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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Monday, September 21, 2009

“O Labirinto das Azeitonas” de Eduardo Mendoza (Casa das Letras)



Eduardo Mendoza desenvolveu aquele que considera “a mais infantil das tipologias da Literatura consagrada ao público adulto” (N.A.), exibindo em O Labirinto das Azeitonas uma invulgar maestria, ao subverter as regras do desenvolvimento da trama policial, recorrendo à inversão da perspectiva com a qual as personagens olham os factos e apresentando ao leitor uma realidade paralela que é positivamente valorizada, partindo do extremo oposto em relação a tudo o que é apreciado pela sociedade de consumo como se, de repente, atravessássemos para o outro do lado do espelho e passássemos a viver num mundo às avessas.


Desta forma, O Labirinto da Azeitonas prossegue no mesmo registo do romance anterior, O Mistério da Cripta assombrada, com o qual partilha o protagonista e algumas personagens, adjuvantes ou oponentes consoante o ponto de vista, como uma elaborada, refinadíssima e impiedosa sátira aos romances policiais tradicionais.

O Labirinto das Azeitonas tem como protagonista um sujeito evadido de um hospital psiquiátrico, socialmente excluído um ser “proveniente da mais baixa extracção social” (N.A.) cujo percurso como delinquente, se enquadra num conjunto de circunstâncias desfavoráveis que o atiram para o manicómio.


No início do romance ao que tudo indica, este doente mental é raptado pelo Comissário Flores, um polícia corrupto para que aquele possa ajudá-lo a solucionar um caso de desvio de uma avultada verba, facto ao qual parece estar ligado uma série de assassinatos.


O rapto do protagonista, dentro dos muros do hospital psiquiátrico onde se encontra internado, é o ponto de partida para uma história norteada pelo absurdo e que, ao contrariar abertamente as normas do realismo e da verosimilhança, se centra “nas normas e peripécias de um homem que percorre a cidade pelos telhados e pelo subsolo, obrigado, só Deus sabe porquê, a ver apenas o reverso das coisas” (N.A.).


Trata-se de um romance povoado de personagens burlescas e situações delirantes como aquela em que o piloto regressa ao serviço ,depois de ser operado às cataratas. Ou dos passageiros que apagam os cigarros e guardam as beatas atrás da orelha.

Também as cenas passadas dentro do manicómio, mostram a inversão da perspectiva com um ridículo Doutor Sugrañes cujo comportamento obsessivo compete a todo o momento com o dos loucos, sendo as suas ordens constantemente desautorizadas pela exposição ao ridículo.

A introdução de nomes hilariantes/alcunhas atribuídas aos “hóspedes” do manicómio tornam a obra suculenta, sobretudo quando nos deparamos com designações como

Pepito Purulências, atribuídas a seres humanos.


O próprio protagonista tem um aspecto entre o cómico e o ridículo, motivado pela forma inadequada de se apresentar nas diversas ocasiões, chegando a andar pelas ruas ora travestido ora ataviado apenas e só com uma gabardina. Ou ainda em trajes menores, de pijama na rua, ou simplesmente com um lençol enrolado à cintura.


O seu amigo e auxiliar, o professor de história Dom Plutarquette Pajarell – nome que é só por si uma paródia – é um intelectual cuja extrema ingenuidade cativa instantaneamente a simpatia dos leitores. As peripécias deste Plutarco dos subúrbios casam fortes ataques de hilaridade pelo acentuado contraste entre o elevado nível de erudição exibido e o ridículo a que se expõe, conferindo um tempero irresistível às suas desventuras, sobretudo aquelas que envolvem os amores como a sua primeira paixão, a repugnante Pustulina Mierdalojo.


A irmã do detective, ironicamente chamada de Cándida, é uma rapariga de alterne tal como todas as mulheres com quem se relaciona, que estão directa ou indirectamente ligadas ao comércio do sexo. E que se verão envolvidas na intrincada história, tecida à volta de uma mala com uma fortuna em dólares, roubada, e cuja pista vai ter a uma misteriosa fábrica de azeitonas recheadas.


Também o pseudo ministro Ceregumio Lavaca representa uma sociedade que está a apodrecer pela base onde nada é o que parece, dando corpo a um ministro elegantemente vestido mas que exibe uma tatuagem com a inscrição todas putas no braço e que da champagne a beber pelo copo dos dentes, às visitas. Um ministro que é na verdade um actor de filmes porno em final de carreira - Toribio Pisuerga, de seu verdadeiro nome – que se dedica a fazer publicidade de mau gosto onde surgem slogans como Com pomada de artista, não há hemorróida que resista assumindo publicamente a faceta kitsch. O protagonista utiliza frequentemente, à laia de subterfúgio, a submissão aparente para escapar a situações difíceis, conseguindo, desta forma, expor o suposto potentado ao ridículo, submergindo-o na própria vaidade.


Eduardo Mendoza é exímio em colocar em evidência o servilismo da sociedade da avidez e do desperdício, que idolatra o poder e o dinheiro, dedicando-se a adular quem detém o primeiro para obter o segundo ou vice-versa: um exemplo elucidativo é a cena em que o protagonista provoca o vómito dentro do avião só para dar uso aos sacos de papel aí dispostos para o efeito. Nesta atitude, podemos encontrar várias leituras possíveis: em primeiro lugar, uma crítica a uma sociedade que procede a soluções paliativas para evitar consequências desagradáveis ao invés de se apostar na prevenção como, por exemplo, evitar as zonas de turbulência, solução que implicaria custos que a empresa não estaria disposta a suportar. Tal como a recepcionista do hotel barato, que ignora o cliente mal vestido enquanto corta as unhas dos pés, assinala uma desadequação do comportamento típica uma sociedade em franca decadência no que respeita aos valores.


Utilizando o recurso ao ridículo, o Autor serve-se do protagonista anónimo - que acumula as funções de narrador, contando sempre a história na primeira pessoa, atémesmo no momento é que é raptado do manicómio - o qual assume a postura de um Dom Quixote alienado a lutar contra moinhos de vento que toma por gigantes assemelhando-se a um Padre António Vieira com o serão aos peixes, mas utilizando o humor cáustico ao invés da alegoria.


Na frase “…se todos fossemos milionários e não tivéssemos de trabalhar para ganhar para os feijões, não haveria futebolistas, nem toureiros, nem cançonetistas, nem putas, nem ladrões e a vida seria muito cinzenta e este planeta um lugar muito triste”, o virote é inequivocamente apontado para as figuras que aparecem continuamente nas revistas cor-de-rosa e nos media em geral, susceptíveis de serem admiradas e imitadas pelo público.


A este facto liga-se a evidência com que o dinheiro abre quase todas as portas, servindo de atenuante aos comportamentos mais excêntricos ou inadequados, como no momento em que o detective louco entra na fábrica, envergando apenas um lençol enrolado à cintura, sendo-lhe franqueado o acesso ao gabinete da direcção naqueles trajes depois de exibir, diante dos olhos ávidos da recepcionista, a polémica mala com o seu conteúdo.


Enquanto isso, o “Zé Povinho” espanhol anestesia-se da realidade miserável com as propriedades opiáceas dos desafios de futebol, que até lhes dá a oportunidade para cultivar um exacerbado nacionalismo: é a única forma de o conseguirem fazer. Uma dependência que é aproveitada por todos os que enriquecem à custa de quem vai, por exemplo, ao café ver o desafio mas que tem de se sujeitar à agiotagem nos preços imposta pelos donos, consoante o horário a que cada qual se senta à mesa, atingindo o valor máximo à hora do jogo. O pretexto para o exercício da xenofobia encontra, assim, no futebol, uma porta para se disseminar tal como se vê nas frases “Quem joga?”; "A selecção nacional contra uns cabrões”.


A narrativa está,também, polvilhada com um toque de surrealismo, patente na cena à porta do mosteiro altura em que observam uma procissão de “fantasmas”,camuflados pela neblina e que está estranhamente ligada à fábrica das azeitonas que a une ao mosteiro.


O romance é, como já vimos, uma radiografia de uma sociedade cujo edifício económico parece estar assente numa base de negócios paralelos, efectuados à margem da lei, tal como o glamour aparente da maior parte das figuras idolatradas na alta sociedade a ocultar a vulgaridade, a frivolidade e a ignorância.


Em contraste, a simplicidade dos frades que habitam a clausura in extremis no mosteiro enclausurados e subjugados pelo medo da manifestação dos próprios desejos. O mergulho no abismo da loucura por parte de alguns deles, cria uma intrigante semelhança entre os ocupantes deste edifício e os do hospital psiquiátrico, vivendo estes em condições ainda mais desumanas do que os primeiros, ajudando a extrema solidão a precipitar estados de senilidade ou favorecendo o desenvolvimento da esquizofrenia. Uma chamada de atenção para o perigo do excesso da austeridade no cumprimento das normas.


A história termina exactamente da mesma forma que começou, sugerindo um desenvolvimento circular. Uma chamada de atenção face à situação de imobilismo, relativamente aos problemas estruturas que enfrenta o país.


Um labirinto espelhado onde tudo é visto ao contrário de tudo aquilo que é convencional. Onde até o castigo é visto como um prémio. Onde num mundo enlouquecido pela ganância só os loucos alienados conseguem ser felizes. Na ignorância.


Cláudia de Sousa Dias

Sunday, September 13, 2009

"Aqui na Terra" de Miguel Carvalho (Deriva)


A junção de uma série de reportagens, revistas e compiladas, a ilustrar o Portugal contemporâneo finalmente publicadas em livro, com a vantagem de incluir todos os ingredientes que poderiam servir de base para o argumento de um filme. Um filme de cuja narrativa principal se destacaria a arquitectura de uma aliciante teoria da conspiração, a qual pode perfeitamente constituir a base de um romance cuja trama ande à volta de uma intriga contemporânea com base em factos reais ocorridos nos últimos trinta anos: desde a investigação do assassínio do Padre Max à morte do Cónego Mello, girando à volta de um combate entre forças políticas atrás das quais se escondem as peças do tabuleiro de xadrez das super estruturas económicas que sustentam o poder no país.



Particularmente saborosa é a última das estórias deste mesmo livro, intitulada “O Imaculado”, a expor o triunfo de uma personagem que poderia figurar na célebre alegoria de Orwell, A Quinta dos Animais, adaptada ao cinema com o título O Triunfo dos Porcos.



Da leitura de Aqui na Terra pode-se contemplar uma paisagem social e económica onde parece triunfar o caciquismo, a radiografia de um país onde a falta de vitamina D , leia-se de Democracia e Desenvolvimento – dois dos três D’s que, a par da Descolonização, constituíam a linha de orientação política em Portugal após o 25 de Abril de 1974 –, implicando um evidente raquitismo no que respeita à assimetria de desenvolvimento regional.



Assumindo uma faceta que muito o aproxima da forma de olhar do antropólogo, pela forma de observar padrões de comportamento e de cultura, conforme refere a Autora do blogue “havidaemmarta”, Miguel Carvalho consegue, ainda assim, transmitir para o papel uma visão romântica, acerca do Portugal mais pitoresco, do qual faz parte a fatia da população de reduzido poder económico mas que vive a vida através da fruição dos pequenos prazeres: Miguel Carvalho dedica-se a explorar os lugares mais recônditos, onde por vezes falta algo tão básico como o saneamento ou a electricidade, onde a população vai, muitas vezes, desaparecendo para levantar voo em direcção a céus onde que abriguem terras que proporcionem melhores oportunidades.



Um país onde, apesar de tudo, existe a esperança (remota) de dias melhores como resultado de uma mudança significativa a implicar uma evidente melhoria de qualidade de vida. Em última instância, recorrendo à via do sobrenatural, obrigando muitas vezes a que se acenda, uma vela ao Criador e, também… ao Outro… só por via das dúvidas.



Os títulos das estórias estão, todos eles, relacionados referências religiosas: “O Pecador”; “O Altar”; “O Cónego”; “A Seita”; “A Purificação”; “A Celebração”; “O Pastor”; “A Cruz”; “O Ritual”; “A Agonia”; “O Santuário”; “O Martírio”; “A Aparição”; “A Devoção”; “A Via Sacra”; “A Romaria”; “A Relíquia” e “O Imaculado”.



A ironia subjacente aos títulos escolhidos para cada uma das estórias/narrativas, aponta para um país muito menos laico do que aquilo que se poderia pensar, atendendo a que estamos na em plena Europa do século XXI, conforme se adivinha pela leitura da epígrafe de Alexandre O’Neill:



O Padreca, o diabo, a criadita,


o tarata, avelha alcoviteira, o galã


e, às vezes, um verdadeiro rato branco trapezista


tramaram para nós a estafada estória


da nossa própria vida



Aqui o trabalho quase de antropólogo efectuado por Miguel Carvalho funde-se com a missão do repórter, envolvendo as gentes do interior Norte e Centro de Portugal. A escrita é em Aqui na Terra é dotada de um toque de comicidade, que leva o colorido das personagens reais destas estórias e dá um sabor todo especial e pitoresco à obra. No entanto, Aqui na terra é um licvro onde sobressai humor, muitas vezes crítico e sarcástico, mas sobretudo humano, deixando, por vezes, transparecer alguma desilusão face a um vento de mudança que, nalguns recantos deste rectângulo do extremo ocidental do continente europeu nem chegou a soprar. Onde nos apercebemos que, por exemplo, que na meca do turismo religioso em Portugal existem contrastes chocantes, apresentando-se como um lugar onde se constata a cegueira de um povo dentre o qual, tal como no livro de José SaramagoEnsaio sobre a Cegueira -, só os santos mantém os olhos abertos mirando, com sobranceria, a humanidade.



Estórias como “O Cónego” ou “A Seita” evidenciam aqueles que detêm a audácia de remar contra a maré ideológica terão de pagar a factura com juros de agiota. Tanto em 1976 como nos dias de hoje. Sobretudo nas localidades onde governadas por gangsters e onde o tempo parece não correr, onde tudo permanece tão imutável como no tempo em que Eça de Queirós escreveu A Cidade e as Serras.



O monólogo do narrador na crónica do Festival de vilar de Mouros é, definitivamente, brilhante em termos de dotação de qualidade literária, pela fina ironia empregue de forma magistral ao longo de todo o texto, característica de que se serve o Autor para pintar todo um quadro de comportamentos sociais e, ao mesmo tempo, comparar de forma crítica e lúcida os gostos musicais de várias gerações cujos valores, formas de estar de estabelecer comunicação com o outro se projectam na música…



Logo a seguir, o Autor faz-nos chegar um apetitoso estudo sobre o universo da chamada “música pimba” a confirmar o gosto colectivo e secular, tradicionalíssimo e cultural, bem português, pelas cantigas de escárnio e mal-dizer.



Por último, a pérola negra da obra: a crónica “O Imaculado”, ou a dissecação de uma figura ávida de poder e, também, a mais sinistra personagem do livro, cuja leitura aponta alguns indícios acerca da extensão do poder do vil metal, na consolidação e expansão de pessoas individuais que se colocam acima da lei e se infiltram nas esferas do poder através de ameaças, intimação e violência, verbal e física, actuando como algumas personagens “O Polvo” , uma popular série italiana de há algumas décadas atrás, a causar a asfixia da estrutura daquele que deveria ser o poder legítimo.



Que os deuses tenham piedade.



Se puderem.



Se conseguirem.



Se os deixarem.






Cláudia de Sousa Dias

Friday, September 04, 2009

“A Costa dos Murmúrios” de Lídia Jorge (Dom Quixote)


O relato de uma época, onde a paisagem física e social é pintada com as palavras que mergulham na memória, impregnada de nostalgia. A fotografia de uma realidade social, enquadrada no cenário de guerra colonial na belíssima costa moçambicana.

O Prólogo, onde a Autora dá voz a Eva Lopo, começa por descrever a faustosa cerimónia da festa de casamento de Evita e Luís Alex, da qual sobressai a exuberância patente na profusão dos frutos exóticos e mariscos; destaque também par a outra cena, o reverso da medalha, ou o outro lado do paraíso, onde a matança dos flamingos, que constitui uma metáfora a representar a embriaguez que leva ao desejo compulsivo de matar de onde se depreende parecer fácil cruzar o limite de “matar para não morrer” e exercitar, a partir dali, o prazer de apertar o gatilho para “fazer o gosto ao dedo”. Lídia Jorge consegue mostra de uma forma crua e simultaneamente bela que a facilidade com que se dizima um bando de flamingos da cor da alvorada é a mesma com que se procede à chacina de um grupo de rebeldes locais. Trata-se de uma metáfora de coragem e integridade que nem sempre se consegue reconhecer de imediato: o bando de flamingos não se desfaz facilmente, mantendo a formação em direcção ao objectivo, apesar daqueles que ficam para trás e se afundam no pântano, caídos perante as balas do inimigo…

Um tiro de revólver põe fim à introdução sob a forma de prólogo mas é o sinal que marca a partida para o romance propriamente dito…

As relações entre os géneros

Na relação inicial entre a protagonista, a jovem Evita e “o noivo” parece existir, nos primeiros tempos, uma cumplicidade baseada numa convergência de objectivos: Luís é um matemático prestes a descobrir um novo teorema; e Evita uma mulher de letras – Filosofia e História – com uma visão que ultrapassa largamente a inteligência mediana. Na verdade, ambos são detentores de um nível intelectual bastante acima da média. No entanto, diferem de forma diametralmente oposta no que respeita aos mecanismos de reacção. Por exemplo, a chegada de Luís Alex a Moçambique é consequência de uma fuga aos problemas do quotidiano e de uma certa incapacidade em estabelecer prioridades, o que o faz mudar de convicções, de objectivos e até de “persona”, deixando de ser o homem pelo qual “...qualquer mulher se teria pendurado ao pescoço…com suspiros semelhantes aos das rajadas do Índico” .

Evita, por seu lado, vê na ida para Moçambique uma forma de virar a página e recomeçar a vida a partir de horizontes mais vastos, ao voltar as costas a um meio onde nunca poderá desenvolver o seu potencial, numa universidade onde os dados estão viciados e impera a estultícia das mentalidades empedernidas que colocam entraves a toda e qualquer manifestação de pensamento crítico ou analítico, sobretudo vindos de uma mente feminina. Isto porque Eva, durante uma aula de História Contemporânea, tem a audácia de fugir aos cânones e proferir uma resposta não normalizada, dissidente em relação àquilo que seria de esperar numa jovem universitária cujas ambições deveriam consistir em encontrar um marido com uma situação financeira atraente e ser mães. Eva, por seu turno, revela um conhecimento muito mais vasto ao revelar o acesso a informação que ultrapassa em muito a que circula dentro das fronteiras do país e dos valores preconizados pelo regime, quando se refere à teoria da relatividade de Einstein, sendo a sua explicação completamente desvalorizada e ridicularizada pelo professor titular da cadeira (pág. 195).

Logo nos primeiros capítulos, são-nos dados indícios relativos a esta diferença de personalidades no seio do casal protagonista. Logo nas primeiras páginas, a narradora ao descrever “o noivo” atribui-lhe uma característica a que se associa a algo de negativo: “uns olhos de peixe”e, portanto, inexpressivos, que o afastam da humanidade. Trata-se de uma associação com um animal conotado com comportamentos esquivos, com um carácter algo “escorregadio”, imprevisível. A camuflagem conferida pelos inexpressivos “olhos de peixe” , permite-lhe, também, esconder temporariamente as “garras”, as quais só exibirá após o casamento.

Helena, ou a alegoria da Beleza e da Discórdia

Durante a festa de casamento de Luís e Evita, surge uma figura feminina que chama atenção pela beleza flamejante dos seus cabelos e se destaca de uma multidão de mulheres morenas e comuns. Helena, a quem chamam “de Tróia”, possui aquilo a que se chama uma beleza absoluta e inquestionável, a incarnação do eterno feminino. Trata-se de um tipo feminino que tem tudo para atrair a fatalidade, como dá a entender Evita, num dos inúmeros enigmáticos diálogos a quatro. Com especial incidência na cena em que estão sentados os dois casais, à mesa do hotel, quando Evita se refere ao nome da jovem como estando associado, na cultura clássica, à expressão da discórdia ou “a causa do conflito”.

Os diálogos entre as quatro personagens principais – Luís Evita, Helena e o Capitão Forza Leal– com os restantes intervenientes na trama permitem-nos olhar para dentro de uma mentalidade onde domina o relativismo cultural e o paternalismo colonialista, patentes na forma como os colonos se referem aos nativos – “os blacks”. Paralelamente, através do discurso de Eva Lopo como narradora, vinte anos depois da ocorrência dos acontecimentos que fazem parte integrante no romance, é-nos transmitida, de forma quase onírica, a opulência em que vivem os colonos sobretudo a classe militar e respectivas famílias, como num oásis, criado num hotel onde se hospedam as esposas dos oficiais. Apesar do luxo aparente, os noivos têm, no entanto, de se refugiar na casa de banho para obterem alguma privacidade na noite de núpcias, em virtude da pouquíssima espessura das paredes do hotel. O gérmen da decadência parece começar a espreitar.

É, no entanto, na madrugada do casamento, enquanto os noivos se refugiam na brancura imaculada do mundo protegido da casa de banho, que dão à costa vários corpos de gentes locais, envenenados por metanol. Está dado o início à intriga policial, à volta da qual se desenvolve o romance e cuja solução tem uma forte ligação a questões políticas e sociais.

A cortina de fumo

O boato que se procura difundir para justificar a ideia de genocídio consiste, em primeiro lugar, na desvalorização da gravidade do massacre, ao mesmo tempo que se tenta justificar a necessidade de uma limpeza étnica, a qual ajudaria a impedir uma rebelião, levando a que as pessoas aquarteladas no hotel se sintam, enganadoramente, “a salvo”.

Ao enfatizar a frase “Não se consegue ter solidariedade com quem morre por estupidez como aqueles blacks”, insiste-se na ideia que se morre por não se conseguir resistir ao vício da bebida e não por se ter sido vítima de envenenamento.

A Escrita de Lídia Jorge

Profundamente analítica, crítica, metafórica e enigmática, a prosa de Lídia Jorge exige uma leitura atenta para que se possa apreender a mensagem na sua totalidade. A mulher madura que é Eva Lopo relata, como já foi dito, os acontecimentos vinte anos depois destes terem ocorrido: “o tempo em que era Evita” e em que “tinha a cintura fina”.

Eva começa por explicar a razão pela qual alguns factos ficam retidos na memória, composta por fragmentos.

O sentido da memória não tem explicação”- Para Lídia Jorge, na pele de Eva como narradora, não existe uma explicação racional para a memória: esta parece antes fixar-se por razões afectivas, pela forma como os factos atingem as pessoas, comparando a razão da memória à “razão do pêssego” (pág. 41):

é um absurdo pensar que as pessoas são superiores às aves, às trutas, aos pêssegos (…)”;
A memória é misteriosa como o pêssego”.

Mas a importância dos sentidos como a visão, o cheiro ou o som são, também, fundamentais para a fixação dos factos na memória, condicionando a escrita ficcional da Autora.

É desta forma que Eva Lopo irá recordar, ressuscitar aquela Evita que foi vinte anos antes, trazendo de volta a memória do olhar da jovem recém-casada e cheia de sonhos que era então: “Evita seria para mim um olho, ou um olhar”. Evita é, pois, uma forma de olhar o real numa dada época da vida.

A outra face da moeda

Outro aspecto que sobressai na obra é a submissão aparente dos habitantes locais:

Quando falavam, jamais viravam as costas” (pág. 44). Por outro lado consegue-se entrever, na cena da matança dos flamingos, que esta aparente submissão tende a ser erroneamente conotada com ausência de inteligência que, no entanto, está relacionada com um forte sentido de grupo e paciência quase infinita, com o objectivo de manter a identidade cultural africana.

A Violência de Género

Outro tema recorrente na escrita de Lídia Jorge é a forma de tratamento a que são submetidas as mulheres no âmbito conjugal. O maior exemplo desta realidade é Helena, brutalizada, maltratada e humilhada, sob todos os aspectos, pelo marido, inclusive em público.
Evita não chega a sofrer maus tratos mas, em alguns momentos ao longo da narrativa, está na eminência de o ser, uma vez que Luís Alex vê no capitão o modelo de força e prestígio social que deseja, a todo o custo imitar. O Capitão Jaime Forza Leal chega a dar, inclusive, conselho a Luís Alex, sobre como tratar a mulher, o que coloca Evita em situação de risco eminente. De notar que dentro do contexto social onde decorre a acção, aquele grupo de oficiais tem por hábito espancar as mulheres como ostentação de virilidade. Forza Leal chega mesmo a esbofetear a mulher durante o casamento de Luís e Evita, à frente dos convidados. O pretexto é o facto de a beleza dela chamar a atenção. Trata-se, no entanto, de uma forma de demonstrar domínio e posse relativamente à criatura com quem está casado. Pouco depois, outro militar sente necessidade de fazer exactamente o mesmo, por imitação e por sentir o reforço em ter o mesmo comportamento espelhado em alguém que ocupa uma posição social hierarquicamente superior. A mulher espancada fica a sangrar pelos ouvidos. Os convidados assistem à cena, impassíveis.

Um romance sobre valores

A Costa dos Murmúrios é, principalmente, um romance onde se discutem valores que assentam num continuum, onde num dos extremos está a grandiosidade e, no outro, a vileza.

“…e ninguém podia indicar se era grandiosidade ou mesquinhez o impulso de pessoas que degolavam cabeças e as espetavam em paus e as agitavam em cima das habitações dos próprios degolados”.

De onde se extrai a questão: “o que determina o gosto por degolar?”

Ou o que determina o gosto por espancar mulheres?

Luís Alex, por exemplo, decide entrar para o exército em consequência do fracasso nos estudos. Só então passa a ficar viciado na guerra, como portal de acesso ao poder, de forma a esquecer uma derrota, o desmoronar das ambições.

Também a propósito do holocausto de Auschwitz, em analogia com o sucedido com a Guerra no Ultramar, a Autora, na pág 141, pela voz da protagonista, deixa claro que: “…a ciência e o crime poderiam ter entre si apenas uns passos de dança ou umas flexões de ginasta; entre o bem e o mal, uma mortalha de papel de seda”.

A realidade social no Ultramar

A análise da realidade social é outra das temáticas exploradas no romance onde a Autora aproveita para chamar a atenção para indicadores do nível de progresso de um país, como estando reflectidas nas condições em vivem as classes mais desfavorecidas e, em termos de insegurança e instabilidade social, na sofisticação dos sistemas de segurança nas classes sociais privilegiadas (quanto maior protecção menos a segurança).

Se um país está à beira de uma guerra, basta observar o comportamento do burguês rico. É o único com a antena afinada para prever o derramamento de sangue sobre uma terra” (pág 145).

O direito à autodeterminação da mulher, à expressão da beleza, da feminilidade e o direito a uma sexualidade autónoma

A Autora disseca, sobretudo, neste romance, a sujeição, a impotência feminina, enquanto enquadrada no regime legal do Estado Novo, usando para tal a figura de Helena, uma mulher que se destaca pelo aspecto físico invulgar: cabelo vermelho e olhar verde, a sobressair mediante as características físicas da mulher portuguesa comum - morenas, de olhos castanhos e pele amarelada.

A mulher do capitão Forza Leal encerra em si três arquétipos diferentes, de acordo com a descrição de Evita: a Beleza, a Inocência e o Medo. Três características que a transformam num chamariz para personalidades prepotentes que desejam por companhia um ser vulnerável a quem possam dominar.

Helena , educada num colégio de freiras é desde cedo submetida, a uma educação normalizada, até na forma de vestir, pouco condizente com a sua verdadeira personalidade e com o desejo de livre expressão da própria feminilidade e sensualidade. Este conflito está patente no esforço notório que faz para “ser boa” e “obediente”, como resultado de pressões externas que a levam, por exemplo, a tornar-se na sombra do marido de forma a ser aceite socialmente , comportamento que se traduz na observação de comportamentos servis, como na cena em que tem de descascar crustáceos para o marido comer.

Helena é, também, uma mulher com o pensamento crítico fortemente condicionado, estando constantemente a repetir discurso do inculcado pelo marido.

Esta é uma das razões pelas quais Eva prefere que Helena não fale. Para que a imagem de Helena continue como um quadro de beleza mítica, como símbolo da perfeição. Helena é uma mulher lúcida mas sacrifica os desejos e a liberdade de expressão, de livre circulação, de liberdade de escolha e de pensamento, como forma de auto-punição, ao recriminar-se por algo do passado, socialmente tido como reprovável.

No seu discurso é notório o sarcasmo e a amargura. Helena desempenha, a dada altura, o papel da serpente que irá expulsar Eva do seu paraíso genesíaco, obrigando-a a enxergar a realidade quando lhe mostra um conjunto de fotografias que expõem as atrocidades nas quais participou Luís Alex, durante o ataque a uma aldeia.

Helena é a mensageira que abre a porta para o conhecimento à até então inocente Evita.

Eva é, também, uma mulher lúcida, mas mais racional que Helena, porque detentora de uma enorme capacidade dedutiva e de todo um historial que lhe permitiu desenvolver o pensamento crítico: Eva/ Evita frequentou a universidade, tem uma cultura erudita e o hábito de colocar questões incómodas. A sua curiosidade insaciável é um dos factores que lhe permitirá desvendar o crime que tem intrigado as consciências colectivas dos habitantes da Costa dos Murmúrios, que são cuidadosamente desinformados por todas as autoridades institucionais. Evita apercebe-se, antes de todos, juntamente com o jornalista da gazeta local, poeta revolucionário, da intencionalidade criminosa que envolve a mortandade à qual parecem estar subjacentes objectivos relacionados com a necessidade de repressão de movimentações rebeldes, aproveitando a quem interessa, a oportunidade para efectuar uma limpeza étnica e ideológica. A suspeita agudiza-se após a morte de Bernardo, o competente telefonista do PBX, cujo desaparecimento se torna muito conveniente para o Exército oficial, pelo risco de que o negro pudesse passar informações ao inimigo. A dada altura da narrativa, parece existir, também, uma atracção mútua entre Eva e Helena, que será reprimida e desvanecida por condicionantes culturais.

Na pág 70, durante uma discussão travada entre Evita e Alex, a jovem afirma, numa clara atitude de afirmação da própria independência, que “…a atitude de vigilância da pessoa sobre si mesma é tão desonesta como uma castração e equivale a uma desconfiança da pessoa sobre si, a um conhecimento de fragilidade” e que “…Só os frágeis se auto-punem deste modo”. Eva, ao constatar a falta de personalidade do marido, acaba por não conseguir respeitá-lo, principalmente quando constata a forma como o noivo enlouquece gradualmente com a guerra e a sede de poder.

Na pág 71 podemos constatar a forma como se refere aos criados que trabalham na Marisqueira extrapolando a ideia para todos os africanos:

“…os filhos da mãe dos criados. Todos queriam trabalhar na Marisqueira para escorropicharem os copos”. Luís Alex deixa também escapar algo relativamente aos factos sucedidos durante a guerra, que confirmam aquilo que Evita teve a oportunidade de observar nas fotografias. E também se apercebe a forma como o cinismo e a desinformação proliferam ao deixar entrever na frase “Ninguém falava em guerra com seriedade”, a forma como o léxico utilizados pelos detentores do poder visava deliberadamente atenuar a realidade dos factos sempre que relacionados com uma possível rebelião: assim, “revolta” era substituída por “banditismo”; a repressão contra o pseudo-banditismo era chamada de “contra-banditismo” e de “contra-subversão”.

Vinte anos depois, Eva Lopo constata a degradação do hotel Stella Maris, símbolo daquilo que acontece um pouco por todo o país, identificando-a com o saneamento dos vestígios referentes à presença portuguesa: uma vingança operada pelo Tempo.

No final Helena continua a ser para Evita o símbolo da beleza absoluta, apesar de ambas se terem afastado e deixado de comunicar por imposição dos respectivos maridos e das circunstâncias da vida.

Helena tinha a alma toda de fora como uma chama que se revela e consome o objecto a que foi ateada”. O capitão Forza Leal não se consegue desligar de Helena, para poder continuar a exibir o seu domínio sobre a presa. Para ele, a perda seria uma derrota um desprestígio, uma humilhação que não conseguia suportar.

Evita esforça-se por afirmar a própria independência, ao assumir a própria sexualidade e o direito de fazer as próprias escolhas ao seleccionar os parceiros.

O aliado

O Jornalista d’ “ A Gazeta” da localidade tornar-se o principal aliado de Evita e, também, o seu portal para a liberdade, a janela que lhe permite vislumbrar o mundo fora da prisão do casamento. Este é, no entanto, um homem de muitas mulheres: possui duas esposas e oito filhos.

No entanto, o seu sonho mais secreto é evadir-se de África e estabelecer-se num país nórdico, onde poderá usufruir daquilo que mais ambiciona: a liberdade de expressão. Isto porque apesar de assinar uma coluna no jornal, onde publica os seus textos que assumem a forma de uma crítica velada ao regime mas que muito poucos conseguem decifrar ,é uma situação que o satisfaz muito pouco.

O que desgosta o jornalista em relação à região onde habita é o facto de todas as atitudes serem camufladas. O título dado ao texto é a alegoria que ilustra este mesmo comportamento colectivo, uma vez que a acção e o desenrolar das verdades que estão ocultas têm de se efectuar numa sociedade onde tudo é velado – a sociedade do disfarce – onde nada daquilo que é realmente importante é dito às claras ou em voz alta. Onde as pessoas se exprimem através de sussurros. Murmúrios. Onde prolifera o boato. Como aquele que atribui ao vício do álcool a causa da morte dos corpos que aparecem a boiar na costa. Naquele lugar, murmura-se “como o vento do Índico que antecede o silêncio. Um silêncio que fala.

“…o silêncio falava, era mais articulado do que a voz. Um murmúrio, provindo da voragem invisível, ondulava no ar com as ondas amplas e falava, mas tudo para se ouvir imensamente pouco”.

Também as frases codificadas, na coluna assinada pelo jornalista, soam um pouco como os ventos que murmuram no Índico, onde os factos menos importantes, dramáticos mas triviais, ocupam um lugar de muito maior destaque do que aqueles que são susceptíveis de causarem maiores cataclismos sociais e culminar numa reviravolta política. Esses são cuidadosamente abafados e relegados para segundo plano.

A aproximação da nuvem verde de gafanhotos de que fala o jornalista ao utilizar um discurso poético para codificar uma mensagem de conteúdo político, nuvem verde que acabará por engolir o exército ultramarino, caindo sobre este como uma chuva de gafanhotos cor de esmeralda é uma das componentes de maior valor literário e estilístico na obra pela implicação que terá nos acontecimentos da trama, a todos os níveis, e que sublinha o génio de Lídia Jorge.

Deixai que cada homem marche para a linha da frente. Quer se morra quer se viva (tal como os gafanhotos ou os flamingos) como a guerra e a batalha beijam e murmuram”. A nuvem terrestre de soldados e a nuvem aérea de gafanhotos chegam ao mesmo tempo à costa dos murmúrios.

Depois virá o silêncio. Um silêncio que grita o que não se quer ouvir.

Cláudia de Sousa Dias