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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Wednesday, July 21, 2010

“As paixões de Júlia” (“Theater”) de Somerset Maugham (ASA)



Sendo um dos maiores escritores britânicos de sempre, a figurar no panteão das figuras de referência do mundo literário do século XX como Ernest Hemingway, John Steinbeck ou T.S. Elliot, Somerset Maugham elabora um romance sobre as relações que se estabelecem nos bastidores do mundo do teatro e as vicissitudes da carreira de actor/actriz.

Em relação ao título, a escolha da ASA não parece ter sido a melhor porque redutora e sem ligação ao conteúdo essencial do romance, optando não pela temática principal mas pela periférica e pela faceta menos importante do carácter da protagonista. Os amores de Julia Lambert são apenas uma questão marginal nos interesses de Julia para quem o teatro é sempre a paixão maior, o pilar em que assenta a sua existência. É a partir do teatro e do dom da representação que Júlia constrói a sua teia de relações interpessoais dentro, à volta e fora do palco.

O principal objectivo na vida da protagonista, Julia Lambert, é representar. Esta encara o teatro como uma missão. Mas o principal desafio é o de representar o papel de …Julia.

Julia Lambert atravessa as diversas fases da vida, sempre a construir uma máscara, uma persona, com que vai cobrindo as suas verdadeiras emoções e desejos, inicialmente por questões profissionais. No entanto, começa também a utilizar essa mesma máscara nas relações pessoais, porque esta actua como facilitadora, isto é, como um catalisador do desenvolvimento dessas mesmas relações, e acaba por forjar uma personalidade fictícia e algo manipuladora. O seu talento como actriz tornar-se-á numa obsessão que requer treino contínuo, auto-observação e verificação permanentes, permitindo-lhe usar as pessoas com quem convive um pouco como cobaias.

Roger, o filho de Julia, é o único ser capaz de descodificar a verdadeira Julia, aquela que se oculta por detrás da "máscara". Ao aperceber-se do facto, Julia assusta-se, entrando em pânico por se saber analisada. Teme que o filho faça juízos de valor em relação ao lado menos brilhante ou atraente do seu carácter e manda-o estudar para longe.

Julia Lambert brilha nas salas de teatro e é aclamada pela crítica como a melhor actriz de teatro do Reino Unido, no período que antecede a segunda Guerra Mundial, sobretudo ao longo da década de 1930. A expressividade, carisma, e magnetismo que consegue transmitir convencem os líderes de opinião mais influentes. Alguns chegam mesmo a afirmar que Julia tem génio. No entanto, trata-se de uma genialidade que não surge espontaneamente mas fruto de um trabalho contínuo, de uma depuração e refinamento constantes. Todos os gestos, movimentos, expressões faciais, tonalidades de voz são reproduzidos inúmeras vezes, diante do espelho; cada bater de pestanas, cada trejeito de lábios, cada esgar, são meticulosamente estudados e catalogados para serem utilizados em ocasiões posteriores – dentro ou fora do palco – consoante o papel que Júlia esteja disposta a representar no momento.

Mesmo com os amigos, ou o marido – Michael Lambert, considerado por muitos (e muitas) o homem mais belo de Inglaterra, actor sofrível mas eficaz como empresário – consegue sempre levar a sua avante e satisfazer os seus caprichos, graças a uma invulgar capacidade de adular e ao seu evidente histrionismo. Só não consegue enganar Roger, o que lhe causa alguma inquietação. receia o silêncio, o olhar perscrutador e analítico do filho, que a examina como se fosse um aparelho de raio x, a ponto de desejar criar a distância de um continente entre ambos.

A expressão do Histrionismo de Julia

Para Julia Lambert o Teatro é a Vida. E a vida é teatro. Os conhecimentos técnicos de representação adquiridos são utilizados para persuadir ou comover os outros, quando em palco, e na sua relação com a plateia. Por vezes, torna-se demasiado forte a tentação de utilizar o talento para, na vida pessoal, conseguir os seus intentos, usando a capacidade de representar. A ponto de, mesmo as pessoas mais próximas como Michael, ou Sir Charles, o melhor amigo, nunca conseguirem aperceber-se dos contornos da personalidade da verdadeira Julia, encoberta por debaixo das suas inúmeras personae.

Já Roger, o filho do casal Lambert, desenvolve outro tipo de capacidades. A sua principal ambição é o conhecimento da alma humana. A mãe, sendo o mais complexo ser humano que conhece é um manancial de surpresas para uma mente curiosa e introvertida, voltada para a reflexão, fruto talvez de longas horas passadas na infância e adolescência entregues a si próprio.

Graças a esta invulgar capacidade de análise, Roger consegue apercebe-se de aspectos da personalidade da mãe que esta se recusa a admitir até para si mesma, uma vez que Julia veste diariamente a imagem idealizada de si própria, a qual a impede de assumir as próprias fraquezas ou desejos que não seriam bem vistos por aqueles com quem convive. É talvez por esta razão que coloca o seu papel de actriz como prioridade absoluta, face ao papel de mãe, esposa de amiga ou amante. Em Julia, todo o acto social é representação de um papel, de acordo com aquilo que se espera dela em casa ocasião. Julia é, segundo o modelo freudiano explicativo do comportamento, a personificação do super-ego ou dos mecanismos de defesa do ego, que são os subterfúgios que o Eu encontra para satisfazer os impulsos e desejos mais íntimos, sem ferir susceptibilidades. Para tal, Julia não hesita em recorrer à sublimação, à racionalização, à projecção para esconder, por exemplo, uma paixão extra-conjugal, ao enfatizar a importância de motivos secundários, como a necessidade de Roger ter uma companhia masculina com idade próxima da sua, em tempo de férias, de forma a esconder o motivo principal: a proximidade do amante.

Roger, em contrapartida representa a consciência, a lucidez e o sentido crítico, talvez por ser a personagem que mais se preocupa em destrinçar a ficção dos palcos da realidade da vida quotidiana e sobretudo em filtrar o mundo da ficção que os pais tentam trazer para o quotidiano.

Michael, o marido de Julia foi, durante a juventude, um actor de qualidade mediana devido a um temperamento talvez excessivamente fleumático, avesso a cenas hiper-dramáticas ou demasiado apaixonadas. Mas em contrapartida revela-se um empresário eficaz e eficiente na medida em que consegue efectuar produções de grande qualidade com poucos recursos financeiros.

Michael é para Júlia um excelente companheiro, mas como marido, na intimidade, revela-se algo entediante. Sobretudo para uma mulher efervescente como Julia, que tende a aborrecer-se com o temperamento pouco apaixonado de Michael e a sua obsessão pela poupança.

Thomas Fennel é um jovem e belo contabilista que se esforça por cumular Júlia de atenções, mas esconde uma enorme vaidade e um incomensurável desejo de ascensão social norteiam praticamente todas as suas atitudes, escolhendo as companhias de acordo com os seus interesses e segundo o grau de projecção social que estas lhe poderão proporcionar e não segundo os gostos pessoais ou afinidades. Todos os seus actos são calculados. À sua maneira também ele é um actor, usando o charme pessoal para consolidar as suas ambições. Estes traços de personalidade que acabam, segundo algumas opiniões por lhe conferir uma certa vulgaridade, não passam despercebidos à argúcia de Roger, apesar da sua aparência ingénua. A adulação e envolvência de Fennel dirigidas a Júlia começa, a dada altura, a fazer perigar o delicado equilíbrio entre a vida dentro e fora do palco. Pela primeira vez, a diva está com dificuldade em controlar as emoções que começam a tomar conta dela como uma quadriga desgovernada num circo romano.

Thomas Fennel desempenha um papel fundamental no romance: é o detonador que fará Julia accionar um dos traços mais poderosos e implacáveis da sua personalidade: o desejo de vingança, a qual executa de forma total e irrepreensivelmente limpa. Um cheque mate absoluto que vem fechar um período marcado pela paixão, ciúme e posse, mas cessa num saldar de contas, servido a frio e saboreado com o máximo prazer na mais completa solidão: a humilhação de Fennel, feita de forma a não haver possibilidade de retaliação, é acompanhada - e comemorada com total satisfação com um solitário jantar, composto de um nutritivo bife com batatas fritas, símbolo de tudo o que é censurável e proibido na dieta de uma senhora que vive da imagem, a atingir o limiar dos cinquenta anos ameaçando fazer ruir a imagem impecavelmente conservada à custa de uma dieta espartana e exercícios draconianos. Tal como o poderia ter feito um romance com um jovem e presumido alpinista social à sua imagem profissional e à solidez da vida conjugal de que gozava.

Um dos aspectos mais curiosos do romance onde podemos intuir a forma como a verdadeira personalidade de Julia poderá entrar em choque com as mentalidades mais conservadoras da época é-nos mostrada durante a viagem a França onde vai visitar a mãe e uma tia, numa aldeia provençal. Julia é obrigada a adoptar uma atitude low profile, que contrasta violentamente com o seu temperamento exuberante, face à rotina pia das duas senhoras idosas a quem a presença de uma actriz de teatro dentro de casa causa algum embaraço.

Os romances de Somerset Maugham são, em geral, dotados de uma fascinante galeria de personagens que atraem os leitores pela sua complexidade e atitudes pouco convencionais. Este não é excepção. Desde a teatral e narcísica Julia ao racional e fleumático Michael, dois extremos opostos no mesmo continuum, passando pelo perspicaz e sombrio Roger e pelo untuoso, interesseiro, venal e presunçoso Thomas Fennel, sem esquecer o irrepreensível cavalheirismo dedicação e fidelidade de Sir Charles Woodworth, que dedica a Julia um intemporal amor platónico. O romance contém algumas cenas de irresistível hilaridade, sobretudo nos diálogos entre Julia e a camareira, que teriam mais a ver com a cumplicidade entre dois membros da mesma equipa do que as tradicionais relações de hierarquia entre uma senhora e a sua criada. Ou então a relação que se estabelece entre Michael, Julia e a produtora dos espectáculos, uma mulher extremamente rica, excêntrica, caprichosa de orientação sexual não convencional mas de coração mole que não resiste ao mel dos sorrisos de Julia.

Um romance elogiado pela crítica, apesar de a protagonista não ter granjeado muita popularidade entre os admiradores do escritor. Ao que Somerset Maugham não deixa de chamar a atenção face a alguns falsos silogismos contidos nalgumas recensões na época em que foi lançado o livro pela primeira vez, no início dos anos 1940:

“…alguns críticos queixam-se que Julia Lambert, a minha heroína, não era uma criatura de elevada estatura moral, grande inteligência e nobreza de alma e daqui concluíram que era uma actriz medíocre. Deram-me a entender que várias primeiras actrizes partilhavam desta opinião. Aliás, uma actriz idosa, celebrada pelo seu talento dramático, quando eu ainda era jovem e ainda recordada pelas pessoas de meia-idade pelos comentários desagradáveis e bem-humorados que tecia, sobretudo pelos seus colegas de profissão, foi bastante mordaz nas afirmações que me dirigiu, mas julgo que a sua acrimónia de deveu a um equívoco. Esforcei-me, no meu romance, por deixar claro, que a minha heroína, independentemente dos seus outros defeitos, ao era uma snob, o que naturalmente impediu a senhora em questão de reconhecer o facto de que a minha Julia era uma excelente actriz. Todos temos a propensão para pensar que os outros só podem ter as nossas virtudes se tiverem igualmente os nossos vícios.

A grandeza é rara. Nos últimos cinquenta anos, vi a maioria das actrizes que se tornaram célebres. Vi muitas que possuíam talentos notáveis, muitas que se distinguiram num domínio que transformaram na sua especialidade, muitas que tinham encanto beleza e cultura, mas não me ocorre mais do que uma a quem possa, sem hesitação, atribuir grandeza. Falo de Eleonora Duse. Talvez Mrs. Siddons a possuísse. Talvez Rachel a possuísse, não sei; quando vi Sarah Bernhardt, já ela tinha passado a sua época áurea – a glória que a rodeava, a sua extravagância lendária, dificultavam um juízo objectivo. Era, frequentemente, amaneirada e capaz, por vezes, de um débito declamatório empolado, como qualquer prima-dona no seu apogeu; poderá ter possuído grandeza, mas eu só vi os seus apêndices; a coroa, o ceptro, a capa de arminho – as novas vestes do imperador da China, mas nenhum imperador da China. Com a única excepção que mencionei, apenas vi actrizes que eram boas, por vezes muito boas, em determinados papéis.

(…)

A qualidade do artista depende da qualidade do ser humano equem não possuir, para além dos seus talentos especiais, integridade moral, não pode distinguir-se nas artes; não negarei contudo que este facto pode manifestar-se de uma forma surpreendente e fantástica. Penso que Júlia Lambert é fiel à realidade. Gostaria que o leitor notasse que, embora os seus admiradores lhe reconheçam grandeza e embora ela aceite sofregamente a adulação, eu, pelo meu lado, não afirmei que ele fosse mais do que extremamente bem sucedida, muito talentosa, séria e diligente. Devo acrescentar que, no que e diz respeito, sinto por ela uma grande afeição: não me choca a sua estouvadice, nem me escandalizam os seus dislates; só posso considerá-la, faça ela o que fizer, com afectuosa indulgência.”

O próprio Autor justifica esta sua convicção, apesar de polémica, chegando mesmo a apontar o facto de Julia se desculpar por nem sempre conseguir desempenhar com sucesso alguns papéis, assim como o não ter conseguido triunfar no cinema. Dois indícios que parecem por em causa a sua versatilidade e corroborar a hipótese de que Julia Lambert conseguia ser, de facto, muito boa acriz, mas em papéis específicos, embora sem nunca chegar a ser verdadeiramente “grande”. Isto é, uma mulher de talento, mas sem o “génio” que lhe atribuíam.

Um romance que vem engrossar uma já se si vasta produção literária de elevada craveira com títulos como O Fio da navalha, A Servidão Humana, O Véu Pintado, A Lua e cinco Tostões e muitos outros.

Cláudia de Sousa Dias

Friday, July 09, 2010

"Presságio de Fogo" de Marion Zimer Bradley (Difel) e "A Canção de Tróia" de Colleen McCullough (Difel))



O rapto de Helena de Esparta e a guerra de Tróia: o mesmo episódio histórico sob dois pontos de vista opostos, isto é, o dos vencedores e o dos vencidos. São duas diversas, porque opostas, formas de descrever o cenário que deu origem à epopeia A Ilíada do poeta cego Homero. Tanto, que nem parece tratar-se da mesma história.




Em Presságio de Fogo, Marion Zimmer Bradley mostra-nos o cerco da cidade de Tróia, descrito por Cassandra, a princesa visionária. As heroínas são as mulheres e o olhar é feminino. Feminino e feminista uma vez que são elas quem, na realidade detém o poder da vida e da morte que asseguram a sobrevivência encarregando-se das colheitas e das tarefas do quotidiano que mantém acesa a chama do lar, enquanto os homens brincam às guerras e aos soldados.




Helena, a beldade suprema, incarnação de Aphrodite possui o encanto que actua, no entanto, como uma maldição, sobretudo com os homens, embora nem mesmo as mulheres consigam ser-lhe indiferentes; Andrómaca, mulher de Heitor, a esposa exemplar; Hécuba, rainha e mãe, sofre com a morte dos seus filhos e a destruição da cidade; e, claro, Cassandra, a narradora omnisciente mas que, apesar da suprema inteligência e coragem com que foi dotada, será, pela maldição do deus Apolo, condenada ao descrédito dos homens incapazes de reconhecer o méritro e o valor de uma mulher superior.




Uma narrativa fascinante que nos permite vislumbrar o mundo e o imaginário femininos e até a ambígua sexualidade da Mulher na Antiguidade. A Autora empenha-se em espelhar em figuras femininas arquetípicas da Antiguidade, a capacidade de amar, a coragem na adversidade, e a demonstração do sublime nas suas várias dimensões em detrimento da brutalidade e ambições mesquinhas dos homens, numa sociedade onde estes só se alcançam o prestígio através da guerra. Salvo duas honrosas excepções: o brilhantismo, a astúcia e o talento diplomático de Ulisses (destituído da ambição desmedida dos seus companheiros de armas) do lado grego; o encanto de sedutor de Eneias, do lado Troiano. Mas ambos são apadrinhados ou melhor "amadrinhados" por duas deusas: Athena e Aphrodite, respectivamente. Trata-se de duas personagens que detêm, também, um papel preponderante em A Canção de Tróia, de Colleen McCullough, embora caracterizadas de forma totalmente diferente: aqui, a astúcia de Ulisses atinge laivos de cinismo, num homem que não se detém perante limitações de ordem ética. Alguém para o qual os fins justificam os meios. Já Eneias, por seu lado, perde grande parte da nobreza de espírito que o caracterizava na obra de Bradley, apresentando-se como um indivíduo frívolo, narcisista e afectado.




O conteúdo da narrativa de A Canção de Tróia parece estar bastante mais próximo da versão de A Ilíada do autor original - Homero. Esta autora australiana que à data da publicação tinha já encetado a obra épica O Primeiro Homem de Roma, onde a personalidade de Lucio Cornélio Sila poderá ser confundida com a do seu Ulisses e a de Júlio César com este Eneias que ostenta laivos de pedantismo. McCullough conta-nos a história do ponto de vista grego e masculino, criando um forte contraste com a versão feminista de Marion Z. Bradley. Aqui, a narração distribui-se pelos principais intervenientes no enredo, os quais nos dão a conhecer o seu próprio ponto de vista, motivações e personalidade. É assim que ficamos a conhecer o brilhantismo estratégico e táctico de Aquiles, a coragem de Heitor, a capacidade de amar de Pátroclo, a ambição ilimitada de Agamémnon, o peso da (i)responsabilidade de Príamo, a luxúria de Helena, a única narradora feminina.




Cabe assim ao leitor juntar as peças do puzzle e tirar as suas próprias conclusões. As mulheres perdem, em A Canção de Tróia, a maior parte do protagonismo passando - com excepção de Helena - à categoria de figurantes.




A Canção de Tróia exalta, sobretudo a solidariedade (e, em alguns casos, o amor) entre companheiros de guerra e nações que se unem para conseguir um objectivo comum: recuperar a esposa de um Aliado, "raptada" pelo inimigo também ele estratégico, o príncipe troiano, herdeiro de um reino que é o principal obstáculo à hegemonia do Aqueus no Ponto Euxino: a federação das cidades-estado gregas pretendia obter o controlo das rotas comerciais marítimas, nomeadamente o controlo do Bósforo que dá acesso ao Mar Negro e que se encontrava, então, sob o domínio troiano, facto que também é mencionado em Presságio de Fogo.




Uma chamada de atenção para o contraste entre os motivos manifestos e os motivos latentes que estão, na maior parte das vezes, na origem de uma guerra. Tal como nos dias de hoje.




Dois romances históricos a expor o verso e o reverso do mesmo episódio histórico. Um e outro povoadoas de personagens arrebatadoras que, para além dos nomes, têm em comum a sujeição à irrevogabilidade do Destino e ao capricho dos deuses; a alvorada de uma revolução religiosa, que obriga a pensar onde acaba o respeito pelos deuses e começa a loucura dos homens.




Trata-se, além disso, de uma época fascinante porque coincidente com a transição de uma sociedade matrilinear, onde impera o poder da Mmulher para uma outra, regida pelo arquétipo masculino. Dois mergulhos, sob ângulos diferentes, num dos episódios mais sedutores da história da civilização ocidental, fonte de inesgotável inspiração de poetas, pintores, escultores, cineastas, encenadores...




A não perder.






Cláudia de Sousa Dias
5 Comments:
Cleopatra said...

Li duas vezes e gostei muito. Gosto deste tipo de livros e contextos.Bom Livro.
11:27 PM

É, simplesmente fascinante!
CSd

nandokas said...

Olá Cláudia,
Peço a tua permissão para te contar como cheguei até aqui.
Posso?...Há cerca de dez anos li o livro “Presságio de Fogo” e, na ocasião, escrevi no computador um ‘textozito’ baseado naquele livro. Volvidos estes anos, e como há um ano criei um blogue, resolvi nesta altura lá publicar o tal texto. Mas, então, reparei que no mesmo não fiz referência ao nome da autora, do qual agora já não me lembrava e, por outro lado, já não podia consultar o livro porque desconheço o seu paradeiro. Daí que fui à internet efectuar a pesquisa pelo título. E…E… foi assim que cheguei a este teu ‘post’. E, assim, tive a possibilidade de acrecentar uma nota ao texto para mencionar o nome da escritora americana. E, por isso, para ti o meu agradecimento.Hoje publiquei no meu ‘tretas’ o texto a que acima me refiro com o título “Calcanhar de Aquiles…”.
Se considerares algum interesse numa espreitadela até lá, acredita que serás bem recebida, ok?Entretanto, já li este teu ‘post’ e outros publicados posteriormente. Vou deixar aqui a minha opinião acerca deste e, quanto aos outros, comentarei no mais recente.
Acho este teu ‘post’ excelente, pela forma simples, clara e correcta como o escreveste, pelo menos no que respeita ao “Presságio de Fogo” [não conheço o outro livro].
Simplicidade de escrita, clareza no conteúdo da tua opinião e correcção no enquadramento da narrativa da autora. E que bem que me soube recordá-lo através das tuas palavras, dado que foi um livro cuja leitura me entusiasmou imenso na altura.
E, por me teres levado até essa recordação, o meu outro agradecimento.E, por fim, os meus parabéns!
Notas: Há cerca de 2 horas atrás tentei colocar este comentário aqui, mas, creio que devido a problemas de conectividade com o Blogger, o texto desapareceu na… blogosfera! Por isso, esta é a 2ª versão.

nandokas said...

Olá Cláudia,
Depois de publicar o comentário anterior, reparei que ficou registado às 05:05 PM e sem data. Como o teu 'post' é de Fev/2005, quero dar-te a situação do 'tempo' do meu comentário: 27/11/2007 às01:09.
Até!

Olá Nandokas!
não consegui ver a confusão com os comentários, mas têm acontecido tantas coisas estranhas...o nº de comentários já está correctamente mencionado em todos os posts(penso eu), mas actualmente há 21 textos do arquivo de fevereiro (dias 23) de 2005 que deixaram de estar disponíveis ao público em geral...
csd

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Saturday, July 03, 2010

“A Gota de Ouro” de Michel Tournier (Dom Quixote)



Apesar de a obra em questão ter algumas similaridades com Désert de Jean-Marie Gustave Le Clézio, A gota de Ouro é um romance sobre as questões do poder de sedução das imagens e o impacto que estas causam no imaginário dos humanos.


O fascínio que as mesmas imagens representam para o Homem tem a ver, na perspectiva do autor, com a crença de que a imagem faz parte da própria pessoa e que, alguém, ao apropriar-se dela e usá-la para os seus próprios fins está, literalmente, a roubar uma parte dessa pessoa, da sua alma. Um ponto de vista que Tournier parece ter em comum com os povos do deserto. O raciocínio é simples: uma simples fotografia poderá fragmentar a alma do ser humano, multiplicando-a e, simultaneamente, dividindo-a em tantos fragmentos quantas as reproduções da foto original. Tournier servir-se-á da alegoria personificada pela tentativa de Idriss, o protagonista, de recuperar a sua alma, arrebatada pela loira que lhe tirou a fotografia no oásis, ao abordar, de forma subtil e poética, a questão da despersonalização do ser humano a partir do momento em que o seu rosto passa a fazer parte do domínio público.


A Trama


Os primeiros parágrafos de A Gota de Ouro lembram o cenário bíblico do final do Génesis, pela descrição da vida nómada dos povos do deserto e da relação destes com os habitantes do oásis e, inclusive, a dedicação dos habitantes daquela região à pastorícia de cabras e ovelhas com toda a simbologia associada a estas duas espécies: a ovelha personifica a docilidade e a cabra, a desobediência, a rebeldia. Idriss e o seu amigo Ibrahim podem identificar-se, respectivamente, com estes dois arquétipos.


Ibrahim, é um menino nómada, de temperamento rebelde, que escarnece das convenções ligadas à fé religiosa, desafiando o próprio Medo. A imprudência, levada ao extremo, acabará, no entanto, por fazê-lo encontrar o seu destino de forma funesta. O desfecho da curta história de Ibrahim, a criança selvagem, sem regras, que gosta de brincar com o fogo, desafiar o perigo e o poder das forças superiores, assemelha-se a um castigo divino, tal como no Antigo Testamento.


As relações entre os adolescentes eram simples e unívocas: uma admiração um pouco receosa por parte de Idriss e uma amizade protectora e condescendente por parte de Ibrahim. Porque ele era nómada, entregue a si próprio e guardador de camelos, Ibrahim sentia, em relação aos habitantes do oásis, um desprezo indulgente que não atenuava, de forma nenhuma, o facto de trabalhar parta eles e dever-lhes a sua subsistência (…). Havia, na sua atitude, como que a reminiscência de um passado glorioso em que os oásis e os escravos que os cultivavam eram indistintamente propriedades dos senhores nómadas. Não obstante, este rapaz meio louco devido ao sol e à solidão, não temia nem Deus nem o Diabo e sabia tirar partido da própria aridez do deserto. O seu único olho, o esquerdo, porque o direito ficara-lhe agarrado aos espinhos de um bosque de acácias, para onde o seu camelo se atirara - via a dois quilómetros de distância a corrida de uma gazela ou a que tribo pertencia o condutor de um burro (…).
Descobria o caminho de uma formiga, subia ao formigueiro, desventrava-o com um pontapé e conseguia uma suculenta refeição, peneirando o conteúdo das galerias, embora aqueles insectos fossem temidos em Tabelballa, porque a sua morada subterrânea os põe em contacto com os demónios. A sua impiedade espantava, muita vez, Idriss. Não hesitava em beber de pé, segurando a tigela só com uma das mãos, quando é preciso beber tendo, pelo menos, um joelho no chão e apertar o recipiente com ambas as mãos. Falava abertamente do fogo, invocando, assim temerariamente, o Inferno, enquanto os habitantes do oásis empregavam prudentemente locuções como “o velhinho que estoira” ou “o fabricante de cinzas”. Não hesitava, até, em apagar uma fogueira deitando-lhe água para cima, o que é profanador. Idriss tinha-o visto um dia, regalar-se com o cérebro de um carneiro que em Tabelballa se enterra porque enlouquece quem o come, tão certo como se devorasse o próprio cérebro.
A própria visão de Ibrahim, concentrada apenas no olho esquerdo, cria imediatamente uma analogia com uma personalidade rebelde, algo demoníaca…


A chegada da mulher loira ao oásis


A vinda de uma mulher ocidental, loira e dourada, que fotografa o jovem Idriss e promete enviar-lhe uma cópia pelo correio é o primeiro ponto de viragem, ou o interruptor que irá accionar o mecanismo de desenvolvimento da história. Uma promessa feita no momento, por delicadeza ou falsa cortesia, mas que nunca se concretizará. E parte da alma da criança partirá para o desconhecido com a mulher loira, no todo-o-terreno, o que a impele, mais tarde, a emigrar em busca da fotografia, em busca da parte de si mesmo que nunca lhe foi devolvida, rumo à Europa.


A ideia de fuga germina num conjunto de crenças locais, fruto da tradição oral e de todo um conjunto de lendas, transmitidas de geração em geração, que mais tarde se combinam com um forte desejo de evasão, alimentado por uma curiosidade insaciável. De entre estas crenças emerge, também, o apelo às artes mágicas das tribos africanas, sobretudo em tempos de crise:
Quando a pouca sorte se abate sobre uma família apela-se (…) para a pequena comunidade dos descendentes dos escravos negros do oásis. Eles vêm danças no pátio da casa.
(…)
Ahmed bem Baad casava a sua filha Aicha com o filho de Mohamed bem Souhil e um grupo de músicos e bailarinos, vindos do Alto Atlas ia dar o seu colorido e os seus ritmos às cerimónias.


O ritual do casamento e, principalmente, um hipnótico bailado, executado pela bailarina negra vestida de escarlate, durante a cerimónia, adquire um significado simbólico central no romance onde a bailarina negra ostenta uma gota de ouro ao pescoço, pendurada num fio de couro, o símbolo máximo de beleza e perfeição, a arte transformada em símbolo abstracto, perfeito na forma, sem imitar nenhum tipo de objecto real. A antítese da imagem. A bailarina movimenta-se como uma chama com as vestes escarlates esvoaçantes. Por outro lado, a gota de ouro está associada, desde a presença dos Romanos, à ideia de protecção, afastamento do mau-olhado e a sua perda significa quase sempre infortúnio. Era usada pelo adolescentes patrícios para se protegerem da má sorte.


A bulla aurea acaba, assim, por um inesperado golpe de sorte, por passar para as mãos de Idriss.
Os tocadores tinham formado em frente da casa de Mohamed (…) um semicírculo viva e fantasticamente iluminado por archotes. A música exasperava-se, subia a cada momento, comunicava uma febre irresistível aos corpos imóveis dos espectadores. O ritmo aumentava de intensidade com um objectivo evidente a todos: provocar a dança, operar a metamorfose de todo o grupo numa dança única. E a metamorfose deu-se: uma mulher negra envolta em véus vermelhos e coberta de jóias de prata, surgiu no centro do terreno. Zett Zobeida só se exibia no auge da festa, porque era a alma e a chama dela (“âme et flame”, no original).


A dança de Zett Zobeida era, a partir daí, nessa estátua velada e imóvel, o ballet de cem jóias sonoras. Mãos de Fatma e crescentes de Lua, coxas de gazela e conchas de nácar, colares de coral e braceletes de âmbar, amuletos de estrelas e granadas, conduzem a sua dança num grande conciliábulo chocalhante. Mas o que atrai, sobretudo aos olhos de Idriss é, rodopiando em volta de um laço de labaredas, uma gota de ouro, de um brilho e contorno admiráveis. Não se pode conceber um objecto mais simples e mais concisa perfeição. Tudo parece contido naquele oval levemente arredondado na base (…) Ao contrário dos berloques que imitam o céu, a terra, os animais do deserto e os peixes do mar, a gota de ouro não significa nada senão ela própria. É o signo puro, a forma absoluta.


Que Zett Zobeida e a sua gota de ouro fossem a emanação de um mundo sem imagem, a antítese e talvez o antídoto da mulher platinada da máquina fotográfica, Idriss começou, talvez a suspeitá-lo nessa noite.


Duas Civilizações opostas


O recurso às lendas, baseadas na tradição oral dos povos do deserto, servem para exemplificar a forma como duas culturas se estruturam de forma diametralmente oposta: a civilização do Oriente, baseada no símbolo e na palavra, predominantemente auditiva, e a civilização ocidental que é, sobretudo, visual e que apoia a apreensão do real através das imagens.


A lenda do Pirata Barba Azul, mais europeu do que Oriental, é disso exemplo. Até porque a mesma personagem, situada entre a História e a lenda acabará por terminar os seus dias no Velho Continente. A lenda de Barba Azul é o primeiro exemplo concreto do efeito que causa o sortilégio das imagens na mente humana, com o seu expoente máximo no Retrato do Rei e na imagem coo forma de propaganda política.


O autor fará o mesmo mais tarde, num exemplo ainda mais flagrante, no episódio que descreve A Lenda da rainha Loira, uma das passagens de maior beleza estética e literária da obra.


A desmistificação da figura do pirata levantino, cuja alcunha de Barba Ruiva atribuída pela tribo Roumi, um povo que acreditava ser a cor vermelha dos cabelos originária do momento da concepção da criança: assim a cor ruiva em cabelos humanos dever-se-ia ao facto de, segundo a crença local, a criança ter sido concebida durante o período menstrual da mãe. As crianças ruivas do deserto eram, então, socialmente segregadas por parte das crianças de olhos e cabelos negros.
O domínio social pelo terror com que, anos mais tarde, a mesma “criança” de cabelos vermelho, agora ocultos sob um turbante cuidadosamente enrolado na cabeça e que lhe tapa, também, o queixo, assola o Mediterrâneo, sob a alcunha de Pirata Barba-Ruiva, servindo, talvez, de mecanismo de compensação para o escárnio sofrido na infância. Ao invadir o palácio do Sultão, no ano 912 da Hégira – 1534 A.D. –, manda retirar todos os quadros do monarca para que sejam destruídos, uma vez que a majestade que emana das imagens pintadas nos mesmos quadros são geradoras do respeito dos súbditos. Urge, portanto fazer com que desapareçam.


Com a assunção do poder, o novo soberano sente, no entanto, que este lhe pode fugir das mãos, uma vez que a máquina burocrática o pressiona no sentido de fazer com que a sua autoridade se dilua. Resta-lhe manipular a vontade dos homens através da imagem. O diálogo entre o pintor e o novo rei é elucidativo quanto a esta questão:


- Mas diz-me, supondo que o alto dignitário que retratas sofre de uma defeito físico, verruga, nariz partido, olho estrábico, vazado, que sei eu. Reproduzes essa deformidade ou esforças-te por disfarçá-la?
- Senhor, eu sou retratista e não cortesão. Pinto a verdade. A minha honra chama-se fidelidade.

(…)


- E não recearás que a tua cabeça possa vacilar sobre os teus ombros?
- Não, senhor, porque só à vista do seu retrato, o rei sente-se honrado e não ridicularizado por mim.
- Como assim?
- Porque o meu retrato seria o retrato da própria realeza.
- E a verruga?- Seria uma verruga tão cheia de realeza que qualquer um se sentiria orgulhoso de ter uma igual no nariz.
O pintor e o rei prosseguem a discussão, enveredando pelos temas da Filosofia e da Política:

(…)

- O rei reina e o rei governa. E são funções bem diferentes, até opostas. Porque o rei que governa luta dia após dia, hora após hora contra a miséria, a violência, a mentira, a traição. E fica enlameado até ao alto da sua coroa. Enquanto que o rei que reina, brilha como o sol e como o sol, espelha em sua volta lua e calor. O rei que governa é secundado por uma horda de carrascos horríveis que se chamam os meios. O rei que reina está rodeado de jovens brancas que se chamam os fins. Diz-se que às vezes essas jovens justificam aqueles carrascos, mas é mais uma mentira dos carrascos. Será necessário acrescentar que eu pinto o rei que reina e não o rei que governa?
- Mas o que são, pergunto eu, fins sem meios?
- Pouca coisa, concordo, mas que valem os meios quando fazem esquecer os fins e mesmo quando eles os destruíram com a sua fúria? Na verdade, a vida é um perpétuo vaivém entre estes dois termos.


Aqui discute-se não só a veracidade e a fidedignidade da questão do real e da informação que se pretende difundir pela imagem, a qual passará a fazer parte do domínio público, mas também, do colorido, da moldura do cenário que se cria à volta dareferida imagem, mensagens subliminares que visam manipular, de forma extremamente subtil ,o julgamento a interpretação do receptor da mensagem visual: a isto se chama propaganda política, que origina a discussão sobre a prevalência dos fins em detrimento dos meios ou vice-versa. Mas a mesma técnica é, também, largamente utilizada, nos nossos dias, pela publicidade como o Autor fará notar nos capítulos seguintes ao narrar a odisseia de Idriss na Europa e a sua incursão no mundo audiovisual.


De notar que, ainda no episódio do Pirata Barba-Ruiva, o pintor acabou por não fazer o retrato do novo rei, encaminhando-o para alguém que estivesse disposto a dá-lo a conhecer sob um prisma em que a sua cabeleira aparecesse como algo apreciável. Alguém vindo da Europa, da civilização que está habituada a tratar da imagem de figuras públicas. No caso do ex-pirata Barba-Ruiva, para este assumir uma característica culturalmente vista como desprestigiante teria de a enquadrar num contexto onde fosse vista como natural: uma paisagem outonal na Europa, uma cena de caça, retratada pela tecedeira de tapeçarias Kerstine, de origem escandinava, a viver no Oriente, uma artista consagrada e admirada pelos especialistas da arte.


No século XX, Idriss, ao deambular pelas ruas de Marselha, perde de vista a sua gota de ouro, e deixa-se embrenhar no mundo das imagens, o meio de que se serve o poder – político ou económico – para facultar a alienação da realidade, e esquecer o quotidiano onde impera a miséria.


Havia ali, segundo parecia, dois mundos sem relação, de um lado a realidade acessível mas áspera e cinzenta, do outro uma feérie, suave e colorida, mas situada numa lonjura impalpável.


No fundo Michel Tournier chama a atenção para a tendência das massas em se fixarem num mundo de fantasia, falso, de pechisbeque: o kitsch de que fala Milan Kundera em A Insustentável leveza do ser.


Parece haver uma relação de proximidade ou de quase perceria entre o glamour do cinema, da moda ou da publicidade que se ligam, muitas vezes, a uma realidade grotesca, envolvendo todo um mundo de corrupção e onde impera uma torpeza libidinosa, ávida de corpos jovens, atrelada por vezes a fenómenos marginais, como a prostituição e a delinquência, seguindo de perto a miragem paradisíaca de riqueza, fama e reconhecimento.


A pedolifia e a delinquência seguem de perto o jovem Idriss quando entra nesta esfera , passando, no entanto, e durante muito tempo, incólume, graças à inocência e ao factor sorte. Mas é como andar num trapézio sem rede, tal como acontecia com Ibrahim. Idriss não tem família na Europa nem ninguém, pessoa ou instituição a orientá-lo ou a protegê-lo. Durante algum tempo, Idriss usufrui dos mesmos benefícios da fortuna que o camelo que é, também, utilizado na publicidade e escapa ao matadouro ao encontrar a felicidade num nicho ecológico específico: um jardim zoológico onde se depara com o amor de uma camela, instantaneamente correspondido.


Também o comércio porno acaba por ser exposto aos olhos de Idriss num peep-show, ao qual disseca como a uma carcaça na mesa de um anatomista:

(...)

livros de capas berrantes e enigmáticas cobriam as paredes (…). Em contrapartida, as fotografias das capas ostentavam um erotismo brutal e pueril que apelava mais para a abjecção e para o burlesco do que para a beleza e a sedução (…), quanto mais estavam à vista os sexos em todos os pormenores da sua anatomia, menos se viam as caras.

(…)

Era uma espécie de compensação. Parecia que o homem ou a mulher, abandonando à fotografia a parte inferior do seu corpo, conseguiam esconder-lhes o essencial da sua pessoa.
O episódio de Milan e dos seus manequins de gesso vêm reforçar, ainda mais, esta despersonalização, associada ao mundo das imagens. É, ao mesmo tempo, uma crítica bastante mordaz ao artificialismo do mundo da moda e da publicidade, uma vez que se trata de uma deturpação, estilização do real a partir do qual se constroem toda uma série de estereótipos, da qual os manequins de Milan são o expoente máximo:


Quanto aos manequins, sendo eles próprios já de si imagens, a sua fotografia é a imagem de uma imagem, o que tem por efeito duplicar o seu poder dissolvente. Resulta daí uma impressão de sonho acordado, de alucinação verdadeira.


O mesmo conceito, aplicado à informação televisiva dos noticiários, mostra, também, que as imagens de um dado acontecimento histórico podem ser manipuladas, obliteradas ou omitida a explicação do seu contexto. Na página 174 desta edição da Dom Quixote, Michel Tournier refere um episódio da história do século XX pouco referido nos manuais: a situação no Médio Oriente e a atitude do Governo de Israel face à invasão da Faixa de Gaza. Às imagens e tentativas de justificar o facto opõe-se uma voz. O cântico tradicional de Oum Kalsoum, uma voz árabe, feminina, escutada em todo o mundo muçulmano, o som de uma civilização auditiva, sensível a todas as tonalidade emocionais, que perpassam através do timbre da voz, do ritmo.
A voz dela tem tantas nuances como todo o verde da natureza (…). A palavra tem força bastante para fazer que o cego veja.

A palavra oral, o canto, o conto, a récita, mas também a palavra escrita, de que se serve um mestre calígrafo amigo de Idriss, ao qual lhe explica A lenda da rainha Loira. A mesma lenda monstram-lhe que A caligrafia é a libertação. Escrever é a libertação.
Por outro lado, A imagem é sempre retrospectiva. É um espelho voltado para o passado.

(…)

na verdade, a imagem é o ópio do Ocidente o sinal é espírito, a imagem é matéria. A caligrafia é a álgebra da alma traçada pelo órgão mais espiritualizado do corpo, a sua mão direita. Ela é a celebração do invisível pelo visível. O árabe manifesta a presença do deserto dentro da mesquita. Através dela, o infinito desdobra-se no finito. Porque o deserto é o espaço puro, liberto das vicissitudes do tempo. É deus sem o Homem. O calígrafo, que na solidão da sua cela, toma parte do deserto, povoando-o de sinais, escapa à angústia do futuro e à tirania dos outros homens (…).

A Lenda da Rainha Loira nasce, mais uma vez, de uma crença local onde os seus habitantes acreditavam ser o dourado dos cabelos proveniente do facto de a criança ter sido concebida à luz do dia e, como tal, assinalava a impudicícia como sendo o traço principal da sua personalidade, que seria, de acordo com esta perspectiva, inata.

A Criança solar é condenada a nascer loira, de um loiro acusador, indecente, fascinante.
O cabelo loiro é, nesta perspectiva, a marca do escândalo que incentivava ao desprezo dos seus pares. A jovem, no entanto, reagirá de forma diferente da de Barba Ruiva. Sem o germe do rancor, torna-se introvertida reservada. Porque o desprezo a que é vetada não provém da repugnância mas de outra coisa. O cabelo loiro está associado a um tipo de beleza fatal que apesar do impudor, desperta a cobiça, porque fascina, resplandece.


A jovem loira, desprezada na infância, é cobiçada na adolescência e passará a usar o véu ao tornar-se rainha, para não atrair a desgraça sendo, depois, imitada pelos seus súbditos. Com o envelhecimento, a beleza dilui-se, mas a rainha conserva o retrato da sua juventude o qual mantém intacto o sortilégio despertado pelos seus traços regulares, simétricos e enigmáticos. De acordo com o poeta Ibn al Houbaida, o perigo da imagem reside na transfiguração do real, sendo esta, por si só, criadora de ilusão.


A imagem é dotada de uma irradiação paralisante como a cabeça da Medusa, que transformava em pedra os que passavam sob o seu olhar.Todavia essa fascinação não é irresistível senão aos olhos dos analfabetos. Com efeito, a imagem não é mais do que um emaranhado de signos e a sua força maléfica vem da função, confusa e discordante, dos seus significados (…).


Para o literato, a imagem não é nada.


À lenda junta-se a parábola do filho do pescador que aprendeu a ler e, com isso, a decifrar as imagens, complementando-as com as palavras. A mensagem final de Tournier vem coroada com a belíssima Lenda da Rainha Loira, acabando por concluir que Palavra e Imagem realizam, se calhar, um casamento perfeito e que ambas as civilizações têm mais a ganhar com a partilha do que com o conflito pela posse material das coisas.


Idriss poderá ter perdido a oportunidade, ao perder-se nos meios e ter perdido de vista os fins. Poderá ter mergulhado no abismo de Ibrahim ao brincar com o fogo, aproximando-se mais do que deveria do precipício que o leva à derrocada...


Ou talvez não. Fica a interrogação no ar. E todo um mar de possibilidades em aberto.



Cláudia de Sousa Dias