O Capitão dos Adormecidos” de Mayra Montero (Civilização)
Nascida em Havana, em 1952, a Autora reside, actualmente, em Porto Rico – o local onde decorre a acção de O Capitão do Adormecidos. Após ter trabalhado como jornalista correspondente em vários países da América Central e, posteriormente, como editora, Mayra Montero dedica-se, hoje, à escrita em full-time, tendo os seus livros estão traduzidos em várias línguas, abrangendo já um vasto curriculum de obras publicadas: Veintitrés y una Tortuga, Del Rojo y su Sombra, Tú, la Obscuridad, Como un Mensagero tuyo e Purpura Profundo, romance erótico com o qual obteve o Prémio La Sonrisa Vertical.
O Capitão dos Adormecidos fala de uma paixão triangular, ocorrida em contexto de guerra civil em Porto rico. O romance é dedicado a duas figuras cujo destino trágico lhes mereceu destaque especial na trama: o barbeiro, Vidal Santiago e o guerrilheiro independentista Roberto Acevedo, um homem da cepa de Che Guevara . Apesar de se movimentarem como personagens secundárias, estas duas figuras têm um papel fundamental na engrenagem, uma vez que ambos desejam um estado livre da tirania dos interesses norte-americanos que interferem, directa ou indirectamente, na política e economia locais.
A História é introduzida na trama através de uma epígrafe de William Faulkner:
Past is not dead;
it’s not even past.
Já a estruturação da narrativa é desenhada pelo confronto entre a visão dos dois co-protagonistas sobre o mesmo acontecimento, de forma a completar as peças que faltam no puzzlle incompleto da memória e a esconjurar os fantasmas do passado, que se reconstrói pela justaposição de ambos os pontos de vista. Um processo que implica mexer nas velhas feridas de forma a extirpar o abcesso da dúvida curado, então, a partir da raiz, pelo processo da catarse.
A densidade emocional patente no discurso de ambos e, particularmente, no do co-piloto norte-americano, John-Timothy Bunker, faz lembrar um pouco o doloroso processo de exploração da memória utilizado pelo genial Sándor Márai em As Velas ardem até ao Fim. Apesar de este romance não atingir nem a profundidade nem a carga dramática presente na escrita sombria e absorvente do escritor nascido no seio do Império Autro-húngaro, numa cidade actualmente situada na Eslováquia. Um facto que se deve, talvez, à particularidade de a prosa de Mayra Montero estar um pouco mais temperada pelo clima soalheiro das Caraíbas, de cuja luminosidade e temperatura a Autora não consegue alhear-se e que acaba por se reflectir no humor das personagens que representam a cultura e a mentalidade típicas da região, como é o caso da cozinheira do hotel.
Personagens e articulação
John Timothy Bunker é o “Capitão dos Adormecidos”, isto é, um aviador vindo dos EUA que transporta “os adormecidos”, isto é, os mortos da ilha, por via aérea.
J.T. apaixona-se por Estela, a mãe de Andrés, a bela mulher de Jasín, dono do pequeno hotel da ilha, de quem é amigo. O pequeno Andrés, começa por ver no piloto uma espécie de herói que transporta “os adormecidos” para o local onde descansarão para sempre. Mas, a partir do momento em que se apercebe da obsessão doentia deste pela mãe, passa a vê-lo como uma ameaça.
Cinquenta anos depois, J.T. está a morrer mas deseja encontrar-se com Andrés para esclarecer factos mal explicados e dissipar as nuvens do passado.
O desenvolvimento da narrativa é, portanto, feito a duas vozes; por um lado, o passado é contado num estilo diarístico, como o conjunto de memórias que estão contidas nas cartas que J.T. escreve a Andrés, já doente, o que implica o uso da técnica da regressão – analepse – num discurso que alterna com a “voz” de Andrés. Esta última manifesta-se através de um monólogo interior, enquanto este deambula pelas Ruas da cidade que serviu de cenário à sua própria infância. A visão dos lugares onde decorreram os acontecimentos de cinco décadas antes ajudam a evocar um passado de meio século de forma mais nítida do que uma mera descrição. Também o confronto entre a forma de olhar para as coisas e a diferente interpretação dos factos pelos dois protagonistas vem ajudar muito na evocação da mulher amada por ambos: Estela, a protagonista feminina.
Estela é uma personagem-tipo, misteriosa e fascinante, pelo pouco que revela de si própria. É uma personagem muito pouco “redonda”, um poço como a Maria Eduarda Maia de Eça de Queirós, uma vez que, em praticamente nenhum momento da trama, conseguimos entrar no universo emocional que orienta a sua conduta, a não ser por via indirecta – comportamental – o que vem dificultar o acompanhamento da sua linha de pensamento. É somente através de Andrés e JT que temos acesso ao seu íntimo, embora sempre colorido com a afectividade que ambos lhe dedicam assim como da visão particular dos factos de cada um destes.
Estela personifica a típica heroína trágica dos autores clássicos. Trata-se de uma mulher de beleza loira, arcádica e, por isso, muito admirada em terras sul-americanas, desencadeadora de paixões violentas e fulminantes, embora aparentemente fria, como o mármore de Pharos, encerrada na sua beleza de estátua.
Entretanto, J.T. demonstra uma dedicação total a Estela (Stella, como lhe chama)e que se traduz num amor que se prolonga para além da morte, inclusive, após a reconstituição da própria vida afectiva.
Jasín, exibe a mesma dedicação a Estela enquanto casado com ela. Contudo, não parece aperceber-se do imenso vazio, da incomensurável insatisfação que a devasta, do tédio que a mortifica. Porque Estela, ao contrário daquilo que aparenta, é uma mulher incompleta, que parece sempre buscar algo de sublime: o amor que não encontra nem na vida rotineira com Jasín nem nas visitas periódicas de J.T.
O Andrés adulto é um homem já prestes a entrar na idade da reforma mas, ainda, marcado pelo impacto de uma imagem retida há cinquenta anos atrás que adquire uma configuração monstruosa aos olhos de uma criança, mas que se reveste de contornos mais suaves à luz do entendimento adulto.
E é este o motivo do encontro de ambos: alterar a configuração dos factos ao preencher o vácuo e aquilo que parece incompreensível pelo acesso à informação que faltava e à qual uma criança nunca poderia ter acesso – a componente cognitiva e emocional da atitude. A violência do vórtice passional.
A cena que envolve a morte de Estela está envolvida numa intensíssima carga dramática à qual se junta a tragédia do revolucionário Roberto Acevedo.
A exibição da prepotência das tropas norte-americanas em terras porto-riquenhas nos anos cinquenta e o respectivo apoio ao governo totalitário de então – cujo objectivo seria o de “esmagar os revoltosos de esquerda” – as atrocidades, os abusos cometidos pelos soldados americanos face à população civil local – como o caso do assassínio da jovem sobrinha da cozinheira do hotel, Santa, perpetrado com requintes de sadismo – é uma das vertentes do romance que causam mais incómodo no leitor.
Da mesma forma, a paixão entre a mesma empregada Braulia e a milionária Gertrudis que as colocam na franja das socialmente marginalizadas, embora ainda sem serem totalmente excluídas apesar das inegáveis qualidades de ambas, é outros dos ingredientes que vêm encaixar-se na trama principal enriquecendo-a, assim como o realismo doloroso que envolve o falecimento da avó de Andrés, o ponto culminante do longo processo de dissolução da memória.
Um romance que, sem ser uma obra de culto, não consegue deixar ninguém indiferente.
Cláudia de Sousa Dias
O Capitão dos Adormecidos fala de uma paixão triangular, ocorrida em contexto de guerra civil em Porto rico. O romance é dedicado a duas figuras cujo destino trágico lhes mereceu destaque especial na trama: o barbeiro, Vidal Santiago e o guerrilheiro independentista Roberto Acevedo, um homem da cepa de Che Guevara . Apesar de se movimentarem como personagens secundárias, estas duas figuras têm um papel fundamental na engrenagem, uma vez que ambos desejam um estado livre da tirania dos interesses norte-americanos que interferem, directa ou indirectamente, na política e economia locais.
A História é introduzida na trama através de uma epígrafe de William Faulkner:
Past is not dead;
it’s not even past.
Já a estruturação da narrativa é desenhada pelo confronto entre a visão dos dois co-protagonistas sobre o mesmo acontecimento, de forma a completar as peças que faltam no puzzlle incompleto da memória e a esconjurar os fantasmas do passado, que se reconstrói pela justaposição de ambos os pontos de vista. Um processo que implica mexer nas velhas feridas de forma a extirpar o abcesso da dúvida curado, então, a partir da raiz, pelo processo da catarse.
A densidade emocional patente no discurso de ambos e, particularmente, no do co-piloto norte-americano, John-Timothy Bunker, faz lembrar um pouco o doloroso processo de exploração da memória utilizado pelo genial Sándor Márai em As Velas ardem até ao Fim. Apesar de este romance não atingir nem a profundidade nem a carga dramática presente na escrita sombria e absorvente do escritor nascido no seio do Império Autro-húngaro, numa cidade actualmente situada na Eslováquia. Um facto que se deve, talvez, à particularidade de a prosa de Mayra Montero estar um pouco mais temperada pelo clima soalheiro das Caraíbas, de cuja luminosidade e temperatura a Autora não consegue alhear-se e que acaba por se reflectir no humor das personagens que representam a cultura e a mentalidade típicas da região, como é o caso da cozinheira do hotel.
Personagens e articulação
John Timothy Bunker é o “Capitão dos Adormecidos”, isto é, um aviador vindo dos EUA que transporta “os adormecidos”, isto é, os mortos da ilha, por via aérea.
J.T. apaixona-se por Estela, a mãe de Andrés, a bela mulher de Jasín, dono do pequeno hotel da ilha, de quem é amigo. O pequeno Andrés, começa por ver no piloto uma espécie de herói que transporta “os adormecidos” para o local onde descansarão para sempre. Mas, a partir do momento em que se apercebe da obsessão doentia deste pela mãe, passa a vê-lo como uma ameaça.
Cinquenta anos depois, J.T. está a morrer mas deseja encontrar-se com Andrés para esclarecer factos mal explicados e dissipar as nuvens do passado.
O desenvolvimento da narrativa é, portanto, feito a duas vozes; por um lado, o passado é contado num estilo diarístico, como o conjunto de memórias que estão contidas nas cartas que J.T. escreve a Andrés, já doente, o que implica o uso da técnica da regressão – analepse – num discurso que alterna com a “voz” de Andrés. Esta última manifesta-se através de um monólogo interior, enquanto este deambula pelas Ruas da cidade que serviu de cenário à sua própria infância. A visão dos lugares onde decorreram os acontecimentos de cinco décadas antes ajudam a evocar um passado de meio século de forma mais nítida do que uma mera descrição. Também o confronto entre a forma de olhar para as coisas e a diferente interpretação dos factos pelos dois protagonistas vem ajudar muito na evocação da mulher amada por ambos: Estela, a protagonista feminina.
Estela é uma personagem-tipo, misteriosa e fascinante, pelo pouco que revela de si própria. É uma personagem muito pouco “redonda”, um poço como a Maria Eduarda Maia de Eça de Queirós, uma vez que, em praticamente nenhum momento da trama, conseguimos entrar no universo emocional que orienta a sua conduta, a não ser por via indirecta – comportamental – o que vem dificultar o acompanhamento da sua linha de pensamento. É somente através de Andrés e JT que temos acesso ao seu íntimo, embora sempre colorido com a afectividade que ambos lhe dedicam assim como da visão particular dos factos de cada um destes.
Estela personifica a típica heroína trágica dos autores clássicos. Trata-se de uma mulher de beleza loira, arcádica e, por isso, muito admirada em terras sul-americanas, desencadeadora de paixões violentas e fulminantes, embora aparentemente fria, como o mármore de Pharos, encerrada na sua beleza de estátua.
Entretanto, J.T. demonstra uma dedicação total a Estela (Stella, como lhe chama)e que se traduz num amor que se prolonga para além da morte, inclusive, após a reconstituição da própria vida afectiva.
Jasín, exibe a mesma dedicação a Estela enquanto casado com ela. Contudo, não parece aperceber-se do imenso vazio, da incomensurável insatisfação que a devasta, do tédio que a mortifica. Porque Estela, ao contrário daquilo que aparenta, é uma mulher incompleta, que parece sempre buscar algo de sublime: o amor que não encontra nem na vida rotineira com Jasín nem nas visitas periódicas de J.T.
O Andrés adulto é um homem já prestes a entrar na idade da reforma mas, ainda, marcado pelo impacto de uma imagem retida há cinquenta anos atrás que adquire uma configuração monstruosa aos olhos de uma criança, mas que se reveste de contornos mais suaves à luz do entendimento adulto.
E é este o motivo do encontro de ambos: alterar a configuração dos factos ao preencher o vácuo e aquilo que parece incompreensível pelo acesso à informação que faltava e à qual uma criança nunca poderia ter acesso – a componente cognitiva e emocional da atitude. A violência do vórtice passional.
A cena que envolve a morte de Estela está envolvida numa intensíssima carga dramática à qual se junta a tragédia do revolucionário Roberto Acevedo.
A exibição da prepotência das tropas norte-americanas em terras porto-riquenhas nos anos cinquenta e o respectivo apoio ao governo totalitário de então – cujo objectivo seria o de “esmagar os revoltosos de esquerda” – as atrocidades, os abusos cometidos pelos soldados americanos face à população civil local – como o caso do assassínio da jovem sobrinha da cozinheira do hotel, Santa, perpetrado com requintes de sadismo – é uma das vertentes do romance que causam mais incómodo no leitor.
Da mesma forma, a paixão entre a mesma empregada Braulia e a milionária Gertrudis que as colocam na franja das socialmente marginalizadas, embora ainda sem serem totalmente excluídas apesar das inegáveis qualidades de ambas, é outros dos ingredientes que vêm encaixar-se na trama principal enriquecendo-a, assim como o realismo doloroso que envolve o falecimento da avó de Andrés, o ponto culminante do longo processo de dissolução da memória.
Um romance que, sem ser uma obra de culto, não consegue deixar ninguém indiferente.
Cláudia de Sousa Dias
16 Comments:
porque saio daqui sempre com vontade de me despedir...
para ter mais tempo para ler?
que bom ter-te;ler-te.
saber por ti. conhecer por ti.
Cláudia_________recebi no mail um comentário que não consigo publicar no piano....:((((
mas não quero deixar de agradecer a gentileza....terna.
forte abraço e até ao próximo Famafest????
bom....resolvi copiar do mail para o piano o comentário que não entrava....:)
beijos Legente...
e obrigada!!!!!!!
é uma querida, Martinha linda...
beijo
csd
oh...realmente deu operação não consluída ou algo do género.
mas eu tencionava voltar a postá-lo mais tarde!
:-)
mas assim fica resolvido!
beijo grande
CSD
Olá,
Tens uma surpresa no Muito para Ler. Passa por lá!
Olá, Claudia:
Obrigada pelas tuas dicas. Obrigada por escrever tão bem sobre os livros. Continuo a ler-te.
Beijinhos
obrigada NúNú...
bjs
csd
É rara a vez que não venho aqui, a esta tua casa, e não venho com as mãos cheias de sugestões. Obrigada por essa pequena grande abertura de horizontes!
um beijo
Este é, sim, um livro que espero vir a adquirir. Personagens desenvolvidas desta maneira apenas vindas de bons escritores.
Estes autores cubanos são uma pérola!
Obrigada, Cláudia
Bjinhos
TSC
Cláudia, um prémio espera-a no meu blogue:)
Obrigada Marcelina!
passarei lá sim para ver a surpresa com pormenor!
CSD
cristina és uma querida.
beijos
csd
Pedro, é verdade mas mesmo assim são-no de uma forma convencional. há autores que o fazem de uma forma sintética mas de tal fforma cons~densada que dem duas páginas dizem mais do que muitos em cem.
e que ainda assim conseguem reroduzir o quotidiano em mudança nas situações mais significativas.
é o caso do post anterior cujo autor eu proporia para o nobel.
csd
obrigada, Carla!
passarei lá para ver.
beijo muito grande e obrigada.
csd
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