer à norte-americana. O romance conta a vida de três jovens cubanos – três tristes tigres – em La Habana de 1958. Em Cuba, a obra foi rotulada de contra-revolucionária e Cabrera Infante foi expulso da Unión de Artistas e classificado como traidor.

O romance Três Tristes Tigres pode ser classificado como uma narrativa distópica, de tradição enciclopédica, tal como o universalmente conhecido Ulisses de James Joyce , ao qual está subjacente o propósito de dissertar sobre um saber ou, neste caso, uma cultura, como a da vida nocturna cubana, no caso do presente romance, que acaba por adquirir uma dimensão transnacional ao deixar-se penetrar por elementos vindos de outros continentes…
Sendo este género de narrativa o resultado, normalmente, da construção de vários dramas paralelos, onde interagem duas ou mais personagens e que acaba por concatenar uma multiplicidade de dados, tanto científicos como estéticos, e onde as personagens são valorizadas pala sua cultura, acontece ao longo de, praticamente todo o romance, a cultura dos três protagonistas ser valorizada pelo contraste com outras personagens – como nos diálogos ocorridos dentro do automóvel de Arsénio Cue – e, também, neste caso, pela utilização ora da estrutura dialético-argumentativa ora a técnica da maiêutica socrática entre os três protagonistas: Arsénio, Silvestre e Bustrofédon.

Trata-se, também, de um livro poliglota, onde pululam os trocadilhos linguísticos, alusões a obras literárias, cinematográficas, musicais, centrando de tal forma o desenvolvimento da narrativa no Conhecimento e na cultura que é, praticamente excluído o foco de desenvolvimento centrado no factor emocional ou no amor sexual.

Três Tristes Tigres é um romance marcado por inúmeras intertextualidades e por uma pluralidade de significâncias, atribuídas a cada uma das frases.
É pelo conjunto de todas estas características que podemos integrar a obra citada na categoria de narrativa enciclopédica, o qual não pode ser considerado um livro fonte de aprendizagem directa – uma vez que a informação se encontra codificada através de nuances e significados ocultos, não podendo, por isso, abstrair-se do seu carácter literário. Ou seja, a matéria enciclopédica de Três Tristes Tigres tem de ser percepcionada como parte do mundo analógico do romance.

A distopia, ou o desmantelar das utopias está também, presente ao longo de toda a narrativa, mas é, sobretudo, notória no capítulo intitulado A Morte de Trotski, relatada por vários escritores. Ou no capítulo Confissões de um comedor de opiniões cubano (pg. 314), uma crítica demolidora às ideologias que se esvaziam, sem excepção, de sentido, com a erosão provocada pelo Tempo.

Trama e Personagens

A teia de que é composto o romance gira à volta da noite cubana, a grande protagonista, com a sua beleza e exotismo, onde a música – desde o jazz aos boleros, cantados por La Estrella – traçam, no nocturno anil do céu cubano, uma estrada, uma linha que une as várias personagens que formam, todas juntas, o desenho final.
Todas elas estão, de certa forma, ligadas à noite: à música, ao canto, à dança, ao cinema…ou então, à escrita, jornalística e literária.

A deliciosa ironia do narrador, cuja acidez raia o sarcasmo, nota-se sobretudo na voz de Silvestre, cuja perspicácia, poder de observação, capacidade de raciocínio e fortíssimo sentido crítico, o colocam numa posição de destaque relativamente aos outros co-protagonistas.

Já o narcisismo de Arsénio acaba por pintar a sua personalidade com uma pincelada de um certo alheamento ao mundo real, transformando-o, simultaneamente, numa personagem cómica.

Mas é a nostalgia, a nota principal que domina o discurso narrativo. Esta encontra-se presente em todas as descrições, relativas à paisagem da Cuba noctívaga, desde a beleza verde e algo selvagem dos jardins do Clube Tropicana até ao ambiente báquico dos night clubs onde se dança o mambo, fazendo lembrar alguns desenhos de Toulouse-Lautrec.

A ironia, tingida de sarcasmo, também se encontra presente logo na primeira cena onde o mestre de cerimónias tenta cativar alguns turistas norte-americanos, adulando-os. É , aqui, salientado o ridículo de um Estado que, ao dizer-se defensor da cultura nacional, se transforma, gradualmente, em estância turística vendendo-se e rendendo-se à sedução do dólar e descurando a autenticidade e a verdadeira identidade cultural, como no episódio da bengala envolvendo uma casal de (pseudo) escritores norte-americanos, que o romance começa a adquirir a tonalidade de distopia, a que já aludimos anteriormente.
No final, anomia é a principal tendência evidenciada pelas diferentes personagens que têm a seu cargo a narração da história, quando o romance se aproxima da sua conclusão.

Tanto a jovem que frequenta e descreve as sessões de psicoterapia – e em cujo discurso é cada vez mais difícil destrinçar a ficção da realidade – como o discurso de Silvestre ao chegar ao apartamento depois de percorrer a marginal no automóvel de Cué, numa tentativa de escapar ao Tempo e atravessar a noite até à Eternidade, são anómicos, revelam uma certa desordem de ideias, embora com características diferentes. No discurso de Silvestre, a ausência de parágrafos e de pontuação confere um ritmo obsessivo e incessante, marcado por repetições anafóricas que sublinham a cadência da leitura. Ao mesmo tempo, o apreço doentio do narrador pelo detalhe descreve, com minúcia doentia os movimentos que marcam ciclicamente a sua rotina antes de se deitar. E que enfatizam o peso do silêncio que esmaga a personagem e, ao mesmo tempo, reforça o sentimento inexorável de uma solidão que se torna opressiva…

Já na jovem do consultório psiquiátrico, nota-se a fragmentação progressiva do Eu, em manifestações cada vez mais evidentes de paranóia…

No epílogo, o discurso desta mesma personagem feminina, torna-se completamente desconexo e inextrincável, acabando por confirmar a tendência anteriormente descrita.

Estilo

O autor alerta, no início, para o facto de o romance estar escrito em “cubano”, ou seja, nos diferentes dilectos que se falam em Cuba.

Esta escrita não é mais do que a tentativa de apanhar a voz humana em pleno voo (…) As diversas formas do cubano fundem-se (…) numa só linguagem literária (…) em particular a gíria nocturna que, como em todas as grandes cidades, tende a ser uma língua secreta (sic)

Algo que se perde com a tradução para o português, apesar de o tradutor se esforçar por manter as diferenças de sotaque,a acentuação, a entoação dada pelas diferentes personagens-tipo, desde a paquidérmica La Estrella à eroticamente exótica Magalena, passando pelo típico galã latino Arsénio ou a menina de alta sociedade disputada pelos dois protagonistas.
Três Tristes Tigres é um romance que fascina pela sua complexidade, cheio de regressões no tempo, que obrigam a redobrar a atenção com que se lê, subtilezas que nos permitem saborear cada palavra uma profusão de expressões idiomáticas em várias línguas.

Um romance com um ritmo muito próprio – com vários ritmos, aliás. Entre os quais, uma escrita sincopada, numa tentativa de imitação da cadência do Jazz. Marcado por um acutilante sentido de humor, onde as intertextualidades, provenientes da riquíssima cultura de Cabrera Infante, constituem um desafio de descodificação para os amantes da Grande Literatura.

Um romance no qual está, impressa nas entrelinhas, a saudade infinita de quem escreve no exílio…


Cláudia de Sousa Dias

Thursday, February 21, 2008

“O Perfume” de Patrick Süskind (Presença)


O Perfume é daqueles livros que, quando lemos pela primeira vez, ficamos com a incómoda sensação de que a maior parte do significado nos escapa, ficando escondido nas entrelinhas pelo ao elevado conteúdo surrealista subjacente, ao desenvolvimento da trama. O mesmo se passa com as motivações e a forma de pensar e sentir do protagonista.

Trata-se de uma obra literária da qual sabemos, logo após a leitura do último parágrafo, que voltaremos a lê-la uma e outra vez.

Até desvendar o mistério de uma alma mergulhada nas trevas.

Porque
O Perfume consegue ser muito mais do que a história de um assassino, nascido no meio do lixo e dos restos de peixe podre, no local mais infecto da Paris do século XVIII.

A descrição inicial do fedor nauseabundo da capital francesa, por altura do nascimento de Jean-Baptiste Grenouille foi elaborada de forma a criar o maior impacto possível no leitor por forma a exaltar a sensação de nojo nos leitores. A profusão de detalhes, a minúcia, enriquecida pelas associações de olfactivas e visuais – com predomínio das primeiras – amplia a sensação anteriormente descrita pela repetição anafórica do verbo “tresandar”, ao qual são adicionados nomes e adjectivos de carácter repulsivo permitindo a reprodução (quase) exacta dos cheiros mais pestilentos.
O carácter surrealista é, também, enfatizado pelo animismo concedido à paisagem e aos objectos sobretudo se associados com forte carga olfactiva, apresentando-se ao leitor quase como se fossem seres vivos dotados de alma e sentimentos Ex: “…As chaminés respiram…”.

O discurso onírico de Süskind em O Perfume permite-nos experimentar a sensação de, ao lermos a obra, sentirmo-nos como se estivéssemos a sonhar ou a ter um pesadelo onde o insólito, o maravilhoso, o terrível e o absurdo se misturam ao pintar um quadro ou um mural semelhante a uma pintura de Hieronymous Bosch...

Jean-Baptiste Grenouille surge na trama arrastando consigo uma morte, despoletada pelo grito assassino que reclama o seu direito à vida implicando, simultaneamente, a morte da mãe por enforcamento. O destino da personagem está traçado logo à nascença: para sobreviver e triunfar terá de matar. Terá de despir-se de qualquer sentimento de amor, solidariedade, fraternidade e tudo o que se relacionar com altruísmo e viver apenas e só para o seu EU.
A fatalidade marca, pois, o início do seu nascimento e a orientação da própria conduta ao longo da vida, tal como, mais tarde o antraz lhe marcará o rosto, desfigurando-o.

A infância no século XVIII

Uma das características mais marcantes do romance é a precisão com que o Autor reproduz a mentalidade dominante das gentes que compõem a sociedade francesa, em plena era do arranque da Revolução Industrial, em relação à infância – mentalidade sobretudo representada por Madame Gallard e depois pelo curtidor de peles que “compra” Grenouille como se de um escravo se tratasse.

Um pormenor curioso que se verifica ao longo do desenvolvimento da narrativa é o de, àqueles que renegam Grenouille, escaparem a uma espécie de maldição, de uma vingança nemésica que atinge todos aqueles que, de uma forma ou de outra, ajudaram, involuntariamente ou não, ao seu desenvolvimento ou à realização dos seus objectivos…

Algumas pessoas sentem em Grenouille algo de anormal, alguém cuja ausência de odor, numa sociedade onde o banho não fazia parte dos hábitos de higiene diários – o que por si só aumentaria exponencialmente a incidência de um odor humano - o transforma num excluído social, numa espécie de espectro ou fantasma levando as pessoas mais sensíveis a intuir que há algo de errado dentro da alma árida de Grenouille – a rãzinha, o pequeno sapo, que princesa alguma irá beijar algum dia…

Em contrapartida, aqueles que, de certa forma ajudam Grenouille contribuem, voluntariamente ou não, para o seu desenvolvimento, permanecendo cegos e surdos em relação à sua falta de odor que o definiria como ser humano, sofrem uma espécie de “castigo” ou, se preferirmos, o efeito boomerang pelo facto de terem contribuído para a propagação do Mal em estado puro, personificado na pessoa de Jean-Baptiste Grenouille…

Os dotes especiais de Grenouille

O prodigioso nariz de Grenouille tem a particularidade de descodificar o ADN de quem quer que seja ou do que quer que seja ao actuar como um “espectofotómetro dos odores” ou como o sonar dos golfinhos ou dos morcegos. Ex: consegue saber se uma mulher é loira ou ruiva apenas pelo olfacto.

Grenouille possui, também, uma memória olfactiva prodigiosa apesar de revelar sérias dificuldades de aprendizagem linguística, sobretudo no que diz respeito à apreensão do significado em ligação com o significante com no que respeita a realidades não directamente ligadas a sensações olfactivas.

A posse de um nariz sobredotado faz com que, por seu lado, a linguagem seja insuficiente para traduzir todos os odores que é capaz de identificar, transformando-o num Mozart da perfumaria em potência.

Os adjuvantes de Grenouille

O primeiro dos adjuvantes do assassino Grenouille é a mãe, que o carrega durante nove meses no ventre, a qual paga com a vida o facto de ter gerado um monstro cuja voz a leva ao cadafalso.

A segunda adjuvante é Madame Gallard, dona do orfanato, mulher árida no que toca aos afectos, vítima de maus tratos na infância, de onde um acidente implicou a perda do olfacto e a impossibilidade de identificar Grenouille como uma criança diferente das outras – isto é, incapaz de inspirar afecto nos seres humanos. A ausência de olfacto o o facto de ter sido maltratada em pequena, como era habitual ou considerado normal na época, impede-a também de sentir afecto genuíno por qualquer criança.

É um facto que, na obra de Süskind, a capacidade o afecto e o olfacto estarem intimamente relacionados.

E em Madame Gallard a incapacidade de sentir os odores, faz com que esta seja incapaz de sentir amor amor pelos outros. Para Madame Gallard nenhuma das crianças tem cheiro, logo é incapaz de amar qualquer uma delas. Cuida delas como se fossem animais de capoeira. Nesta fase do romance, o Autor pretende fazer notar o quão violento pode ser para uma criança o não sentir-se amada ou crescer sem amor e até que ponto este facto condiciona o seu relacionamento com o Outro, ao constituir o factor X que determinará a exclusão/inclusão no sistema social e garantindo o grau de coesão, dentro dos diferentes grupos a que poderá vir a pertencer.

A ausência de amor atingia todas as crianças do orfanato, sobretudo Grenouille, que não era amado ou estimado por ninguém.

A resistência de Grenouille revela-se a toda a prova, como a dos super-heróis ou anti-heróis ou como a das carraças, parasitas ou bactérias…

O castigo de Madame Gallard é o de terminar os seus dias de uma forma completamente oposta àquilo que seria o seu desejo: com a exposição da sua miséria e declínio físico num hospital público, após uma longa e relativamente próspera vida.

O terceiro adjuvante é Grimal, o curtidor de peles para o qual Grenouille trabalha como um escravo. Grimal utiliza mão-de-obra infantil, composta por órfãos e enjeitados nos trabalhos mais sujos deixando-as à mercê das contaminações e infecções contraídas pelo contacto com os animais em decomposição e com os vapores corrosivos utilizados para o tratamento das peles.

A resistência de Grenouille é notória o que o torna partcularmente valioso. Contudo, logo após vender Grenouille ao perfumista Baldini, Grimal nem tem tempo para gozar o produto da venda, perdendo a vida, num estranho e aziago acidente.

Ainda antes de entrar pela primeira vez em casa de Baldini, Grenouille numa das suas saídas em dia de folga, depara-se com um perfume inusitado. Apercebe-se que se trata de uma belíssima jovem ruiva e segue-lhe o rasto. A jovem é de uma beleza deslumbrante, mas o que o atrai nela é o perfume, o cheiro natural que dela emana e que inspira a adoração dos outros.
Surge-lhe a Tentação. Inspirar amor nos outros. Quer o perfume para si. Mata, então a jovem com o único intuito de se apoderar do seu perfume. Debalde.

Grenouille descobre, então, o grande objectivo que irá orientar a sua conduta daí em diante: conseguir extrair o perfume, a essência da Beleza no seu estado puro e assim conseguir a submissão da Humanidade…

Grenouille deseja poder exalar o odor das pessoas que fascinam, o carisma que lhe foi negado à nascença.


Quando Grenouille entra em casa de Baldini, dá-se um ponto de viragem na história. Grenouille já tem o objectivo formado, mas precisa de passar por um processo de preparação, de aprendizagem antes de iniciar a concretização do sue objectivo.

Inicia, então, a aprendizagem do ofício de perfumista, inclusive os métodos e técnicas de extrair as essências das matérias-primas e depois misturá-las: extracção, composição da fórmula e misturação dos ingredientes.

Durante a estadia de Grenouille em casa de Baldini, Patrick Süskind aproveita para mostrar aos leitores a história da perfumaria em traços gerais e os meandros do ofício de perfumista.

Baldini é, na realidade uma farsa como parfumeur. Percebe do ofício, dos procedimentos mas não é um “nariz”.

Para Grenouille, que tem tudo para ser um parfumeur, a profissão é apenas a máscara que usa para ocultar os seus verdadeiros objectivos á sociedade.

É a sua camuflagem.

Primeiro com Baldini, em Paris, depois em Grasse com os Arnulfi, na extracção dos ingredientes.

Antes de Grasse, uma súbita crise existencial - como em todo o artista que se preze – obriga-o a afastar-se de Paris por ainda não saber como fabricar o Odor Supremo.

A Baldini também de nada lhe serve aproveitar-se do talento de Grenouille. Todos os seus sonhos se desmoronam a partir do momento em que Grenouille abandona a cidade.

Na segunda parte do romance, dá-se um interregno, marcado por um período de isolamento durante o qual Grenouille tenta encontrar-se a si mesmo e ao seu próprio odor natural. È aqui que nos apercebemos do alcance da sua natureza anti-social patente na necessidade de limpar o seu olfacto da mínima partícula de odor humano e reconciliar-se com o seu próprio odor. Até descobrir que, na realidade, não possui odor algum. É, então, chegado o momento de retomar a perseguição do seu objectivo.


Grenouille retorna à civilização, ao chegar à cidade de Montpellier onde encontra o lunático Marquês Tallade-Espinasse, um aristocrata enfatuado e pedante que procura a confirmação para uma extravagante tese sobre um suposto elixir para a vida eterna.

Mais um cego e surdo, desta vez vítima da adulação do manipulador Grenouille. A caba por encontrar a morte gelada, nos Alpes, quando julgava encontrar a fonte da eterna juventude, imediatamente após da partida da Carraça Grenouille para Grasse.

A personalidade de Grenouille

O parágrafo que melhor descreve a personalidade de Grenouille encontra-se logo na página 25.


A carraça que se faz deliberadamente pequena e insignificante para que ninguém a veja nem a esmague. A carraça solitária, fechada e escondida na sua árvore, cega, surda e muda, e apenas ocupada durante anos a fio, a farejar nos lugares à sua volta o sangue dos animais que passam e que jamais atingirá pelos seus próprios meios.

Durante a segunda parte, apercebemo-nos que Grenouille tem uma presunção desmedida - através da descrição dos seus delírios e sonhos megalómanos na gruta – e uma ambição incomensurável em relação a uma extravagante revolução no mundo dos odores.
Mas a faceta manipuladora de Grenouille só se começa a notar quando este regressa à montanha sendo a primeira vítima, a título de ensaio, o marquês Tallade-Espinasse. Até aqui fazia-o involuntariamente. A partir do momento em que sai da gruta fá-lo conscientemente.

A soberba de Grenouille

É, no entanto, neste parágrafo da página 149 que nos é dada a chave do romance, o móbil principal que está por detrás das atitudes e dos crimes de Grenouille.

(…) tinha conseguido, graças ao seu próprio génio reconstruir o odor humano e fizera-o de uma forma tão perfeita que até uma criança se enganara. Sabia agora que os seus poderes iam mais além. Sabia que podia melhorar este perfume. Seria capaz de criar um perfume não só humano, mas sobre-humano. Um perfume angelical, tão indescritível, bom e pleno de energia vital que quem o respirasse ficaria enfeitiçado e, quem o usasse, amaria Grenouille de todo o coração.
Sim, era preciso que o amassem quando estivessem debaixo do sortilégio do seu perfume: não apenas que o aceitassem como um deles, mas que o amassem até á loucura, até ao auto-sacrifício, que estremecessem de delírio, que gritassem, que chorassem de volúpia, sem saber porquê, era preciso que caíssem de joelhos como ante o odor frio de Deus, sempre que o cheirassem a ele, Grenouille! Tencionava ser o deus omnipotente do perfume (…) e o odor penetrava directamente neles até ao coração e ali tomava decisões sobre a simpatia e o desprezo, a repugnância e o desejo, o amor e o ódio. Quem controlava os odores controlava o coração dos homens.
Grenouiile estava totalmente descontraído, no seu banco da Catedral de S. Pedro e sorria (…) não havia uma centelha de loucura nos seus olhos, nem qualquer esgar demente no seu rosto. Estava em seu juízo perfeito. Achava-se tão lúcido e sereno que se interrogou sobre o motivo que o levava a desejar tudo isto. E concluiu que o desejava porque era essencialmente mau. E o pensamento fê-lo sorrir de contentamento. Tinha um ar da mais absoluta inocência semelhante a qualquer homem feliz.

Este trecho é a peça que irá encaixar no puzzlle das emoções demonstradas por Grenouille na altura do julgamento e execução – altura em que o sobredotadíssimo parfumeur percebe que aquilo que move a sua conduta é o ódio à humanidade.

Por agora a sua hybris, o seu orgulho desmedido, prossegue neste registo, ainda na igreja:

(…) que odor miserável tinha este deus! (…) Nem sequer era incenso verdadeiro, o que fumegava nos receptáculos. Era um mau substituto de tília, pó de canela e salitre. Deus cheirava mal. Este pobre pequeno deus era fedorento.

De facto, tanto no Antigo Testamento como nas tragédias clássicas, a hybris está ligada a um desejo imoderado de poder irá determinar o destino daqueles que desafiam os deuses. Será precisamente a vingança se não de um Jahveh, pelo menos aquela da divindade mais temida pelos Gregos e pelos Romanos: Némesis – Grenouille conhecerá a mais cruel das mortes, despoletada pelo sortilégio do seu perfume e marcada pela terrível ironia da deusa da Vingança e da Justiça punitiva...

Na verdade, trata-se, também, de um suicídio a partir do momento em que Grenouille verifica que nunca será amado (ou odiado) por si próprio, mas apenas e só enquanto estiver na posse do Perfume…

O romance é, em si, a negação do modelo teórico humanista relativamente à formação da personalidade, baseado na concepção de Jean-Jacques Rousseau o qual pressupõe que o Homem é naturalmente bom e que é a sociedade que o corrompe. Ao analisarmos a obra de Süskind, percebemos que, na óptica do Autor, o Mal parece ter uma raiz genética (hipótese mais do que controversa no seio da comunidade científica, que já originou acaloradas discussões a propósito da personalidade anti-social ou sociopata) que seria potenciada por um desenvolvimento destas características nefastas num meio social hostil – como é o caso.


Na Terceira parte – a chegada a Grasse – pouco mais terá que se lhe diga, trata-se apenas da execução de um plano previamente traçado, delineado ao pormenor.

É em Grasse que Grenouille encontra os ingredientes de que necessita – as “flores” – que irão compor o perfume mais maravilhoso que já existiu, para além dos utensílios e da aprendizagem do processo de extracção dos odores e, onde irá revestir-se da camuflagem que lhe é essencial para afastar suspeitas. A profissão que lhe garante respeitabilidade – a de artisan parfumeur, em casa de Madame Arnulfi…


O Estilo e a Linguagem

Em vários momentos ao longo da narrativa, Patrick Süskind descreve a paisagem e o ambiente de tal forma que parece que os lugares têm alma e manifestam emoções semelhantes às dos humanos lembrando um pouco a escrita de Conrad em O Coração das Trevas.

Também as flores (as flores reais, não as metaforizadas) durante o processo de extracção dos odores, são descritas como se fossem humanas – aos olhos do assassino não existe qualquer diferença a não ser no odor em si.

(…) deitava as flores frescas nos alqueires. Estas, semelhantes a olhos, reflectindo o medo da morte, flutuavam um segundo á superfície e descoravam mal a espátula as empurrava e a gordura quente as absorvia. E, quase instantaneamente, amoleciam e murchavam e a morte colhia-as tão de súbito que não lhes restava outra escolha senão o exalar de um último suspiro perfumado numa entrega ao elemento que as afundava (…).

Trata-se de uma descrição fria de um processo, aos olhos de um assassino que mata obsessivamente os seres belos para lhes extrair essa mesma beleza e utilizá-la, depois, como instrumento de vingança contra a humanidade que o exclui por ser destituído dessa mesma beleza odorífera.

O único momento em que o plano de Grenouille corre o risco de ser desmantelado deve-se à intervenção de Antoine Richis, o pai de Laure – o ingrediente principal do perfume.

O extraordinário insight do pai de Laure provém de uma invulgar capacidade de análise e de síntese e, principalmente, de estabelecer um fio condutor entre os diversos elementos da investigação, o que lhe permite identificar o padrão de comportamento do assassino.

A única falha no raciocínio de Richis, a qual acaba por se converter na grande vantagem para Grenouille, é o facto de aquele raciocinar segundo categorias visuais – ao pensar que o objectivo do assassino é a beleza de Laure – e não olfactivas, o que o leva a pecar por excesso de confiança. Richis não conhece todas as variáveis em causa. Por isso não identifica o assassino nem as suas motivações. Mas antecipa o que vai acontecer.
O erro de Richis permite a Grenouille reagir prontamente ao imprevisto, antecipar-se ao adversário e passar à execução do plano B, atingindo, assim, o seu objectivo.

Durante a cena surrealista que se segue à subida de Grenouille ao patíbulo, o Perfume, que contém a essência de vinte e cinco jovens deslumbrantes, torna-se o seu advogado de defesa ao invés de constituir a prova da sua acusação. O julgamento termina com um mega orgia, desencadeada pelo sortilégio do perfume, que enlouquece a multidão, submersa por uma gigantesca vaga de luxúria e erotismo...

Grenouille apercebe-se, no entanto, ao observar a multidão, que nunca será amado por si mesmo, mas apenas e só enquanto estiver na posse do perfume. Mais: as pessoas amam o perfume e não a ele, Grenouille. Compreende, então, que a sua satisfação não está no amor mas no ódio, em causar o Mal. Algo que nunca lhe será retribuído enquanto estiver na posse do perfume, já que o inodoro Grenouille só desperta indiferença.

Decide, então, morrer por obra e graça da sua criação mais perfeita…uma morte desencadeada, mais uma vez por um excesso de paixão, despoletado por um Perfume cujo efeito é mais devastador do que uma bomba…Grenouille morre despedaçado, numa cena cujo teor surrealista e macabro quase poderia ser parte integrante de um filme de David Lynch…
No último parágrafo o sentimento dominante é o da partilha de um sentimento colectivo de satisfação, com uma ambiguidade de significação que leva o leitor a perguntar-se: que tipo de amor pode desencadear um acto de canibalismo?

Amor-luxúria?

Ou cumplicidade na satisfação por terem livrado a humanidade de um monstro?


Cláudia de Sousa Dias