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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Friday, September 30, 2011

A Pele” de Curzio Malaparte (Livros do Brasil)



Tradução: Alexandre O’Neill

Malaparte nasceu em Prato, Toscânia, com o nome de Kurt Erich Sükert, sendo Curzio a corruptela do nome original em alemão para a língua italiana e Malaparte, um jogo de irónico reportando-se ao destino de Napoleão Bonaparte, ao decidir adoptar um nome de guerra como sátira ao homem que foi uma espécie de inspiração para os condottieri europeus do século XX.

Filho de pai alemão e mãe lombarda, Malaparte estreia-se em 1918 como jornalista, após ter integrado o Regimento Alpino, durante a primeira Guerra Mundial. Em 1922, participou na Marcha de Roma, integrado nas tropas de Mussolini. Foi, durante um curto período de tempo, na década de 1920, membro do Partido Nacional Fascista e colaborou em vários jornais, publicando ensaios e artigos, paralelamente à carreira de escritor. Começa, no entanto, a distanciar-se do partido ao criticar a corrupção nas altas esferas de poder político e e económico e a olhar as classes mais favorecidas como as verdadeiras causadoras da caótica situação económica do país, conforme deixa entrever no romance-ensaio “Viva Caporetto” de 1921. O livro foi, claro está, censurado e classificado como ofensivo para o Exército Real. Mais tarde, escreve a obra Tecnica del Colpo di stato (Técnica de golpe de estado), cujo discurso adquire uma tónica refinadamente viperina.

Tal não surpreende os leitores já que o próprio pseudónimo do Autor denuncia as convicções anti-imperialistas de Malaparte, as quais se confirmam quando, mais tarde, ataca Hitler e Mussolini, pondo a nu os seus duvidosos esquemas políticos de ascensão ao poder. Este facto originou a expulsão do Partido implicando, simultaneamente, o exílio na ilha de Lípari, onde decorreram os factos que estiveram na origem do episódio de “Febo, o cão-lua”, um dos mais belos trechos de “ Pele.

Malaparte foi ainda detido várias vezes, durante o regime de Mussolini, na infecta prisão de Regina Coeli: em 1938, 1939, 1944 e 1943. Foi, no entanto, durante esse período que construiu a fabulosa e estranha “Casa Malaparte”, em Capri – a qual serve de cenário ao filme A Pele mas também a Le mépris (O Desprezo) de Jean-Luc Goddard e baseada no romance homónimo de Alberto Moravia.

(confirmar)

Depois de sair da prisão, Malaparte muda de estilo e também de género literário, dedicando-se a escrever alguns livros de contos autobiográficos, onde é evidente a marca do realismo mágico, cujo ponto culminante é atingido na obra Donna comme me (mulher como eu), em 1940.

Malaparte exibe uma profundidade igualada apenas por muito poucos autores seus contemporâneos no que respeita à história da Europa e situação económica europeia da altura, assim como da personalidade dos principais líderes dos estados europeus, conhecimento que adquiriu aquando da sua integração no contingente diplomático italiano.

Em, 1941, foi enviado como correspondente de guerra para cobrir as movimentações na Frente de Leste, ao serviço do Corriere della Sera. Muitos desses artigos, escritos debaixo do cenário de guerra, a partir da Frente Ucraniana, foram suprimidos ou censurados mas recuperaram-se em 1943 sendo depois reunidos num volume intitulado O Volga nasce na Europa. Esta experiência serviu-lhe de base para escrever “Kaputt” em 1944 e “A pele”, em 1949. O primeiro é visto como um fresco representativo da sociedade europeia na primeira metade do século XX, cujo cenário é a guerra no Leste europeu no período que medeia os anos de 1943 a 1945. A história é contada segundo a óptica de quem vê os Americanos como adoptando atitudes de invasores tanto ou mais do que os próprios Alemães. Há mesmo quem afirme não haver em toda a literatura do post- guerra uma obra que expresse tão bem o contraste entre a pujante ingenuidade da América triunfante, face à experiência da destruição das estruturas institucionais, a par do colapso moral da Europa. Como resultado, o livro foi proibido e colocado no Index da Igreja católica. Acerca da obra, diz-se que a principal característica é o chocante contraste entre o humor grotesco e o elegante pessimismo das personagens.

O Autor esteve, tal como o protagonista de “A Pele”, ligado ao alto Comando Americano em itália, sob as funções de Liaison Officer. De 1944 a 1946. Em 1947, instala-se em Paris. Depois de algumas incursões na política de inspiração maoísta na China e alguns anos de complicações relacionadas com o seu estado de saúde, Malaparte escreve o seu último romance: “Maladetti Toscani”, no qual ataca a cultura burguesa. O escritor morrerá de cancro no pulmão em 1957.

O Período Áureo: “Kapput” e “A Pele”, semelhanças e diferenças

Em Kapput, Malaparte dedica-se a tecer, sobretudo, um retrato detalhado da elite fascista e nazi, incluindo os colaboradores com o regime, implementados na Finlândia e na Roménia.

A temática de A Pele apesar de ter bastante em comum com a obra anterior, sofre algumas variações. Em primeiro lugar, introduz uma nota de surrealismo na forma como são narrados os acontecimentos que englobam a dissolução e a destruição dos valores morais à época, tendo como cenário a cidade de Nápoles e o inquietante Vesúvio.

Como não poderia deixar de ser, o livro teve mais uma vez uma má recepção por parte do público mais cnservador, por ser não ser encarado, em muitos aspectos, como uma alegoria. Nesta polémica obra, Malaparte aponta o esvaziar de sentido com que lutam, quer os homens quer as nações, por algo tão abstracto como uma bandeira, ou qualquer outro símbolo de poder que represente uma dada facção ou grupo. Na óptica do Autor, o cidadão comum, obedece apenas a uma única bandeira: a própria pele. Esta é a obra que mostra a contradição entre o individualismo extremo a que chega o ser humano em circunstâncias limite, face ao colectivismo exigido pelos regimes totalitários pelos quais Malaparte circunavegou ao longo da vida.

Este dualidade estilística, para além da ideológica, também presente n”A Pele”, transcende a própria obra, projectando-se ao longo de toda a vida do Autor, inclusive, na soberba e extravagante moradia que serve de cenário ao filme de Liliana Cavani, baseado na obra de que aqui tratamos. Entre ambas as dimensões criativas - a Literatura e a Arquitectura - encontramos o binómio surrealismo-realismo, que é, como já foi dito, uma presença muito forte em “A Pele”.

A Casa Libera (nome do arquitecto que a projectou, segundo as orientações de Malaparte, homem ligado às altas esferas sociais do fascismo, cujo design inicial da casa era tão frio, racional e linear que, segundo se diz, pouco a diferenciava de um forte, um bunker ou uma prisão). Malaparte e Libera desentenderam-se ainda durante a construção do edifício, após o que o escritor dirigiu a elaboração da obra na sua fase final, seguindo uma orientação estética completamente oposta à do arquitecto. Dizem os especialistas que o local acidentado e a estranha e impossível esquadria do edifício é hoje olhada como uma espécie de panteísmo retro, enquadrado, talvez, no mundo antropomórfico do pré-cristianismo romano.

Várias vezes referido no romance de que aqui tratamos, o general alemão Erwin Rommel referiu-se à casa Malaparte, durante uma curta estadia naquela residência, a caminho do Norte de África: perguntava ele se o escritor teria construído, ele próprio, a casa onde vivia, já depois da ruptura com Libera. Ao que Malaparte respondera, com a picardia que o caracterizava, que a tinha comprado “tal como estava”, tendo-se apenas limitado a 2desenhar o cenário" (a casa situa-se em Capri, de frente para o Vesúvio). Tratava-se de um trocadilho, uma piada, tipicamente latina, já que os italianos têm o hábito de relativizar e ironizar com tudo. Mas Rommel leva a mal, até porque o surrealismo, contido nas entrelinhas é para a ideologia nazi, uma mentira e, também, a grande subversão do século, uma vez que coloca em evidência o indivíduo, a morte do classicismo e dos deuses, privilegiando o instinto e o oculto.

Malaparte é comparado com Goddard por alguns peritos em cinema e literatura está muito para além da pusilanimidade de alguns autores anglo-saxónicos, muito conceituados na época.

A Trama de A Pele

À medida que avançamos na leitura do romance, vamos tomando gradualmente consciência da humilhação da Europa que, durante aquela guerra e na óptica do Autor, se vê invadida por duas vezes: em primeiro lugar, pela Alemanha, obrigando-se a suportar o cinismo da elite nazi e a arrogância das suas tropas; e, depois, pelos EUA, pretensamente libertadores e igualmente arrogante pela boçalidade do seu cartesianismo. No meio deste fogo cruzado, está um povo, neste caso o de Nápoles, obrigado a abdicar da própria dignidade para sobreviver no quotidiano de uma economia destruída, num terreno onde nada resta: nem trabalho, nem dinheiro, nem bens susceptíveis de serem trocados pelo que quer que seja.

Excepto... a beleza dos corpos.

Aos napolitanos nada resta a não ser prostituírem mulheres e crianças para matar a fome e conservar a pele. Os invasores têm poder de compra. A única forma de lhes extorquir o dinheiro é através do comércio do sexo, chegando ao ponto de as mães alugarem os corpos dos filhos por um pacote de cigarros que, por sua vez, é trocado por dois pães grandes de centeio e, assim, alimentar a família durante mais um dia.

A prostituição infantil constitui um dos aspectos mais chocantes do livro. É destinada a um mercado muito específico: a divisão do Gomils, de Marrocos, que integram o Exercito Aliado.

Do lado americano, sobressai o desprezo pela Europa e pela sua incapacidade em fazer frente à invasão alemã. O episódio intitulado “ A Virgem de Nápoles” é disso exemplo ao enfatizar o desprezo pela corruptibilidade dos pais que prostituem as próprias filhas e que só é proporcional ao fascínio que a própria corrupção causa nos invasores que se reflecte no prazer de corromper com o dinheiro.

Perante a miséria e abjecção humana do cenário social circundante, deparamo-nos com a extrema beleza do cenário físico, uma beleza intemporal e absoluta, pagã e impudentemente indiferente ao destino dos humanos. Uma beleza que chega a ser, no entender do Autor, desumana.

O narrador é o próprio Malaparte, que é também o protagonista do romance. O tom aparentemente cínico do discurso é apenas superficial já que este não consegue evitar a solidariedade empática com o sofrimento de qualquer outro ser vivo, seja ele humano ou animal. É o caso de Febo, o cão-lua, ou os soldados que perecem no campo de batalha no Leste. O co-protagonista de Malaparte, o general Hamilton, tem alguma dificuldade em colocar-se na pele dos Europeus, isto é, em imaginar o seu país a ser invadido por uma potência estrangeira ou mesmo se, perdida uma guerra, as mulheres nos EUA também se prostituiriam.

O segundo episódio chocante da obra ocorre durante o jantar do General Cook, no qual o prato mais aguardado, numa altura em que a carestia de géneros é tal que têm de ir buscar o peixe ao Aquário Municipal para o jantar, seria uma “sereia” (hoje provavelmente seria identificado com um mamífero marinho do género do Boto Rosa). Trata-se no entanto de um ser cuja semelhança com uma criança humana é tão grande que ninguém se atreve a trinchá-lo.

O referido jantar desencadeia todo um conflito cultural, tendo por base aquilo que se come e originando um debate sobre os valores, a consciência humana e os limites do individualismo, onde os fins - a erradicação da fome - nem sempre podem justificar os meios - o canibalismo em qualquer uma das suas formas. Estarão os forasteiros capazes de dar tudo por tudo para conservar a pele, inclusive devorar o seu próprio sangue? A comida nos pratos denuncia uma dieta empobrecida por tempos particularmente difíceis – ninguém comeria um golfinho em circunstâncias normais e muito menos uma criança. Por outro lado – e esse é o lado irónico da questão - a frugalidade do repasto torna-se ainda mais evidente pelo contraste criado pelo serviço e a baixela onde é servido, o luxo dos móveis e das toillettes das mulheres presentes. Sinais dos tempos onde a riqueza material deixa de obter valor para a troca por bens essenciais.

Para Malaparte, enquanto narrador e protagonista, só é possível encontrar alguma cumplicidade com os estrangeiros, quando estes olham de frente o horror e demonstram, ainda, a capacidade de se indignar, ao solidarizar-se com o infortúnio da Europa.

A atitude de Mrs. Flat, durante o jantar, exprim uma indignação comovida que denuncia uma réstia de humanidade no seu carácter, assim como a compaixão de Jack Hamilton, o oficial e amigo de Malaparte. O comportamento cavalheiresco de Hamilton contrasta com o do Americano comum. Jack é um romântico cavalheiro da velha guarda e um erudito, deslumbrado pela Europa culta e progressista do início do século XX. Mas face à dura realidade exibida por Malaparte, o capitão Hamilton mostra-se profundamente chocado.

E, por aquela maneira de corar, eu gostava de Jack como de um irmão”.

Esta atitude justapõe-se à forma cínica em como é explorada pelos invasores a miséria napolitana, que é a miséria da Europa, destruída pela guerra.

Por outro lado, Malaparte não se coíbe de mostrar que a necessidade de os Napolitanos salvarem a própria pele leva a à criação de expedientes de extorsão face aos estrangeiros. As mulheres tornam-se aqui particularmente vulneráveis e mais expostas à corrupção. Já a homossexualidade surge na obra como uma espécie de subversão contestatária à moral burguesa do início do século, . No entanto, Malaparte não consegue evitar referir-se-lhe de forma algo pejorativa taxando os homossexuais de “invertidos”.

A obra contém, ainda, alguns momentos descritivos de extraordinária beleza literária que transcende a descrição real dos factos, entrando na dimensão surrealista. O aspecto mais evidente é a chegada do siroco, ou o “vento negro” das estepes. O vento que mexe com os nervos e antecede sempre acontecimentos nefastos; ou então o luar de Lípari, envolvente como um sortilégio, na noite em que desaparece Febo, o Cão-Lua, que recebe o cognome de Apolo.

O vento doentio, seja ele o Sirocco ou o “vento negro” da estepe russa e ucrabiana surge sempre como um indício que antecede o horror e se traduz em acontecimentos de especial requinte de crueldade perpetrada pelo Homem: o massacre na Ucrânia a que o autor chamou de “Os Cristos da guerra”. Também um vento com características semelhantes antecede o desaparecimento de Febo em Lípari, anunciando mais um acto de horror. Trata-se de um vento que parece contaminar o cenário da acção com “o cheiro da morte”. O mesmo vento nefasto anuncia também os confrontos que levam à morte do namorado de Clorinda.

Outra marca de surrealismo é a introdução do animismo, aplicado a um fenómeno natural. O Vesúvio, lendário vulcão destruidor das cidades romanas de Pompeia e Herculanum, no século I da nossa era, e cuja última erupção foi, precisamente, durante a segunda guerra mundial actua como uma intervenção providencial,isto é, como se a natureza interviesse como juiz dos homens.

O Vesúvio surge aqui como que a personificação do Juiz Vingador com o objectivo de dar à humanidade uma lição de humildade. Na verdade, o Vesúvio humilha, como um deus pagão, tanto ao vencedor como aos vencidos, colocando-os no mesmo plano de igualdade, ao mesmo tempo que sublinha a inutilidade de todas as guerras.

No último capítulo, intitulado sugestivamente de “O deus Morto”, com uma piscadela de olho de Malaparte a Nietzsche, o Vesúvio cala-se. Da mesma forma que os deuses que voltam as costas aos homens na sua ignorância e frivolidade. A miséria da orfandade dos humanos que persistem nas oferendas ao deus que então os ignora, exprime-se num patético ritual de peregrinação ao Vesúvio, ostentando o evidente sincretismo religioso da cultura local que resulta da fusão de um longínquo e residual misticismo pagão com o cumprimento das profecias apocalípticas da Biblia a que mistura o receio de uma vingança nemésica.

O romance termina com a debandada do Exército aliado de Nápoles, e a marcha em direcção a Roma. Assiste-se, ainda, a alguns confrontos entre facções opostas cujas consequências só enfatizam a inutilidade de se matar alguém por algo tão abstracto quanto uma ideologia. O episódio do tanque que esmaga o soldado e a rixa diante da Igreja, terminada com o desvario do pároco que, no auge do desespero decide, “varrer” o Mal, a guerra, e a obscenidade da cureldade humana, diante da fachada da “sua” igreja.

Para Malaparte a Europa exprimia, então, a contradição entre a beleza da arte, a civilização e o progresso e, por outro lado, a violência dos sentimentos destrutivos, com base num ódio bestial, a-racional e intestino.

A lucidez do narrador emerge sobretudo perante o sentimento desolador de perda, do desaparecimento de amigos próximos – como Jack hamilton, ou o oficial Campbell – que o levam a afirmar que Numa guerra, vencer é uma vergonha, salientando a cobardia dos “heróis do amanhã” – aqueles que assumem os louros, depois da gurra acabada, tendo-se mantido na sombra durante o período crítico . Estes, segundo Malaparte, tornar-se-ão os futuros tiranos da Europa: os falsos pregadores da Liberdade.

Não está escrito que aquela bandeira é a bandeira da nossa pátria, da nossa verdadeira pátria, uma bandeira de pele humana. A nossa verdadeira pátria é a nossa pele.

O deus morto Vesúvio – ou outra qualquer - deixará, de agora em diante, os homens entregues a si próprios. Desprotegidos. Sem vigilante e sem juiz. Agora e doravante a Europa contará apenas consigo para salvar a própria pele.


Um livro fundamental que hoje infelizmente não se encontra à venda em nenhuma livraria portuguesa, excepto em alguns, raros alfarrabistas.

Porque será?


Cláudia de Sousa Dias

27.07.2011

PS: Sobre a Casa Malaparte e a biografia do autor recomendamos a visita a: http://tapornumporco.blogspot.com/2007/06/curzio-malaparte-um-escritor-conhecido.html

Thursday, September 22, 2011

“Medeia” de Mário Cláudio (Dom Quixote)



O Autor da Trilogia Oríon, Ursa Maior e Gémeos , dá à luz uma obra de recriação de um drama de Eurípedes que chegou também a inspirar autores Latinos como Ovídio, durante o exílio deste, em Tomos.

Na versão de Mário Cláudio, a Medeia clássica aparece numa versão suavizada, a viver no século XXI. O texto apresenta-se sob a forma de um monólogo em nove, quadros e um epílogo. A intenção do Autor é direccionada para a exploração das águas obscuras em que se movimentam as emoções mais primária, associadas às pulsões contraditórias e a-racionais de um amor obsessivo, marcado pelo inconformismo vingativo da protagonista, face à rejeição do amante. Partindo do rancor da protagonista emerge todo um caldeirão de venenos emotivos de onde se destaca o ciúme e a inveja, assim como os mais refinados actos de maldade que daí decorrem e tecem o drama.

A peça é construída de acordo com a vontade do Autor em proceder a uma adaptação aos tempos modernos de uma tragédia intemporal que exprime o lado mais destrutivo da natureza humana .

Esta Medeia actual pauta-se por estratégias de coping muito mais subtis que a Medeia clássica para conseguir os seus intentos. Afinal, trata-se de uma mulher muito mais sofisticada do que a mítica personagem de Eurípedes: ao invés de matar os filhos para se vingar da traição do amante, empenha-se a transformá-los em seres fracassados, em perfeitas nulidades, golpeando assim, em cheio, o ego do amante. A capacidade de premeditação e planeamento de uma estratégia a longo prazo conjuga-se com a ausência total de empatia com os seres que gerou e revela uma personalidade exclusivamente centrada em si mesma, embora dotada, sem sombra de dúvida, de inteligência e refinamento, mas destituída de fins construtivos, porque concentrada exclusivamente na sua missão de se vingar do amante.

Por outro lado, Mário Cláudio constrói um Jasão, amante e marido desta Medeia contemporânea, como sendo um homem calculista, vaidoso e preocupado, antes de tudo, com a obtenção da promoção social. Trata-se de um homem obcecado com o acesso ao poder, não hesitando em trocar a vida com restrições, ao lado de uma mulher mais velha, cuja beleza começa já a declinar e não favorece a sua ascensão social. Um pouco como o Jasão clássico que ambicionava casar-se com a filha do rei de Corinto e tornar-se o príncipe consorte… Um facto que surge na obra como transversal ao Tempo é o de que o poder se revela sempre mais aliciante do que uma família cansativa e deprimente, composta por uma mulher manipuladora e dois filhos apagados e tristes.

A Medeia actual é actriz consagrada. Representa tão bem o papel da Medeia clássica, que acaba por incorporá-la na própria personalidade. A personagem de Eurípedes parece mesmo ter sido talhada à medida da sua pessoa, de tal forma se identifica e projecta na personagem do dramaturgo clássico. E vice-versa.

A mulher que protagoniza ambas as versões da história é vítima de uma paixão fulminante, que a deixa cega de ciúme, ao ver-se trocada por uma jovem, após dez anos de casamento e dois filhos. O acontecimento consegue despertar uma série de ódios recalcados, que desvia para os próprios filhos, que são também filhos de Jasão, prejudicando-os gravemente no seu desenvolvimento interpessoal, com o único objectivo de causar desgosto no ex amante.

Ao longo da peça e, paralelamente, e às pulsões das personagens, o Autor chama, também, a atenção para os aspectos sociais da questão que está na base da desagregação da família e que alteram, na mente dos protagonistas da época contemporânea, os fundamentos da ética nas relações inter-pessoais, tais como a instabilidade e precariedade em que vivem os profissionais do meio artístico. Estes, vêem-se constantemente a braços com uma situação de mendicância, em relação à concessão de subsídios por parte do Ministério, o que em nada favorece a estabilidade emocional do casal…

Medeia de Mário Cláudio é um fascinante jogo de comparação, em termos sociológicos e civilizacionais, de comportamentos que se vêem como transversais ao Tempo e à própria História. As duas Medeias – a de Cláudio e a de Eurípedes – são, na verdade, irmãs, quer no tocante àqueles que as rodeiam quer em relação a si próprias, ao pautar a vida pela infelicidade e pelo medo obsessivo de perder o objecto do próprio Desejo. Um Desejo que é o motor da própria vida. Mas que, na realidade, a luta incansável pela posse e conservação do amor da pessoa amada, acaba simplesmente por asfixiá-lo.

Um drama tão velho quanto a humanidade e tão humano quanto o eram os próprios deuses…

17.06.2011

Cláudia de Sousa Dias

Sunday, September 18, 2011

“O Professor e o Louco” de Simon Winchester (Temas e Debates)



Tradução de Eugénia Antunes

O romance de que aqui tratamos diz respeito à história romanesca que está por detrás da concepção e compilação do mais completo e minucioso dicionário de língua inglesa: o Oxford English Dictionary. A narrativa adquire contornos épicos pela transmissão da magnitude da empreitada e, simultaneamente, pelo delinear dos meandros que envolveram um fascinante estudo de caso no tocante ao desenvolvimento de métodos de diagnóstico e tratamento de uma doença mental inquietante: a esquizofrenia. O Professor e o Louco começa por ser uma história relativa a um assassínio ou thriller psicológico mas logo acaba por derivar para uma obra onde a biografia, ensaio, ciências neurológicas e literatura se fundem harmoniosamente.

A trama de O Professor e o Louco é desenvolvida sob a forma de uma especialmente bem arquitectada estrutura narrativa: começa por descrever o cenário relativo à cidade de Londres do final do século XIX, onde ocorre um crime chocante, seguido de uma condenação considerada como exemplar para os padrões da época e acompanhada de um diagnóstico de insanidade mental do perpetrador do crime, encerrando o mesmo num hospital psiquiátrico durante o resto dos seus dias.

O Autor parte da história do crime e da identificação inequívoca de uma doença mental do foro psiquiátrico que teria estado na sua origem. Doença que, pela descrição, seria hoje classificada de esquizofrenia paranóide . A mesma patologia contextualiza toda a tematica principal do romance, através da análise da história de vida do paciente, a evolução da doença e, ao mesmo tempo, fornecendo os elementos que possibilitarão ao mesmo condenado, a colaboração na compilação do dicionário, sempre confinado aos limites dos muros do sanatório. Por outro lado, somos postos ao corrente da evolução dos métodos de tratamento e técnicas de diagnóstico que, em psiquiatria, se foram aprimorando ao longo do último século, paralelamente às adendas que se foram juntando à versão original do OED.

Ao prestarmos atenção ao discurso do narrador, que se percebe tratar-se de um investigador dos finais do século XX, 0 qual se incumbe da missão de reunir o material necessário para escrever um ensaio sobre a elaboração do OED, damo-nos conta da gigantesca dimensão do trabalho minucioso e incansável que terá sido o de compilar o Oxford English Dictionary, implicando o catalogar de todas as palavras de língua inglesa e respectivas variações, sofridas ao longo dos últimos cinco séculos.


O crime de Cambet March, a ligação com a criação do OED e com a Estrutura da Narrativa

O crime mencionado tem uma estreita ligação com o trabalho de compilação do OED, uma vez que permitiu a William Chester Minor, autor do referido crime, dispor do tempo necessário à colaboração, a tempo inteiro da obra supra-mencionada, concretizada no trabalho incansável e obsessivo, de catalogar as palavras e elaborar a definição mais adequada para cada uma delas.

Dentro das paredes do quarto na instituição psiquiátrica o trabalho persistente, árduo e constante de quem se agarra ao último e ténue fio de ligação à sociedade e ao mundo exterior, é precisamente o factor que exerce no leitor o fascínio irresistível de forma a agarrá-lo às páginas do romance-biografia de William Chester Minor, suscitando-lhe a curiosidade indiscreta de se inteirar sobre a forma como o trabalho pode ajudar a conservar um último vestígio de sanidade numa mente destruída pela loucura e pelas contradições do campo de batalha e a crueldade da guerra.

Todos os capítulos de O professor e o Louco são precedidos de uma pequena introdução, à laia de epígrafe, ou seja, numa entrada ou definição retirada do OED, referindo-se à palavra chave que sintetiza o capítulo do romance.

No primeiro capítulo é descrito o episódio que desencadeia o romance e precipita o julgamento e condenação da personagem principal: o assassínio em Cambet March. O facto é relatado como se se tratasse de uma reportagem, atendendo às circunstâncias que o envolvem e culminando na sentença atribuída a William Chester Minor – antigo Médico Militar no Exército da União durante a guerra Civil Americana –, a ser internado num sanatório, devido ao seu estado mental.

O ex-militar, já reformado, encontrava-se então de visita a Londres e, a dada altura, é acometido por um surto psicótico, que ocasiona uma acentuada deturpação da realidade, acompanhada de alucinações: julga-se perseguido por um assassino, facto que o leva a disparar contra um transeunte desprevenido.

A condenação de Chester Minor foi acompanhada de uma cuidadosa verificação do seu estrado mental, cuja confirmação de insanidade o obrigou a passar mais de meio século confinado aos muros de um sanatório.


Origens e Percurso

Chester Minor é oriundo de uma família abastada dos EUA e, à altura dos acontecimentos, detentor de uma situação financeira confortável. O estado paranóico que o acomete é despoletado pelas memórias dos horrores da Guerra Civil, lembranças essas que apenas são minimizadas pela actividade mental constante, ao longo do período de internamento. A ocupação com a investigação no campo das letras afugenta-lhe temporariamente os medos que o assolam: rodeia-se de livros, passa horas a fio a ler e a pintar para, assim, afastar os “fantasmas”. Numa das encomendas de livros que recebe encontra acidentalmente, um panfleto onde pedem à população para colaborar na compilação do OED, coordenada pelo Professor James Murray. Minor responde ao anúncio e é aceite, mediante as suas qualificações e conhecimentos linguísticos acima da média. Torna-se um dos principais colaboradores de James Murray sem, no entanto, dar a conhecer a sua situação de recluso, que é descoberta de forma acidental.

A trama de Professor e o Louco é, no mínimo, romanesca, embora transmita apenas uma vaga ideia do gigantesco trabalho de catalogar palavras e da infinita paciência necessária de forma a efectuar a pesquisa e selecção de todas as definições existentes para a mesma palavra, escolhendo, depois, aquela que aparente ser a mais exacta possível. Trata-se, ao mesmo tempo, um estudo de caso que compreende o processo de identificação, tratamento e inclusão – na medida do possível – de um caso agudo de uma das doenças mentais mais problemáticas que se conhecem.

O texto de Simon Winchester é sóbrio, cuidado, muito agradável de ler e, principalmente, credível, tanto no aspecto histórico como científico.

A descrição do cenário das ruas de Londres na época vitoriana, quer no tocante à descrição de espaços exteriores quer aos interiores como os quartos e as divisões do sanatório onde Chester Minor esteve internado, e mesmo a sala de trabalho do Professor Murray, são tidos em conta na explicação do comportamento das personagens. Assim, no caso de Minor, a menção à forma como eram, então, tratados os doentes psiquiátricos, cujos terapeutas se opunham, à época, à ideia de os pacientes realizarem tarefas de estímulo mental para a minimização dos efeitos nefastos da doença. Dentro da narrativa são, também, considerados os aspectos que, ao longo de todo o historial do paciente, possam ter actuado como potenciadores ou facilitadores do desenvolvimento da patologia.

Daqui parece sobressair o a ideia de que Chester possa ter sido obrigado a, durante a guerra, cometer actos médicos contrários à ética profissional, que devido à escassez de recursos no campo de batalha, quer ao ter de obedecer a ordens superiores, durante o holocausto que foi a Batalha de Wilderness – a qual é descrita na obra com um realismo especialmente vívido, retirada de relatórios e documentos oficiais da época. Para o comportamento de Chester Minor parecem, portanto, ter contribuído uma multiplicidade de factores que precipitaram a degradação mental do médico sobredotado, formado em Yale.

Simon Winchester, o Autor do romance, teve, no início do século XXI, graves dificuldades em aceder ao ficheiro clínico de William Chester Minor, particularmente na clínica onde esteve temporariamente internado nos EUA, já no final da vida. O Autor teve de convencer os administradores da necessidade fundamental da consulta aos mesmos documentos para efectuar um retrato fidedigno de Minor no estudo de caso que estava a fazer.

Mais do que a história de um dicionário, este é um livro que adquire um carácter de importância documental na caracterização e compreensão de uma patologia que afecta uma em cada cem pessoas – só em Portugal – e, ao mesmo tempo, dar a conhecer a importância para o património mundial de uma das mais importantes obras da literatura inglesa de sempre.


Cláudia de Sousa Dias

27.05.2011


Monday, September 05, 2011

“Contos de Terror e Arrepios” de Bram Stoker



Nascido a 8 de Novembro, em Dublin, Irlanda em 1847, Abraham Stoker, lecciona em Trinity College, em Dublin também, a partir de 1863. Em 1866 é contratado para trabalhar no castelo de Dublin, altura em que escreve o manual Deveres dos Amanuenses e Escrivães nas Audiências para Julgamento de Pequenas Causas e Delitos na Irlanda. Tem um percurso profissional variado, conhece o actor John Irving de quem se torna amigo e casa-se em 1878 com Florence Balcombe, após o que aceita a oferta de Irving para administrar o Royal Lyceum Theatre em Londres. Em 1897 nasce Noel, o único filho do casal. É também o ano que que o autor publica o seu primeiro livro, The Duties of Clerks of Petty Sessions in Ireland. Os seus contos são normalmente apreciados pelo público, onde a mistura da realidade cartesiana se casa de maneirta particularmente feliz com o imprevisto e o elemento irracional que carece de qualquer explicação lógica a que se chama normalmente de sobrenatural. É sob esta égide que publica, em 1882, a colecção de contos Under the Sunset... mas só em 1890 começa um projecto verdadeiramente ambicioso: a escrita de um romance sobre vampirismo, ainda sem título. Entretanto, dedica-se a outros projectos em paralelo como O Castelo da Serpente (romance), The Watter´s Mou e Croken Sands, The Shoulder of Shasta e só em 26 de Maio de 1897 publica Drácula, romance que lhe garantiu o sucesso mundial tendo sido posteriormente adaptado ao cinema. Publica ainda alguns títulos como Miss Betty, A jóia das sete estrelas, The Man. Em 1905 morre Henry Irving e Stocker sofre umderrame cerebral. Mas em 1906 publica ainda Personal Reminiscences of Henry Irving e, em 1909, O Caixão da Mulher-Vampiro. Em 1911, sai o seu último romance, O Monstro Branco. Abaca por falecer em Londres a 20 de Abril de 1912 e dez anos mais tarde estreia Nosferatu, a primeira produção cinematográfica baseada no romance Drácula.

Esta pequena compilação de histórias de Bram Stoker, Contos de Terror e Arrepios é composta por quatro histórias cuja principal característica é a excelente prosa, de tonalidades sombrias e inequívoco teor literário, a que se adiciona o elemento do imprevisível, e onde o macabro se funde com a atmosfera quase sempre gélida do Inverno centro europeu e nas quais sobressaem sempre os finais tão inesperados quanto desconcertantes.

A primeira destas estórias é uma interessante alegoria, a que o Autor atribui o título de The Invisible Giant , traduzida para português como O Espectro da Morte. Este último trata-se, no entanto, de um título que, pelas razões que iremos aprofundar, se revela um tanto ou quanto redutor. “O Gigante Invisível” – chamemos-lhe antes assim – é, mais do que uma metáfora, uma muito bem conseguida alegoria que serve de pretexto para descrever as contradições de uma sociedade distópica, que enfrenta um período de graves dificuldades a vários níveis. A imagem alegórica tanto pode referir-se à cidade de Dublin e ao período de grave crise económica que o país natal do Autor sofre, na viragem do século XIX para o século XX, a qual levou ao êxodo da população em várias gigantescas vagas de imigração, sobretudo para a nova Inglaterra, como à própria Londres onde viveu durante grande parte da vida. O conto insere-se numa larga tradição literária de autores que escreveram sobre a precariedade das condições de vida das classes mais desfavorecidas. O ambiente social da cidade de “O gigante invisível” é fortemente marcado pela extrema miséria que esmaga a população e pela sujidade cujo odor empesta as ruas da Cidade.

O Autor esmera-se em pintar um cenário essencialmente pessimista onde, numa primeira fase, assistimos a um desenvolvimento económico que é acelerado e efectuado a qualquer preço durante uma primeira fase mas que, depois, não consegue manter-se. Mas mesmo durante esta fase dourada, a população e, sobretudo, os mais idosos conseguem, ainda, lembrar-se dos tempos negros em que o terrível “gigante” dizimava populações inteiras. Na mesma cidade, vive a jovem Zaya, uma criança que é um ícone de inocência e pureza: uma alma incorruptível, vivendo, sem grandes preocupações, embora em condições muito abaixo do limiar da pobreza. Os tempos ainda são de paz e felicidade no País-do-pôr-do-sol, mas os antigos recordam ainda com terror, o “Gigante”.

À medida que avançamos na leitura do conto, damo-nos conta que os habitantes daquela cidade-estado começam a passar da era de felicidade e bem-estar, ainda durante o reinado do príncipe Zafir, para um período de incertezas. Quando este morre, o país cai numa crise de sucessão e o período de procura de um sucessor à altura, deixa o mesmo país temporariamente desprotegido e vulnerável ao ataque do “Gigante” . Este Gigante tem vários rostos: a Peste, a Guerra, a Fome e, por último, a Morte. Trata-se da síntese dos quatro cavaleiros que, segundo a tradição judaico-cristã, anunciam o fim dos tempos ou numa perspectiva um pouco mais materialista, um período de grave depressão e caos económico.

“O Gigante” não mostra rosto nem contornos específicos apesar de se lhe conseguir adivinhar os traços e o rasto pelas consequências nefastas que se fazem sentir à sua passagem ou à sua simples aproximação. Trata-se de um espectro invisível para quase todos. No entanto, todos o sentem, de uma ou de outra forma e, principalmente, num momento inequívoco: o último..

Só a partir da recta final do desenvolvimento da história conseguimos desvendar o mistério da identidade do “Gigante”, ou da Ditadura que, em períodos de paz e prosperidade, não atenaza a mente dos cidadãos.

O conto tem, obviamente, uma intenção moral e, mais do que uma crítica social, é a denúncia das fragilidades de todo um sistema económico, a par da necessidade da responsabilização social dos estados pela manutenção da qualidade de vida dos cidadãos. Uma farpa direccionada, sem sombra de dúvida ao capitalismo selvagem, desgovernado de finais do século XIX, onde os fins justificam os meios. Para tal, o Autor recorre a um artifício literário: a parábola de uma cidade imaginária com personagens fictícias e uma figura alegórica, simbólica que é o gigante – não um gigante físico mas um sistema económico ou uma entidade política repressora – e invisível porque não identificável como uma pessoa concreta de quem se conhece o rosto, mas que é o responsável pela perda da sua luminosidade dourada dos tempos prósperos da Cidade e os seu habitantes passarem a viver na no frio e na sombra como sombras do que foram outrora.

O autor, para não retirar a magia ao texto, utiliza uma explicação mística, sobrenatural, de fenómenos tão concretos como o período de crise política e económica que se segue à sucessão de um chefe de Estado tornando a história de um assunto tão adulto, perfeitamente narrável aos públicos mais jovens. O mesmo sucede com a forma como ilustra a necessidade de manter o respeito pela natureza cuja profanação produz cidades feias, sombrias e fétidas assim como a desigualdade de oportunidades em tempos de carestia.

Por outro lado, temos Zaya, que veste a pele de uma criança mas que também é, ela própria, uma figura alegórica – o arquétipo do Bem e da inocência - incarna todas as virtudes, que se exprimem nas mais diversas formas de solidariedade.

A pobre pequena Zaya chorava tão amargamente quando viu a sua falecida mãe e esteve tão triste e chorosa durante tanto tempo que praticamente se esqueceu de que não possuía meios para sobreviver. Todavia, os pobres que viviam na casa tinham-lhe dado parte da sua própria comida, para que ela não morresse de fome”.

Em Bram Stoker, tal como em Charles Dickens ou Victor Hugo são valorizadas todas as formas de solidariedade, com particular incidência naquelas que protegem a infância.

O gigante invisível surge, então, de repente, como um cataclismo, embora aos antigos não cause surpresa o seu aparecimento. Aparece como uma catástrofe natural de grandes dimensões – um violento tremor de terra ou um furacão devastador – inexorável, rápido e fatal. A sua passagem no País-do-Pôr -Sol assemelha-se à chegada de um tornado ou de uma tempestade que, tal como nos contos da Mil e uma Noites assinala a chegada de uma entidade ou génio maligno, como maligno é o espectro que se aproxima.

Zaya é a única a avistar o Gigante, assumindo o papel de visionária como na Ilíada, de Homero faz a Princesa Cassandra. Para os restantes humanos, são apenas visíveis os indícios que denunciam a sua natureza sinistra, sendo desvendada a sua identidade pelo velho cego e agonizante, que interpreta a visão de Zaya.

A criança e o velho – mais duas figuras alegóricas a representar a Pureza, que se alia ao Conhecimento – tentam avisar a população da chegada da catástrofe a população ignora-os. Os hábitos quotidianos impedem as pessoas vulgares de enxergarem , para lá da superfície das coisas e do conforto do presente.

O autor esmera-se na descrição da crueldade do gigante, que ataca e dilacera as criaturas mais frágeis, sobretudo as crianças e os velhos, os seres menos protegidos. Quando o gigante invade a Cidade, já não há nada a fazer:

vira a forma sombria do terrível gigante que tinha estado invisível durante tanto tempo tornar-se cada vez mais nítida. A face estava mais severa do que nunca e os olhos continuavam cegos.

O Autor dá-nos a solução para expulsar o gigante através de dois arquétipos: a Inocência Altruísta, que age sempre em nome do bem-comum e se opõe ao Cinismo e à Ganância desenfreada. Este primeiro arquétipo age em colaboração com outro que se lhe alia: a Devoção. Ou seja, o trabalho persistente, quotidiano, contínuo e incansável. Medidas draconianas para grandes catástrofes. A grande utopia do tempo em que havia fé nas utopias…

O Hóspede de Drácula

Nesta história , o local de acção é a cidade de Munique, visitada por um turista inglês, hospedado no Hotel Quatre Saisons. O espírito aventureiro deste hóspede inquieto leva-o a sair pelas redondezas na Noite de Walpurgis, à qual se associa uma lenda de terror supersticioso. O aspecto sinistro do evento é ainda ampliado pelo facto de ser noite de lua cheia, cuja luz fantasmagórica espalha sombras assustadoras por todos os cantos. Tudo parece colaborar para justificar a superstição local, assente na crença de que, em noites como aquela, os espíritos dos mortos, vindos do cemitério da aldeia vizinha, vagueiam para atormentar os vivos. Trata-se de uma superstição que se alimenta do medo do desconhecido, daqueles a quem se conhece mal, ou se desconhece de todo.

O Hóspede de Drácula é uma estória que explora o medo colectivo que poderá mesmo conter as raízes para sentimentos tão básicos como a xenofobia, podendo confundir-se facilmente com a cultura de um povo, apesar de assentarem somente na ignorância, na existência de territórios mal-explorados, onde as trevas reinam e a Filosofia das Luzes ainda não conseguiu penetrar.

A intencionalidade deste conto de Bram Stoker tem a ver com o medo irracional do vizinho, ou do estrangeiro que, por ser desconhecido, a sua faceta sinistra atinge proporções muito maiores do que a realidade e que é, na maior parte da vezes, largamente distorcida.

As dificuldades de comunicação entre o passageiro e o cocheiro, encarregue de levar o turista à aldeia, não ajudam nada ao esclarecimento do primeiro. Este nem se consegue aperceber da causa de semelhante terror, generalizado com a preciosa ajuda da paisagem espectral do inverno germânico, sobretudo depois do pôr-do-sol.

Podia dizer-se que a imaginação se apoderou dele e terminou num verdadeiro paroxismo de medo – pálido e a transpirar em bica, trémulo e com olhares em volta, constantes, como se esperasse que uma presença horrível se manifestasse numa área banhada pelo sol radioso.

O terror decorre, basicamente, do efeito de sugestão, operado pelas pessoas, que propagam rumores de coisas horríveis que acontecem a quem sai fora de casa naquela noite.

A curiosidade impele, no entanto, um turista de espírito desafiador e aventureiro, de temperamento tipicamente irlandês, a desviar-se do caminho sem se preocupar com o anoitecer, sem se preocupar que o motorista saia a correr em debandada a refugiar-se na estalagem, antes que o último raio de sol desapareça.

O viajante intrépido segue o seu caminho a pé, indo dar precisamente ao cemitério abandonado da aldeia vizinha, dizimada pela peste. E neste ponto da estória ficamos com parte do enigma resolvido: a raiz do medo materializa-se numa aparição espectral – provavelmente resultante de fogos-fátuos – a qual é identificada com uma espécie de demónio invisível. No entanto, seja pelo efeito da sugestão seja pelo efeito das alucinações, causadas pela hipotermia, o protagonista da história acaba por se deixar impressionar pela paisagem desolada e pelas condições atmosféricas não muito acolhedoras…

Die Walpurgisnacht, segundo a tradição local, é uma data do ciclo da lua em que se crê que o Diabo anda à solta, em que as sepulturas se abrem e os mortos se erguem e caminham. Em que todas as coisas hediondas da terra, do ar e da água se divertem à sua sinistra maneira.

A linguagem é utilizada de forma a criar o efeito de horror para o qual contribui a construção do cenário desolador com o objectivo de, após instalado o pânico, ampliar a sensação de desespero. No auge da violenta tempestade que assola o local, o viajante é obrigado a refugiar-se num túmulo-mausoléu, para se proteger da fúria dos elementos. Começa a sofrer alucinações devido à alternância da luz – a oscilação entre as trevas absolutas com os relâmpagos proporcionam um espectáculo não muito agradável dentro de um túmulo. A dada altura, parece ser fulminado por um raio, mas escapa às garras da morte por mero acaso ou, por aquilo que poderia ser considerado de intervenção divina. Durante a lenta recuperação dos sentidos, o viajante convence-se de que o seu corpo foi protegido, pelo corpo de uma criatura que se assemelha a um lobo.

A dúvida é deixada no ar quanto àquilo que realmente ocorreu dentro do mausoléu e, também, quanto à intenção das criaturas que, supostamente, compartilhavam o refúgio com o protagonista, durante a tempestade. O viajante é resgatado por uma equipa de voluntários, enviada pelo maître do hotel… que recebe ordens expressas do dono do mesmo, o qual recomenda tratamento privilegiado ao intrépido turista. O dono do hotel é…o Conde Drácula. Uma personagem que é a incarnação do próprio Mal. Ou alguém que apenas tem como interesse em espalhar o terror para manter afastadas de um território infestado pela peste, as pessoas das povoações circunvizinhas. Ou apenas pretender manter deserto um local onde está algo que deseja permanecer incógnito.

Enquanto o primeiro conto aproxima o Autor de Charles Dickens sobretudo nos seus “Contos de Natal”, ou de Oscar Wilde em “O Príncipe Feliz” as três estórias que se seguem nesta publicação são verdadeiras histórias de terror que colocam o Autor na mesa categoria de Edgar Allan Poe, ampliando o elemento do imprevisível que tão bem é utilizado, cerca de meio século depois nos meios audiovisuais…

A Casa do Juíz

Trata-se do conto mais extenso, nesta mini-antologia. O facto deve-se ao hábil e estratégico prolongamento da tensão no leitor, bem como do sentimento progressivo de terror que se vai acumulando ao longo das horas intermináveis em que se transformam os dois dias em que um estudante solitário habita uma misteriosa e estranhíssima mansão, que se diz ser assombrada.

Na realidade, a partir do momento em que o jovem manifesta a intenção de alugar o imóvel, todos os que com ele contactam se esforçam por dissuadi-lo da intenção de ocupar a casa, em virtude desta ter sido, outrora, ocupada por um juiz particularmente cruel e vingativo, o que aproveitava o exercício da profissão para dar largas a um certo sadismo na aplicação das penas…

A presença dos ratos naquela mansão, durante largos anos desabitada, para alguém que aprecia sobretudo a paz e o silêncio, parece ser o único factor a causar incómodo neste jovem céptico e misantropo. O barulho dos das pequenas patas a percorrer o soalho e os guinchos dos repugnantes e atrevidos animais é o único ruído que se ouve na casa. No entanto, ao juntar-se ao desejo extremo de solidão do protagonista, parece constituir a gota de água para sua desestabilização psíquica. A forma como se processa o desenlace desta estória dá margem para uma certa ambiguidade quanto à sua interpretação, uma vez que não conseguimos descortinar se os acontecimentos são apenas despoletados pelo extremo cansaço de uma alma sensível e exposta a condições adversas. Este conto de Bram Stoker pretende ilustrar uma profunda fissura no mundo cartesiano da lógica e da dedução.

A impressão final com que se fica após a sua leitura é a de que há, de facto, algo ou alguém que deseja impedir, a todo o custo, que a casa seja habitada…

A Índia

Trata-se da história mais aterradora da colectânea. Passa-se no Museu de Nuremberga, onde decorre uma exposição dos instrumentos de tortura, outrora usados pela Inquisição.

A narração está a cargo de um visitante anglo-saxónico que efectua uma viagem de lazer pela Europa. Trata-se de uma narrativa, contada pelo turista que viaja acompanhado da esposa. A atenção do casal é, subitamente, captada por um estranho objecto de grandes dimensões: uma espécie de caixão com formas femininas, em ferro, com as paredes interiores revestidas de compridos espigões, para que quem quer que seja fechado lá dentro sofra uma morte horrível.

O conto é especialmente bem estruturado, rico em pormenores macabros e a narrativa, conduzida de forma empolgante apesar de, no último parágrafo, o narrador não resistir a emitir um juízo de valor, retirando-lhe a característica de narrador omnisciente de que gozara até ao momento. A observação proferida ilustra, no entanto, os preconceitos da sociedade da época e da mentalidade onde se faz sentir o domínio da sociedade patriarcal, eivada de um certo chauvinismo quer europeu quer Norte-Americano.

O turista apressa-se a ser o juiz e executor de um animal que foi brutalmente ultrajado pelo homem, quando na realidade, o personagem felino se limita a ser o instrumento de que se serve Némesis e repor as coisas no seu lugar. O forte instinto maternal da gata é idêntico ao da mulher Índia de quem se recorda o outro turista, americano, com quem o primeiro se cruza juntamente com a mulher. As duas fêmeas, a índia (que, para o americano não é uma autêntica mulher mas antes uma espécie de ser humano de condição inferior) e a felina, são colocadas neste conto em paridade absoluta no que toca ao amor maternal. E igualmente incompreendidas. Até mesmo as características físicas servem para aproximá-las: a pelagem negra da gata, como os cabelos da índia e os coruscantes olhos verdes-dourados.

A gata torna-se a executora de um criminoso violento que de forma inequívoca e exemplar. O narrador, por vezes participante, por nem sempre conhecer os factos na sua totalidade mostra-se incapaz de interpretar o comportamento da gata, assumindo a estupefacção perante o horror que o faz reagir de imediato.

A Índia é verdadeiramente um conto de terror e arrepios e, provavelmente, aquele que, dos quatro aqui apresentados, causa maior impacto no leitor. É também o mais bem escrito, terminando num clima final onde a tensão explode e a Justiça parece irromper, de forma instantânea e inesperada, de forças obscuras que escapam à compreensão e à acçãohumana.

Neste conto, o peso do sobrenatural é atenuado, ficando apenas implícito, de forma a sobressaírem apenas as emoções mais intensas, sentidas pelas personagens, humanas, não humanas e, mesmo, desumanas…

Cláudia de Sousa Dias

25.05.2011

Thursday, September 01, 2011

"Viagem ao ponto de fuga" de Fernando Campos (Difel)


Uma colectânea de mini-contos para todas as idades onde se persegue a vida e a felicidade ao longo de uma estrada infinita...


O ponto de fuga é aquilo que, em pintura, se pode chamar de "ponto de convergência" e nos dá a ilusão de perspectiva. Este é o denominador comum das estórias contidas na obra composta por uma irresistível colectânea de mini-contos da autoria de Fernando Campos cujas publicações como A Casa do Pó e A Sala das Perguntas" estão já traduzidas em várias línguas. Nesta publicação, Fernando Campos tem o mérito de conseguir aliar a pintura à escrita, onde o ponto de fuga tanto pode ser a barraca longe da civilização urbana para onde se evade uma família lisboeta durante as férias, como o lugar, algures no infinito, para lá da linha do horizonte, onde duas rectas paralelas parecem encontrar-se, na fábula de Esopo, reiventada pelo autor - Aquiles e a Tartaruga.

O ponto de fuga, explicado com todas as letras no terceiro conto - A Caminho de Monsaraz"-, no qual o pintor\narrador explica demonstra a forma de encontrá-lo, ao volante do carro, a caminho da povoação alentejana.

O Autor, ao utilizar uma linguagem extremamente depurada, socorre-se da sua à sua extraordinária criatividade e vastíssimas referências culturais, relacionando conceitos tão abstractos e complexos como a Beleza, a Justiça, a Fraternidade e a Liberdade, brinca com as palavras, recorre ao uso de trocadilhos e lendas populares despertando, como que por magia, o interesse do leitor médio para as coisas mais eruditas.

Alguns dos contos são relatados em formato de poema como Luva Branca, no qual a fonte de calor é o ponto de fuga para onde converge a atenção do gato; e Tudo é possível excepto... - um poema filosófico sobre a perseguição da sabedoria absoluta como o ponto de fuga da história do saber.

O ponto de fuga pode situar-se, também, ao fundo da Rua da Alegria onde no refúgio do lar; pode ser o Paraíso, sem estar necessariaente localizado no céu bíblico, podendo ser até mesmo o próprio Inferno, se lá residirem aqueles que amamos.

Pode ser o lugar onde se evade a alma quando abandona o corpo - No cume da Montanha. Ou o Amor para a mente cartesiana dos Matemáticos em Números.


Em Flor de Estufa multiplicam-se as significações. Aqui podemos encontrar o ponto de fuga num templo de vidro, no meio dos Eucaliptos ou, a nível filosófico, na Verdade absoluta para onde tentam inclinar-se as opiniões das diferentes personagens. Ou a cor Branca, como reunião de todas as cores existentes... e, por último, o buraco no tecto de vidro para onde convergem os olhares de todas as plantas na ânsia de respirarem o ar livre sem o condicionamento da estufa, um cheirinho do conhecimento da realidade...

No conto intitulado Regressos o ponto de fuga é a linha do horizonte no quintal de uma casa em Lisboa onde se pode observar o mergulho de Febo no Oceano, após a corrida desenfreada pela Europa fora. O ponto de fuga situa-se, neste caso, onde o sol desaparece e está depositada a cultura lusitana, com todas as suas camadas, à semelhança do que acontece em geologia.

Um livro que tem a particularidade de desencadear ondas de choque no pensamento de quem o lê, à semelhança do impacto de um meteoro, cuja virtude está na simplicidade da linguagem e na construção frásica, partindo de de raciocínios simples e concretos para chegar, gradualmente, às formas de pensamento mais complexas e abstractas.

Fernando Campos estabelece a ponte entre a literatura, a pintura e a filosofia, unindo-as através de linhas que se interceptam e entrecruzam como teias de aranha.

Viagem ao ponto de Fuga é um concentrado de sabedoria, um perfume de "sophia" em estado puro.



Claudia de Sousa Dias

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