HÁ SEMPRE UM LIVRO...à nossa espera!

Blog sobre todos os livros que eu conseguir ler! Aqui, podem procurar um livro, ler a minha opinião ou, se quiserem, deixar apenas a vossa opinião sobre algum destes livros que já tenham lido. Podem, simplesmente, sugerir um livro para que eu o leia! Fico à espera das V. sugestões e comentários! Agradeço a V. estimada visita. Boas leituras!

My Photo
Name:
Location: Norte, Portugal

Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Wednesday, November 20, 2013

“Crónica de uma travessia – A Época dos Ai-Dick-funam” de Luís Cardoso (Dom Quixote)



Luís Cardoso nasceu em Timor. Licenciou-se em Silvicultura pelo Instituto Superior de Agronomia de Lisboa e concluiu uma pós-graduação em Direito e Política do Ambiente pela universidade Lusófona. Foi o representante do Conselho Nacional para a Resistência Maubere em Lisboa.

Crónica de uma travessia é um livro de carácter autobiográfico, editado pela primeira vez em 1997. Depois desta obra escreveu ainda Olhos de Coruja, Olhos de Gato Bravo (2002), A última Morte do Coronel Santiago (2003) e Requiem para um Navegador Solitário (2007) e O ano em que Pigafetta completou a circum-navegação (2013).

Sobre a obra de que aqui tratamos hoje, o recentemente falecido poeta, romancista e crítico literário Urbano Tavares Rodrigues escreveu o seguinte :

«É um livro que funde o género biografia e romance, resultando dali uma “crónica” com elementos ficcionados...».

E também que:

«Passa neste livro um sopro de natureza, através do entrosamento de duas culturas, uma delas ainda carregada de elementos mágicos».

O livro terá, portanto, características biográficas por nele estarem presentes as marcas dos lugares, das pessoas que os habitam e marcaram de alguma forma a memória do autor, como a vida na aldeia onde cresceu, os périplos realizados com o pai, enfermeiro de profissão e, mais tarde, prisioneiro de guerra na ilha de Atauro. A tudo isto, junta-se o exílio contado na primeira pessoa pelo narrador, que retrata os tempos de juventude em plena década de 1970, depois de concluir o ensino secundário e ingressar no Ensino Superior em Portugal.

Na trama, embora sem ocuparem um lugar central nos acontecimentos, passam também personagens históricas, da cena política ou das artes e das letras, tais como Xanana Gusmão, José Afonso e Adriano Correia de Oliveira.

Um dos aspectos mais fascinantes do livro consiste na descrição das tradições religiosas do povo maubere, do sistema de crenças local, assente num sincretismo religioso, resultante da presença portuguesa na região e influência do catolicismo, de onde brota uma fusão de elementos das religiões antigas com elementos do cristianismo, introduzidos pelos missionários Jesuítas.

Outra questão amplamente debatida no romance é o acesso à educação e ao emprego pelos habitantes de Timor durante o Estado Novo, uma época em que o tipo de ensino a seguir pela criança era previamente determinado consoante o estrato social, à semelhança do que acontecia o território continental.

«O liceu era um local muito selectivo onde estudavam os filhos das altas autoridades europeias, que chegavam de manhã com sono, nos carros oficiais, e eram acordados nas aulas pelas professoras, esposas de súbditos e subalternos: “O menino Pedro dormiu mal?”. Os filhos dos funcionários menores e colonos que chegavam nos seus carros particulares: “Pedro, cale-se!” (…) e os filhos dos funcionários nativos: “número 77, ou te calas ou rua!”».

«Face ao grande insucesso escolar e à falta de saídas profissionais, foi instaurada uma escola técnica com o nome do então Ministro do Ultramar, Silva Cunha. Um edifíci omoderno, que me lembrava um pombal, e acolhia um numeroso contingente de jovens timorenses, maioritariamente oriundos do interior. Procuravam uma informação técnica e rápida que desse acesso a um emprego.»

O que salta à vista em Crónica de uma Travessia é uma de sociedade extremamente estratificada e a quase inexistência de mobilidade social. A própria descrição das zonas mais rurais de Timor, que, como sabemos, era na altura era uma colónia portuguesa, em pouco difere das descrições dadas pelas pessoas mais antigas em Portugal daquilo que era a sociedade do Estado Novo no continente.

Crónica de uma travessia explora ainda, de forma detalhada, para além da questão da estruturação social local, os conflitos entre a administração portuguesa e os chefes tribais das aldeias mais remotas. Face a isto, o discurso do narrador é eficaz em trazer a lume situações de abuso cometidas por governadores portugueses e chefes da administração local, em particular na forma como humilhavam os chefes das referidas tribos locais.

«Meu pai confidenciava-me que as histórias e os rumores que corriam nas Knuas (povoações) e sobretudo aquelas que eram contadas pelo seu protector e padrinho Mestre Mário Noronha, genro do falecido D. Boaventura, tinham outro enredo. Que a rainha de Manufahi era linda e branca, pelo que, atormentava a cabeça e atraía a cobiça do comandante militar e Same que, embora casado e pai de um filho, sucumbia de paixão por aquele feitiço, feito mulher indígena. E ele, militar, guardador de interesses da pátria e dos segredos íntimos da Nação, tencionava resgatá-la dum enlace que achava contra-natura e contrariava toda a intenção da demanda e da conquista. Tal paixão e atrevimento custou-lhe caro pagando com a vida, a ira do chefe tribal e marido».

O Autor inclui, também, no romance a referência a um episódio histórico muito pouco divulgado antes e depois da Revolução de Abril e, por isso mesmo, desconhecido para a maior parte dos portugueses: a invasão de Timor-Leste pelo Japão, durante a Segunda Guerra Mundial. A leitura deste romance de Luís Cardoso encarrega-se de mostrar ao leitor que o Estado Português afinal não escapou totalmente à guerra, ao contrário do que afirmava a propaganda do regime, já que Timor fazia parte do Império Ultramarino Português.

« (o meu pai) Foi chamado para fazer o curso de enfermagem na altura em que deflagrou e Segunda Guerra Mundial: quando os Japoneses entraram em Timor, já andava a municiar os comandos australianos que moveram uma intensa e desmesurada defesa contra os nipónicos».

Mas o aspecto mais presente no romance e que acompanha a trama do princípio ao fim é o choque de civilizações, onde esse evidencia a intenção de uma nação submeter e esmagar a outra no seu orgulho intrínseco.

Crónica de uma Travessia é, pois, a história de um tempo perdido e dos primórdios da resistência e autodeterminação da identidade do povo maubere e um livro que se torna inquietante pela proximidade de um tempo que críamos distante, face aos dias de hoje e reflectido num quotidiano que gostaríamos de ver afastado dos nossos olhos à mesma velocidade do afastamento intergaláctico.



12.01.2012-02.10.2013
Cláudia de Sousa Dias



Wednesday, November 06, 2013

“O Anibaleitor” de Rui Zink (Teorema)




Para quem ainda desconhece o facto, Rui Zink é docente de Estudos Portugueses na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas na Universidade Nova de Lisboa, função que acumula com actividade de escritor, apesar de, para muitos continuar a ser um dos intervenientes do programa televisivo A noite da má Língua, um sucesso de audiências da SIC nos anos 1990. Mas aquilo que, muitos dos que viam o programa – cujo protagonismo Rui Zink partilhava com Júlia Pinheiro e Miguel Esteves Cardoso – ignoram, é que, quer a sua obra ficcional quer a ensaística, publicitadas de forma algo discreta no país, se encontram traduzidas em várias línguas pelo mundo fora e que em 2009, Rui Zink recebia o Prémio Ciranda pelo seu romance, intitulado O Destino Turístico na altura em que dava aulas na Universidade de Dartmouth no Massachussets.

O romance/novela de que aqui tratamos, O Anibaleitor, tem por base a história de um jovem que foge de casa e embarca numa viagem fantástica, num navio cujo capitão persegue um animal de características míticas e, simultaneamente, paródicas, dando início a uma conturbada odisseia.

Segundo o Autor, esta história foi construída como um verdadeiro patchwork ou “manta de retalhos”, onde “um texto pode esconder outros”. Ao longo da trama alude-se, directa ou indirectamente, a várias obras literárias, em cumplicidade com o leitor, cuja memória literária está constantemente a ser espicaçada pelas inúmeras intertextualidades em que vai tropeça à medida que avança na trama. A mais evidente – além do trocadilho do título com a personagem do filme O Silêncio dos Inocentes, baseado no romance de Thomas Harris, Hannibal Lecter. Mas o psicopata canibal deste livro é um pouco diferente: trata de espalhar o terror aos devorar os inocentes silenciosos que são as vozes dos autores amordaçadas pela falta de quem os leia – é a analogia que fazemos da viagem do fugitivo adolescente com a viagem empreendida pelo capitão Ahab de Moby Dick de Hermann Melville, sobretudo no momento em que o arpoador Quequeg salta das páginas do autor anglo-saxónico para o barco onde o jovem ingressa como clandestino. Também A Caça ao Snark de Lewis Carroll se encontra presente nas entrelinhas de “O Anibaleitor”, durante o tempo da travessia. Da mesma forma, o gigantesco símio “Kong” de King Kong de Marion C. Cooper, um romance que ficou mundialmente conhecido pela sua adaptação ao cinema. As semelhanças físicas deste Anibaleitor com o King Kong de Cooper – um símio gigantesco – são notórias, mas esgotam-se no aspecto físico. O Anibaleitor de Rui Zink é um monstro que se deixa encantar pelo poder da palavra, daí a sua estranheza e desadequação a um mundo onde as pessoas cada vez mais deixam de ler e as que o fazem passam a ser olhadas como seres aberrantes e, por isso, excluídas e, e último grau, perseguidas. Outra intertextualidade mas agora por via da Fonética, esta patente no que diz respeito ao nome desta personagem, e da rima ou aproximação por via da sonoridade com a personagem Adamastor, a qual figura n'Os Lusíadas.


O adolescente, ao empreender a viagem como clandestino no barco que visa perseguir e aprisionar o Anibaleitor, fá-lo com o intuito de fugir ao controlo dos pais e ao peso das obrigações escolares, encontrando assim a oportunidade de fuga à rotina, aos horários, aos prazos de entrega de trabalhos de casa e, claro está a todo um sistema de regras a que tem de se submeter, pelo simples facto de frequentar uma escola. Mas não só. Pretende também evadir-se do ambiente familiar algo pesado onde reina a anomia, em vias de se desestruturar pela contradição vivida pelo facto de os pais não estarem a atravessar uma fase pacífica no que toca ao relacionamento. A evasão é a solução para a instabilidade e um ambiente familiar onde impera a incoerência de comportamento entre os cônjuges e a falta de diálogo.


Este romance juvenil, que está incluído no Plano Nacional de Leitura, pode servir de espelho a muitos adolescentes que provavelmente se encontrem a viver situações similares. No entanto, as inúmeras referências literárias com que o leitor se depara ao longo da narrativa, poderão já interessar senão a um leitor um pouco mais maduro, pelo menos aos jovens que sejam, já, detentores dessas mesmas referências, ou seja que tenham já lido ou ouvido falar dos livros que são mencionados no texto, ou ainda visto os filmes neles neles inspirados de forma a reconhecer essas mesmas alusões que são mencionadas no texto. O mesmo acontece com a citação de passagens de canções, como no em que o jovem trauteia uma canção dos GNR Dunas ou o narrador refere que no regresso o aguarda uma jovem de olhos castanhos “de encantos tamanhos” um trocadilho com o fado cantado por Francisco José. Trata-se de alusões que as gerações mais recentes poderão desconhecer por completo.Poderá também passar despercebida para alguns a alusão implícita à obra As Aventuras de João Sem Medo de José Gomes Ferreira ou dos Esteiros de Soeiro Pereira Gomes assim como àquela que remete para o O Dinossauro Excelentíssimo de José Cardoso Pires ou ainda para O Malhadinhas de Aquilino Ribeiro e até mesmo O Labirintodonte de Alberto Pimenta. De qualquer forma, este O Anibaleitor pretende, sem dúvida, retirar os livros de autores que eram lidos e amplamente divulgados dentro do curriculum escolar há cerca de três décadas atrás, das prateleiras empoeiradas das estantes de bibliotecas públicas e privadas.

Personagens e Trama

Relativamente à caracterização das personagens, o protagonista é-nos apresentado como um adolescente rebelde, que tende a meter-se em sarilhos enquanto os pais se distraem com as suas guerrinhas pessoais.

Quanto à localização da acção no tempo, trata-se de uma história passado no início nos anos oitenta, obrigando-nos a recuar cerca de três décadas, mas que poderia perfeitamente passar-se nos nossos dias.

Na primeira parte do livro, intitulada “A Viagem”, o leitor embarca numa aventura marítima com sabor a clandestinidade e cheiro a perigo, naquilo que poderia ser uma versão juvenil de um romance marítimo de Joseph Conrad ou Edgar Allan Poe mas num discurso paródico. O lado de sátira deste romance-novela está patente na forma como são descritas pelo narrador certas atitudes das personagens ou características psicológicas. Uma das mais desconcertantes – e hilariantes – do romance é a forma como o narrador se refere ao capitão do navio, cujo discurso se assemelha, curiosamente a alguém que já foi encarregue por várias vezes pelo povo português de comandar o navio que é a nação portuguesa, em riscos de afundamento:

«O Capitão pouco saía dos seus aposentos. Às vezes, eu entrevia pela janela a mão dele, apoiada num mapa cor-de-terra, os dedos tamborilando ao lado de uma taça de vinho, como se estivessem com febre miudinha.

Quando o capitão vinha à proa, parecia por vezes o única a caminhar direito, pois o seu coxear lembrava por vezes o balanço do barco. Era estranho vê-lo muito firme, muito sério, naquele ininterrupto carrossel. O capitão não era mau homem: tinha apenas a irritante mania de achar que nunca se enganava e de raramente ter dúvidas. Na altura, como eu era miúdo, até achava que essa era, se calhar, uma qualidade essencial para se ser capitão. Hoje já não penso assim e, creio, o capitão também não.»

A viagem começa a adquirir uma estranha dimensão surrealista a partir do momento em que o grumete descobre que o porão do navio onde viaja transporta uma grande quantidade de livros que revestem o respectivo lastro. A intenção do capitão é a de atrair o Anibaleitor, o monstro terrível devorador de livros e homens e capturá-lo a todo o custo, tal como o capitão Ahab fez com Moby Dick. Este Anibaleitor adquire as características dos seres mais terríveis dos clássicos da literatura universal partilhando os instintos assassinos do monarca marido de Sherazade das Mil e uma noites as quais acumula com instinto canibalesco de Hannibal Lecter de Thomas Harris a quem não souber entretê-lo com uma boa história. Apesar de, na verdade, o Anibaleitor gostar mais do que tudo, de devorar...livros.
O capitão, tal como o Ahab de Melville, deseja aprisionar o monstro para depois exibi-lo como troféu. Toda a segunda parte é conduzida no sentido de desvendar o verdadeiro objectivo da viagem e o que espera os tripulantes do navio.

A terceira parte inicia com o regresso da ilha onde se encontrava o Anibaleitor, em cujo discurso encontramos ecos da célebre Carta de Pêro Vaz de Caminha a el-rei D. Manuel, após a descoberta do caminho marítimo para a Índia, passando pelo Brasil. A recepção, à chegada a Lisboa é festiva e os marinheiros têm muito para contar.

O final sugere o lançar de sementes para a proliferação de inúmeros “Anibaleitores”, transformados de monstros, bárbaros e violentos em seres adoráveis, pelo poder da magia das palavras contidas nos livros.


Em suma, O Anibaleitor é uma parábola bem disposta contada num estilo ligeiro mas cheio de humor inteligente que se destina a jovens e adultos com vista à reflexão através do riso. Uma leitura de férias, para qualquer “anibaleitor” em potência “devorar”, durante uma curta viagem de comboio ou avião.


Desfrutem, então. Ou degustem, como preferirem.


27.12.2012-28-09-2013
Cláudia de Sousa Dias