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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Tuesday, November 18, 2025

“ ‘Memórias’- Contos: Reflexões sobre a condição humana” Anatole France/ William Faulkner/ W. Somerset Maugham (Diário de Notícias/ Jornal de Notícias)

Estas ‘Memórias’ são, na verdade, contos de ficção, revestidos de uma componente diarística ou memorialista no aspecto narratológico. Nesta tríade, apenas o britânico Somerset Maugham não foi vencedor do Prémio Nobel estando, todavia, perfeitamente ao nível dos outros dois colegas escritores, oriundos dos EUA (W. Faulkner) e França (A. France). Todos eles propõem, nas suas narrativas, uma reflexão sobre vários aspectos que envolvem a condição humana: o ego, em interacção com as relações familiares e de vizinhança, ou então as alterações estruturais na sociedade e ainda a evolução das questões éticas prevalecentes num dado meio social. I O primeiro conto, “Putois”, do crítico literário e jornalista Anatole France - (Paris, 1844-1924) -, consiste na demonstração - através da descrição detalhada de um caso concreto e recorrendo às memórias de infância de dois irmãos (dois pontos de vista complementares, portanto) -, de como uma aparentemente inocente mentirinha - construída pela mãe de ambos, a fim de fugir a uma situação desagradável ou, no mínimo, inconveniente e preservar assim a tranquilidade no meio familiar -, acaba por assumir proporções inimagináveis e envenenar uma comunidade inteira para, no final, atingir a própria autora do embuste. ‘Putois’ acaba também por ser uma crítica a uma sociedade pseudo-moralista - norteada por aquilo que Sigmund Freud classifica de super-ego, onde cada qual gere a própria conduta por parâmetros irreais e de forma maniqueísta, assente num primarismo que sempre procura um bode expiatório para lidar com os próprios erros. Mas há variações de gravidade no problema: note-se, por exemplo, o contraste entre o egoísmo, narcisista em extremo e imbuído de soberba, de Madame Cournouiller, com a simples necessidade de alívio da sobrinha, inventora da mentira. Nisto reside, também, o móbil principal desta última na criação do embuste como estratégia de fuga a fim de salvar, não só a própria face, mas também como a dos restantes membros da família nuclear. Vamos então dar uma olhadela com mais detalhe às personagens e respectivas atitudes. Análise das personagens: Dois irmãos recordam uma infância emocionante, em primeira mão, através de autodiegese: 1. Monsieur Lucien Bergeret: o narrador principal evoca os acontecimentos ocorridos na infância, tendo como cenário a cidade de Saint-Omer, em diálogo com a irmã solteira, Mademoiselle Zoe (Bergeret) 2. Mademoiselle Zoe: forma o dueto ou uma díade com o irmão, na reconstrução de memórias acrescentando detalhes, cor, tonalidade e relevo, enquanto faz o seu bordado. O quadro geral dos acontecimentos é, assim, obtido sob a forma de uma memória partilhada, reconstituída por ambos. Por exemplo, o retrato físico de Putois é recordado como sendo um homem perfeitamente comum, mas totalmente desprovido de carisma ou qualidades que levem as pessoas a apreciá-lo. O objectivo é, pois, desenhá-lo de forma a não ser olhado como simpático ou cativante. Todos estes traços físicos e de personalidade são, logo nas primeiras páginas, concatenados pelos dois irmãos, segundo aquilo que ouviram de várias fontes: “voz arrastada”, “tom untuoso”, “estrábico”, “furtivo”, “sem expressão”, “as mãos falavam por ele”, “loiro, de barba rala”. Os adjuvantes à tarefa: Em primeiro lugar, Pauline, a filha de Lucien, a qual intervém e estimula ainda mais o desenvolvimento da narrativa, vertida sob a forma de depoimento. Ao inquirir os dois seniores, a fim de saber ainda mais detalhes sobre a infância do pai e da tia, acaba por estimular os seus interlocutores a evocar as vozes e o ethos dos avós: o Avô Eloi - que esteve no centro do vórtice dos acontecimentos - como típico homem racionalista, agnóstico, produto do Iluminismo. Este avô ajudara a esposa a construir, na altura em que se desenrolaram os acontecimentos, ‘a anatomia de Putois’ com base na literatura clássica, isto é, em inter-textualidade com a prosa de um dos volumes de Rabelais e, simultaneamente, em contraste com a dramaturgia de Shakespeare, criando um homem vulgar, sem qualquer vestígio de heroicidade dos protagonistas dos dramas do autor inglês. «O teu avô, minha filha, Eloi Bergeret, que não se entretinha com bagatelas, atribui a esta passagem grande valor, principalmente tendo em conta a sua origem. Deu-lhe o título de “A anatomia de Putois”. E costumava dizer que, em certos casos, colocava a anatomia de Putois acima da anatomia de Queresmeprenant. “Se a descrição escrita por Zenomanes”, disse ele, “é mais erudita e rica em termos preciosos, a descrição de Putois supera-a largamente em relação à lucidez de ideias e à claridade do estilo”. Era esta a sua opinião, pois naqueles dias o doutor Ledouble de Tours, não tinha ainda comentado os capítulos trinta, trinta e um e trinta e dois do quarto livro de Rabelais.» Objectos que situam a acção no tempo Um elemento fundamental e útil no texto de France é a presença de objectos datados, caídos em desuso, logo após as primeiras décadas do século XX, o que ajuda também a posteridade a reconstruir a época em que decorre a acção: por exemplo, um tinteiro, uma pena, o lacre para usar na escrita situam os acontecimentos na época de transição do século XIX para o século XX. A relação entre estilos de personalidade no desencadear da efabulação No outro extremo do mesmo contínuo, a abranger todo um espectro de capacidade e intenção efabulatória, temos Madame Cournouiller, a Tia de Madame Bergeret e detentora de um carácter e temperamento de tal forma inflexíveis que motivaram toda a construção de uma realidade paralela pela sobrinha. Mas já veremos as diferenças de personalidade entre uma e outra. Segundoa Mãe de Lucien e Zoe, Madame Cournouiller era vista pela família como uma tia idosa, solteirona e solitária. A Mãe, evocada pelos dois irmãos, dá-nos a nós leitores uma Madame Cournouiller detentora de uma personalidade dominadora e moralizante, farisaica. Segundo ela, a Tia habitava uma mansão designada por Monplaisir, cujo nome só por si ilustra a forma como a casa seria o espelho onde se projectava o carácter da dona - a tia-avó, portanto, de Lucien e Zoe, por via materna. Madame Cournouiller é retratada como uma mulher extremamente manipuladora e dominadora que não hesita em usar de chantagem emocional para congregar pessoas à sua volta. Sofre, também, de uma falta crónica de empatia com toda a gente, enquanto a sobrinha se apresenta, por seu turno, como uma personalidade evitante e, simultaneamente, alguém cujas atitudes no dia-a-dia são orientadas para evitar, contornar, aplacar conflitos. Trata-se de duas figuras femininas opostas em termos de atenção para com o Outro. Madame Bergeret chega mesmo a inventar histórias rocambolescas para dissolver tensões, como se vê no parágrafo abaixo contendo descrição de Lucien, a referir-se ao ambiente em casa e à disposição geral face aos jantares na companhia de Madame Cournouiller: «O meu pai era muito infeliz; até dava para vê-lo nessas alturas. Mas Madame Cournouiller não reparava nisso. Aliás, ela não reparava em nada. A mãe aguentava melhor. Sofria tanto como o pai, talvez mais, mas continuava a sorrir.» (pg.7). A acção principal começa com a necessidade de a mãe inventar pretextos para se furtar àquela obrigação: “Felizmente a Zoé está com tosse convulsa, por isso não devemos ter de ir a Monplaisir durante muito tempo”, (pg.8). A existência metafísica de Putois, por ela imaginada e construída, acaba rapidamente por transformar-se depois, numa lenda e património imaterial da comunidade: passa a ser disseminada pela própria Madame Cournouiller que decide usar o fictício Putois inventado pela sobrinha como bode expiatório para o facto de a família não a visitar. Este acabará, mediante a acção do tempo, por adquirir uma existência real, ainda que fictícia, e condicionar a vida dos intervenientes na história - estes, para não se contradizerem, passam a comportar-se como se Putois existisse fisicamente, e não fosse construído a partir do imaginário de Madame Bergeret. Todos os membros da família colaboram agora na construção desta realidade paralela e integrar o putativo Putois no seu quotidiano como se, dia após dia, fossem escrevendo um romance de folhetim ou imaginassem uma figura numa peça de teatro. « Em todos os tempos em em todas as terras, seres que não eram mais reais que Putois inspiraram nações com amor e ódio, terror e esperança: aconselharam crimes, receberam oferendas, criaram leis e costumes. (...) Putois é uma personagem mítica; obscura, é certo, e das mais humildes. O rude satírico, que se costumava sentar à mesa com os camponeses do norte, era digno de figurar num dos quadros de Jordaens e numa fábula de La Fontaine. O filho peludo de Sycorax introduziu-se no mundo sublime de Shakespeare. Putois, menos afortunado, será sempre desprezado pelos poetas e pelos artistas. Falta-lhe a grandeza e o mistério: não possui distinção nem carácter. É fruto de uma mente demasiado racional. Foi criado por pessoas que sabiam ler e escrever, mas às quais faltava a imaginação encantadora que cria as fábulas.» (pg. 11). O conto de France é, assim, um fresco que contém em si uma forte crítica em jeito de sátira, aos preconceitos sociais da classe burguesa com o objectivo claro de expor o impulso desta em explorar o trabalho, pagando indignamente qualquer serviço prestado, como a dada altura tenta fazer Madame Cournouiller, com o fictício Putois. « Ele era de certa forma malvado (...) mas não era o mal absoluto. Era como aqueles diabos que se dizem ser muito maléficos, mas nos quais se descobrem boas qualidades. Estou tentado a pensar que a justiça não foi feita em relação a Putois. Madame Cournouiller foi preconceituosa para com ele; suspeitou desde logo que era um mandrião, um bêbado, um ladrão. Então, tendo em conta que Putois tinha sido contratado pela minha mãe e que esta não lhe poderia pagar muito bem, pois não era rica, achou que seria mais vantajoso contratar Putois como seu jardineiro e mandar embora o que já tinha, pois, apesar de ter melhor reputação, infelizmente também levava mais caro. Estava a chegar a altura de podar os teixos. Madame Cournouiller pensou que, se Madame Eloi Bergeret, que era pobre, pagava pouco a Putois, ela, que era rica, podia pagar ainda menos, já que era costume os ricos pagarem menos que os pobres.», (pg.13). Putois torna-se, a partir daqui, e pela difusão do seu carácter evanescente, de forma activa e entusiasta por Madame Cournouiller, num homem cujo ethos se caracteriza por ser sem carácter e incapaz de honrar um compromisso. Empenha-se pois em divulgar amplamente esta reputação desfavorável de um homem que não conhece pela comunidade. Putois torna-se assim numa lenda e passa a figurar no folclore de Saint-Omer: “Toda a gente em Saint-Omer acredita na existência de Putois”. Tal como na existência de deus ou de qualquer divindade. Putois passa, pois, a figurar no sistema de crenças local. Todas as faltas, delitos ou crimes, inclusive delitos sexuais e gravidezes inconvenientes passam a ser atribuídas a Putois. Esta existência imaterial acaba, no entanto, um dia por tomar corpo físico, ao ponto de envolver a autora do embuste na própria mentira que criara. Conclusão A figura de Putois passa a age, no conto de France, como elemento estimulante da criatividade e imaginação de cada um: cada membro da comunidade cria o seu próprio Putois sob medida, segundo a projecção das facetas mais obscuras do próprio eu. Por todas estas razões, esta história de Anatole France apresenta-se como um jogo de espelhos, onde cada um reflecte para os outros a sua própria ideia de vilão: aquele que carrega dentro de si ou do próprio imaginário, o lugar onde navegam as pulsões mais obscuras. Daqui resultarão, pois, múltiplos Putois recriados à medida dos múltiplos imaginários cognitivos singulares. Exactamente como qualquer figura literária que encontramos num livro e que reconstruimos na nossa própria mente. Consigo encontrar afinidades na temática deste conto com o romancista Albert Camus, em romances como ‘A Peste’ e ‘O Estrangeiro’ que iremos analisar oportunamente neste blogue. Na verdade Anatole France é, por motivos óbvios um precursor, tanto de Camus como de Saramago no que respeita ao tratamento de comportamentos indicadores de males sociais. No caso do texto que aqui tratamos, da tendência para a humanidade em projectar na pessoa daquele em quem se conhece mal ou não se conhece de todo, o pior que temos em nós mesmos. II “Aquele Sol Poente” de William Faulkner O autor deste segundo conto, além de receber o Nobel, em 1942, obteve também, por duas vezes, o Prémio Pulitzer: em 1954, com “Uma Fábula” e, em 1962, com “Os Desgarrados”. Mas o cenário deste conto de William Cuthbert Faulkner (1897-1962), situa-se na transição do século XIX para o início do século XX, na 2ª vaga da Revolução Industrial, e vai de encontro àquele que descrito na mini-nota biográfica do autor, para nesta edição: «Na decadência do sul agrário, assombrado pelas clivagens sociais e raciais, pela derrota na Guerra Civil e retrocedendo face a um Norte industrializado e triunfante, encontra-se um pano de fundo que fundamenta as suas histórias dramáticas, contadas através dos monólogos interiores das personagens, o chamado fluxo da consciência». Pois é esta a atmosfera que predomina no conto Faulkneriano de que aqui hoje falamos. Neste caso, aparece aqui, também, a cidade de Jefferson como pano de fundo à história. A narrativa começa com a justaposição de duas épocas, com um salto temporal, criando um efeito constrastivo, a fim de mostrar a forma como o tempo transformou fisicamente o aspecto da cidade e como mudou radicalmente o quotidiano das pessoas que nela habitam: o “ontem” e o “hoje”, tendo como tempo “presente” as primeiras décadas do século XX, para depois fazer uma regressão temporal, transportando a cidade de volta ao final do século anterior. Jefferson é, então, uma cidade que ainda tem presente na memória a Guerra Civil Americana, vivida poucas gerações antes, como se vê no excerto seguinte, pela oposição entre o “agora” e o “antes”: I «Agora em Jefferson a segunda-feira não é diferente de qualquer outro dia da semana. As ruas estão agora asfaltadas e as companhias de telefone e electricidade cada vez cortam mais árvores que dão sombra - carvalhos, plátanos, alfarrobeiras e ulmeiro - para arranjar espaço para postes de ferro encimados por cachos de infladas e fantasmagóricas uvas sem sumo e temos uma lavandaria que faz a recolha à segunda-feira de manhã, transportando as trouxas de roupa em carros de cores alegres, mandados fazer para o efeito: a roupa suja de uma semana inteira desaparece agora, qual assombração, atrás de pressurosas e irritantes buzinas eléctricas, com um longo ruído decrescente de borracha e asfalto, como seda a rasgar, e até já as negras que ainda lavam a roupa para os brancos à maneira antiga a vão buscar e levar de automóvel». Luís Vaz de Camões diria “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”. Mas na transição de um século para outro há coisas que não mudaram, como a estratificação racial naquela sociedade, por exemplo. Mmas a forma de execução e organização do trabalho, modificam-se por via da tecnologia. A evolução tecnológica, o aparecimento do automóvel, o telefone e a industrialização trouxeram mudanças radicais nas populações no início do século XX, mesmo nesta Jefferson, cidade que, no século XIX vivia ainda de mão-de-obra escrava. A mesma evolução tecnológica liga-se, como vimos, à guerra e à mudança da estrutura social influenciando, por sua vez, a transformação da estrutura social do trabalho. Na altura em que o narrador está a descrever os acontecimentos da história, a escravatura já não existe em Jefferson, mas os negros ainda são tratados como sub-humanos. Sobretudo mulheres como Nancy, a protagonista, de cujo trabalho e corpo os homens, mesmo os negros (como o marido dela) se servem como se de um objecto ou máquina se tratasse. A temática principal do conto é a violência contra as mulheres de condição mais humilde, negras sobretudo, e a viver em situação limite. É nesta categoria que se encontra representada a figura de Nancy como empregada doméstica numa casa de classe média, mas casada com um marido que lhe bate e que ninguém sabe já onde se encontra. Nancy é tratada com respeito e empatia pelo patrão da casa onde trabalha e os filhos deste tratam-na com afecto. Mas tanto a mulher de Mr. Jason como outros membros da comunidade olham para Nancy com desprezo, já que esta afoga as mágoas no alcoolismo e suspeita-se que, por vezes, recorre à prostituição para complementar o salário. Uma das cenas mais chocantes do conto é quando Nancy tenta expor Mr Stove em público, envergonhando-o por este nunca lhe pagar os seus serviços e acaba por ser brutalmente espancada à vista de todos: «Nós pensávamos que era whisky, até ao dia em que eles a prenderam outra vez e, quando estavam a levá-la para a cadeia, passaram pelo Mr. Stovall, que era caixa de banco e diácono da Igreja Baptista e Nancy começou a dizer: • Quando é que me vai pagá, homem branco? (...) - Mr. Stovall atirou-a ao chão, mas ela não parava de dizer (...) - até que Mr. Stovall lhe deu uma patada na boca com o tacão e o xerife deixou Mr. Stovall para trás e Nancy, ali caída no meio da rua, a rir. Virou a cabeça para o lado, cuspiu sangue e dentes e depois disse (...) Foi assim que ela ficou sem dentes (...) e durante toda aquela noite os que passavam na cadeia podiam ouvir a Nancy a cantar e a gritar.» [pp. 27-28]. E mais à frente: “Não passo de uma preta”. Já na cadeia, Nancy continua a ser alvo de atitudes o preconceito racial sendo é humilhada, também, pelos próprios guardas prisionais: «O carcereiro soltou-a e reanimou-a e depois bateu-lhe e chicoteou-a. Ela tinha-se enforcado com o vestido. Tinha-o prendido bem, sem dúvida, mas quando a levaram para a prisão não lavava nada em cima excepto o vestido e, por isso, não tinha nada com que amarrar as mãos e não era capaz de as soltar do parapeito da janela. Por isso, o carcereiro ouviu barulho e correu lá acima e encontrou a Nancy pendurada na janela, toda nua. » [pp. 28-29]. A temática das desigualdades sociais e sobretudo do racismo, fortemente impregnado no Sul dos Estados Unidos, os outrora estados Confederados, que saíram derrotados da Guerra Civil e que outrora dependiam de uma economia esclavagista em que a classe dominante via a população negra como uma população de sub-humanos estão descritos no conto com precisão gráfica, como acabámos de ver nos excertos anteriores. O anti-herói, marido de Nancy, ironicamente chamado de Jesus, e igualmente invisível, pois nunca aparece na efectivamente na história, é retratado por tida a comunidade, branca ou negra, como um monstro, o oposto de um salvador. A lembrança da sua pessoa aterroriza a todos os intervenientes no conto, devido à sua reputação de homem violento, mesmo sem aparecer efectivamente. Quentin, o narrador, o filho mais velho do dono da casa, retrata-o como alguém que é temido por todos, por ser alguém extremamente agressivo, descontrolado e vingativo. E, no entanto, a sua violência não é muito diferente da de Mr. Stovall, quando o seu carácter é publicamente exposto por Nancy. O Autor faz Quentin assumir uma posição destacada, periférica, em relação às outras personagens com as quais contracena a fim de realçar, o ponto de vista destas últimas, sobretudo o de Nancy, dos irmãos e da própria mãe. Por seu lado, Quentin, tal como os irmãos mais novos, vê no Pai a voz de autoridade e o protector máximo do clã, visão que também é partilhada pelos irmãos, como veremos. A autoridade do Pai é ali respeitada não por ser uma figura autoritária ou que impõe o medo, mas por ser revestida de humanismo e bom-senso. A Mãe das crianças, dona da casa onde Nancy trabalha, todavia, é retratada como alguém sem poder, sem capacidade de decisão ou acção, mas sobretudo sem empatia. A percepção desta característica da dona da casa encontra-se patente, no discurso do narrador de forma indirecta, onde transparece um sentimento de compaixão das crianças não pela Mãe, mas por Nancy - sentimento esse que é, também, partilhado pelo Pai. Todos em casa - excepto a Mãe - tentam proteger Nancy, descurando até, por vezes, o próprio conforto e segurança. A tarefa é, porém, dificultada pelos ciúmes doentios da dona da casa, que entra num jogo de poder para não ver a atenção dos que a rodeiam ser dividida com outra mulher, por não tolerar tanta preocupação e cuidado “por causa de uma preta”. Há quem pense ainda que a dona da casa receie que o marido se encante pelo corpo da empregada e seja tentado a fazer com aquela mulher destruída aquilo que ela própria não faz com o marido [pg.32]. No final da primeira parte, assistimos a uma cacofonia de vozes a ocorrer em simultâneo, formando uma espécie de coro entre o discurso das crianças mais novas a decorrer paralelamente ao diálogo entre Jason Pai e Nancy. Os dois filhos mais novos, Jason e Caddy brigam entre si, sem perceberem totalmente o teor da conversa entre os dois adultos. Entretanto, tudo é registado na memória do filho mais velho que se mantém calado enquanto observa e escuta tudo o que se passa à sua volta. Nesta primeira parte, o caso de Nancy representa o paradigma do trabalho feminino e doméstico que é desvalorizado e continua a ser executado em condições quase desumanas, mesmo com a abolição da escravatura. O transporte da roupa para ser lavada no rio, por exemplo, é ainda feito numa trouxa colocada à cabeça, a qual tem de se equilibrar enfrentando inúmeros obstáculos até chegar à margem [pg.32]. Para cúmulo, Nancy sofre em simultâneo com o duplo aguilhão do racismo por parte da sociedade, - salvo honrosas excepções como o caso de Jason Pai -, e da misoginia e prepotência que a levam a viver em terror constante e estado de hiper-vigilância a fim de evitar qualquer visita do marido. Para evitar este medo, o álcool torna-se o seu único refúgio e anestésico face ao terror iminente de ser maltratada, espancada e violada pelo marido alcoólico que se encontra ausente. No extremo oposto está o patrão que a leva e traz a casa, de forma a desencorajar uma potencial abordagem do ex-marido, que nunca se sabe quando poderá chegar. Temos aqui, também, duas castas de mulheres que se situam também em pólos opostos no tocante à protecção social. À vulnerabilidade de Nancy opõe-se a intocabilidade da Mãe das crianças para quem cozinha, a esposa de Jason. Nesta última, o desejo de ser o monopólio e centro das atenções do marido fá-la atirar tanto a empregada como as crianças para uma situação de perigo real. Nancy está agora numa situação muito próxima à de Mrs Lovelady, que se suicidara para fugir à tirania do marido. A história continuará, pois, a desenrolar-se dentro de um estilo híbrido, entre a narrativa e o drama, em seis momentos diferentes. II Mas se o primeiro acto desta narrativa ouconto longo dá a panorâmica geral da cidade, opondo dois quadros da mesma, em dois momentos diferentes no tempo, além de estabelecer a relação entre as personagens principais e assim definir o teor da narrativa, o segundo momento desta história mostra como se processa essa mesma dinâmica do desenvolvimento da trama. Aqui, realça-se a situação excepcional de a cozinheira estar doente e Nancy vir substituí-la. O Pai das crianças toma a iniciativa de proteger a empregada externa, pelo menos temporariamente, debaixo do seu tecto, com o imbatível argumento de precisar de alguém que cozinhe em casa e trate das crianças. A Mãe das crianças irá exercer, no entanto, aqui um papel de antagonista, motivada por um ciúme doentio, com laivos de paranóia, uma vez que não suporta ter outra mulher em casa a dormir debaixo do mesmo tecto (a não ser que seja idosa) e muito menos sob a protecção do marido E muito menos que este a acompanhe a casa ao cair do sol, mesmo que haja a possibilidade real de esta incorrer em risco de vida: «- Quanto tempo mais isto vai durar? Eu, a ser deixada sozinha neste casarão, enquanto tu vais levar uma negra medrosa a casa?», [pg. 34]. A cena termina com o lamento de Nancy, a descrever a sua condição de negra, que pela fatalidade de nascer com aquela cor de pele, vê-lhe constantemente serem-lhe negados direitos fundamentais como o direito à segurança ou integridade física, dirigindo-se aos filhos dos donos da casa, em particular ao filho mais novo: «- Eu nasci no Inferno, menino - disse Nancy -. Não tarda, não serei nada. Não tarda, vou voltá pra donde vim.», [pg,37]. III A cena III é o turning point da história, onde se descreve o estado de espírito dominante - o terror - por parte de Nancy face a um possível um ataque de violência extrema do marido, que a remete para um estado de hipervigilância permanente e com laivos de paranóia. É esta a atmosfera que irá dominar toda a cena e esbarrar cumulativamente no narcisismo racista da dona da casa, fazendo a tensão subir a níveis quase intoleráveis. O argumento da mãe acaba por vencer - claro - e Nancy tem de ir dormir a casa. Mas a empregada, tolhida pelo medo, consegue convencer as crianças a ir com ela e passar a noite na sua modesta habitação, a fim de servir de escudos humanos contra o próprio marido, à revelia dos patrões. O que temos aqui é, na ralidade um trauma de Nancy gerado porum quadro complexo de stress pós-traumático, que lhe amplia a sensação de insegurança, apesar da realidade indicar que o marido estará longe e, provavelmente, preso. É, no entanto, a incerteza que lhe desencadeia uma série de mecanismos de defesa exagerados e a deficiente avaliação do quadro da realidade efectiva que a leva a tomar precauções excessivas, prejudicando-lhe a execução do trabalho e a colocar as crianças em situação de desconforto, incentivando-as a desobedecerem aos pais e a esconder-lhes o plano de passar a noite fora. É por causa do mesmo medo irracional que Nancy vai falando em alta-voz pelo caminho, dirigindo-se ao filho mais novo, Jason, chamando-lhe Mr. Jason, como se estivesse a falar com o pai das crianças. O interior da casa de Nancy reflecte, também, o estado de espírito da mulher que nela habita, com um ambiente recheado de tensão: uma casa que está, também ela, oprimida pelo medo, onde impera o caos e a desordem. Persiste ali uma atmosfera pesada, a qual acaba também por contagiar as crianças, que se apercebem de algo negativo, mas que não conseguem identificar. Nancy decide então acalmá-las e propõe-se contar-lhes uma história: a história dela. Mas como se ela fosse Outra. A cena termina num momento de suspensão, exactamente quando Nancy inicia o seu relato. IV Na cena IV, há uma outra viragem no desenvolvimento: uma mudança no ponto de vista das crianças. Estas começam a sentir-se desconfortáveis em casa de Nancy. Não estão em sua casa. E entediadas, também. E depois inquietas, quando vêem Nancy queimar-se numa candeia, mas a continuar a agir como se nada fosse, percebendo que ela não está bem. Subitamente, ouvem alguém aproximar-se. Mas ao contrário de Nancy, permanecem lúcidas: estão convictas de que é o pai que finalmente vem buscá-las. As crianças revoltam-se com Nancy porque acabaram por não se divertir e depois de lá estarem não podiam voltar sozinhas para casa, permanecendo ali por várias horas contra-vontade. Nancy ficara mergulhada no seu mundo de terror e os jovens percebem que ali não é o lugar onde têm o seu mundo e as suas coisas, o seu conforto. Daí sentirem-se deslocadas e mesmo temporariamente desenraizadas. Mas essa é a condição permanente de Nancy, que eles experienciam por um curtíssimo espaço de tempo e que o narrador fixou na memória apesar do apagamento enunciativo durante a maior parte da narrativa no que respeita ao seu próprio ponto de vista. V A entrada do Pai em casa de Nancy provoca reacções inusitadas. A sua autoridade em relação aos filhos é expressa somente no olhar que lhes lança ao atravessar o limiar da porta. Basta-lhe aquele único olhar que lhes dirige, sem proferir palavra, mas exigindo explicações. Acto contínuo, as crianças começam a acusar-se mutuamente. Só então o Pai fala com Nancy. Aconselha-a a ir para casa de uma parente que vive ali perto. O medo de Nancy fizera com que sentisse que precisava da protecção de alguém branco. Como se o vínculo a uma casta dominante a protegesse da violência - negra ou não - e da miséria. Como no tempo da escravatura. Quando Jason Pai e as crianças saem a sua mente mergulha nas sombras e sente que a vida daí se moverá sempre em terreno instável. A sensação predominante é a da incerteza e anomia. VI Já fora da casa de Nancy, a família ruma à casa grande, após deixarem a empregada em casa dela. No caminho, ouvem o lamento da mulher só, a esconjurar o medo, enquanto rumam a casa ao cair da noite. Conclusão: Há uma época aqui que morre, ou está em rápida decadência, representada pelo sol poente mencionado no título. Outra época virá, diferente, mas o mundo ainda está em transformação. Este conto une-se tematicamente ao de outra escritora que escreveu sobre o tema das questões raciais na primeira metade do século vinte: Harper Lee, autora de ‘Não Matem a Cotovia’ (‘To Kill a Mockingbird’, no original. III "A Cigarra e a Formiga" O último conto desta mini-antologia de bolso é do britânico Somerset Maugham e intitula-se “A Cigarra e a Formiga”. Trata-se de uma reinvenção ou melhor, uma inversão, como veremos, da fábula de Aesopo na Antiguidade que já havia sido recuperada por LaFontaine no século XVII. Nesta versão recriada por Maugham, quem é, no final, recompensada é a personagem que representa a cigarra, Tom Ramsey, um homem carismático, encantador e oportunista, mas a quem a sorte acaba por sorrir. Por outro lado, a formiga, que é representada pelo irmão trabalhador, diligente, responsável e poupado, George Ramsey, não é bem tratada nem recompensada no final. É verdade que George é um homem trabalhador e cumpridor mas o seu carácter trará a lume uma faceta inesperada no final: o despeito. George é alguém que se julga merecedor de recompensa divina por ter sempre levado a vida com sacrifício e trabalho - uma visão do mundo tipicamente calvinista. É um homem com mérito e que é recompensado por isso, mas acha que não é suficiente. Para ele, pessoas imprudentes como o irmão não deveriam nunca ser favorecidas pela sorte: pelo contrário, deveriam sofrer uma punição exemplar por uma divindade nemésica qualquer, a fim de repor as coisas no seu devido lugar. Mas quando isso não acontece, George sente-se injustiçado. Outra voz importante aqui é a do narrador participante, que conhece e interage com as duas principais personagens conflituantes. No início do conto, ele alude precisamente à fábula original, afirmando que nunca apreciu o final da mesma pela frieza e indiferença da formiga face à miséria da cigarra. Esta disposição inicial do narrador é que será o motivo principal pelo qual decide narrar a história. A abertura mental desta voz narrativa, assim como a ausência de julgamento e aceitação completa da diferença de ambas as personagens, sem querer mudá-las, dota-a em si mesma de qualidades extraordinárias. Os irmãos Ramsey personificam, ambos, dois tipos diferentes de narcisismo: Tom é o narcisista grandioso, exibicionista, com pouco respeito pelas normas sociais, e sempre pronto a ‘cravar’ os amigos ou mesmo a defraudá-los, sem deixar-se envolver demasiado pelo seu charme carismático; George é, pelo contrário, o narcisista encoberto, moralista, que se julga mais puro, mais impoluto que qualquer outro, um ‘homem de bem’ e que, por isso mesmo, deve ser recompensado pela divina providência. Socialmente, George é muito bem visto, mas o narrador, no trato íntimo com os irmãos, apercebe-se das falhas de um e de outro. Com Tom, passa a ter algum cuidado em não se deixar levar e nunca lhe emprestar, jamais, “mais do que uma libra em ouro” (e quando falamos aqui de uma libra em ouro, não estamos a falar da unidade monetária actual do Reino Unido, mas sim de uma unidade de peso em ouro, isto é, cerca de 453 gramas, ou seja, uma volume de dinheiro considerável), pelo que se conclui daqui que o mesmo narrador será de facto alguém extremamente rico para emprestar o equivalente a 453 gramas de ouro a um amigo para este esbanjar na roleta ou no que quer que seja. Conclusão: No último parágrafo, percebemos de forma clara como a empatia do narrador cai para o lado do narcisista grandioso, ao invés do moralista. Há uma maior identificação do narrador milionário com primeiro - muito mais facilmente identificável e, por isso, provavelmente, menos perigoso - do que com o segundo. Mas um e outro são assaz tóxicos, apesar de exprimirem, de forma completamente distinta, a sua toxicidade. Em suma, nesta antologia são reunidos três autores e em três histórias distintas que tratam, sob diferentes perspectivas, a forma como se manifestam os diversos estilos de personalidade narcisista e em distintos contextos sociais. Para mais, situam-se, todos três, na viragem do século XIX ou mesmo já dentro da primeira metade do século XX (quando ainda não estavam identificados pela Psicologia as variações deste tipo de transtorno de personalidade), época em que ainda não se falava propriamente destas questões a nível científico, mas que já apaixonavam aqueles que se dedicavam a escrever Literatura e a abordar, com extraordinária acuidade, as questões do comportamento e da condição humana. Claudia de Sousa Dias Vila Nova de Famalicão, 18 de Novembro de 2025

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