“A Tia Júlia e o Escrevedor” de Mário Vargas Llosa (Dom Quixote)
“Escrevo. Escrevo que escrevo, Mentalmente, vejo-me a escrever que escrevo e também posso ver-me a escrever que escrevo.
Recordo-me já escrevendo e, também, vendo-me que escrevia.
E vejo-me recordando que me vejo a escrever e recordo-me vendo-me recordar que escrevia e escrevo vendo-me escrever que recordo ter-me visto escrever que me via a escrever, que recordava ter-me visto a escrever que escrevia, que escrevo que escrevia.
Também posso imaginar-me escrevendo que já tinha escrito que me imaginaria escrevendo que tinha escrito que me imaginava escrevendo que me vejo a escrever que escrevo.”
Esta epígrafe retirada de El Grafografo de Salvador Elizondo é a chave que decifra – codifica? – o enredo do romance A Tia Júlia e o Escrevedor. Trata-se de um livro autobiográfico que o autor dedica à sua primeira mulher – Júlia Urquidi Llanes – e que é a raiz da maior parte da obra do Autor, uma vez que, pela mão de um dos protagonistas saem outros personagens que irão protagonizar, por sua vez, outros romances de Llosa.
Mas o tema principal desta mesma obra é a paixão do jovem “Varguitas”, “Marito” para a família, uma tribo composta por tios e tias, primos e primas e uma bela e carismática “tia” que só o é por afinidade, recém-divorciada, na casa dos “trinta”, de quem todos esperam que, mediante a sua condição de mulher “de classe” mas sem fortuna, realize um casamento conveniente por forma a garantir a estabilidade material necessária de modo a não se tornar um encargo para a família por um lado, e a fugir ao estigma de solteirona, onde se encaixa como uma luva segundo os parâmetros da ultra-conservadora alta sociedade limenha dos anos cinquenta, pelo outro. A família de “Varguitas” espera que “Julita” seja possuidora de uma generosa dose de bom senso calculista a sobrepor-se a uma qualquer paixão inconveniente, susceptível de lhe comprometer o futuro, ao apresentar-lhe os mais cobiçados partidos, verdadeiros portentos económicos, sem olhar à evidente decrepitude física dos mesmos, inclusive os cabelos ralos, dentaduras postiças ou ventres pronunciadamente convexos.
Já de “Varguitas”espera-se que consiga uma vantajosa aliança quer em termos económicos quer em termos políticos após a conclusão da licenciatura em Direito, satisfazendo, assim, as aspirações do pai que se move nas mais elevadas esferas da política e alta finança de Lima.
Contudo, a juventude de “Marito” e a solidão de Júlia acabam por minar os projectos megalómanos da família…
Da mesma forma a pulsão que leva “Varguitas”, o qual acumula, juntamente com os estudos, a função de locutor de uma rádio local –, a escrever e a amar os livros vem contrariar um futuro cuidadosamente arquitectado pelos pais e pelos tios, que passam de ora a vante a tratar “Julita” como uma perigosa e nefasta mulher fatal.
As retaliações não se fazem esperar. Esbarram, contudo na forte personalidade e persistência de Marito – que só faz “o que lhe dá na gana” – e no romantismo de Júlia, a qual não tem nada a perder e em quem a audácia e a frontalidade de “Varguitas” exerce um fascínio irresistível…
Mas A Tia Júlia e o Escrevedor é um romance que se desenvolve a duas velocidades: paralelamente a uma trama de contornos folhetinescos entre “Varguitas” e Júlia – uma pedrada no charco, sobretudo numa família tão tradicional como a dos Llosa –, é desenvolvido, em ritmo de alternância, o drama de Pedro Camacho, o “escrevedor” de rádio-novelas, xenófobo – o qual vai deixando transparecer na obra o ódio visceral que nutre face a tudo o quanto provém da Argentina – e a quem o director da rádio decide contratar para elevar o nível de audiências. Camacho é um homem enfezado, misantropo, ferreamente agarrado a hábitos de rotina que lhe preenchem a jornada – o oposto da caracterização dos seus protagonistas masculinos. Trata-se, na realidade de uma personagem burlesca, cuja tacanhez de espírito confere ao romance a comicidade necessária para nos apercebermos do forte sentido crítico do Autor que se mescla com um humor de cariz satírico um pouco ao estilo de um Boccaccio ou Gil Vicente.
Llosa pretende caracterizar a figura típica daqueles escritores que escrevem para sobreviver, tendo para isso de fazer algumas concessões: para tal, dedicam-se à produção de uma escrita industrial – Camacho chega a produzir nove novelas diárias a serem transmitidas na rádio, povoadas de personagens planas, onde o protagonista tem sempre a mesma aparência física, diferindo apenas no nome. Tanto as personagens como o estilo narrativo de Pedro Camacho exibem os mesmos preconceitos e emitem os mesmos juízos de valor em todas as estórias ques acabam por se fundir, confundir e misturar numa amálgama incompreensível até mesmo para os ouvintes mais fiéis que assistem religiosamente a todas as emissões.
O escrevedor Camacho é um ser quase analfabeto que, apesar de não conseguir produzir textos muito elaborados, consegue torná-los cativantes para a maioria do público – mesmo aquele considerado intelectual - que consegue ver nas cenas mais rocambolescas uma deliciosa comédia, apimentada por um humor incisivo e, simultaneamente, ingénuo.
Camacho acaba por sucumbir a um esgotamento nervoso, vítima de excesso de trabalho e falta de tempo para reciclar a informação e buscar novas fontes de inspiração.
O drama de Pedro Camacho é desenvolvido e rematado por Varguitas o qual, dentro do próprio romance, “agarra” no novelo caótico das estórias de Camacho para as desenvolver, tornando-se a partir de então, um verdadeiro escritor.
Audácia, ficção e realidade que se misturam e marcam a génese de uma estrela no mundo das letras.
Cláudia de Sousa Dias
Recordo-me já escrevendo e, também, vendo-me que escrevia.
E vejo-me recordando que me vejo a escrever e recordo-me vendo-me recordar que escrevia e escrevo vendo-me escrever que recordo ter-me visto escrever que me via a escrever, que recordava ter-me visto a escrever que escrevia, que escrevo que escrevia.
Também posso imaginar-me escrevendo que já tinha escrito que me imaginaria escrevendo que tinha escrito que me imaginava escrevendo que me vejo a escrever que escrevo.”
Esta epígrafe retirada de El Grafografo de Salvador Elizondo é a chave que decifra – codifica? – o enredo do romance A Tia Júlia e o Escrevedor. Trata-se de um livro autobiográfico que o autor dedica à sua primeira mulher – Júlia Urquidi Llanes – e que é a raiz da maior parte da obra do Autor, uma vez que, pela mão de um dos protagonistas saem outros personagens que irão protagonizar, por sua vez, outros romances de Llosa.
Mas o tema principal desta mesma obra é a paixão do jovem “Varguitas”, “Marito” para a família, uma tribo composta por tios e tias, primos e primas e uma bela e carismática “tia” que só o é por afinidade, recém-divorciada, na casa dos “trinta”, de quem todos esperam que, mediante a sua condição de mulher “de classe” mas sem fortuna, realize um casamento conveniente por forma a garantir a estabilidade material necessária de modo a não se tornar um encargo para a família por um lado, e a fugir ao estigma de solteirona, onde se encaixa como uma luva segundo os parâmetros da ultra-conservadora alta sociedade limenha dos anos cinquenta, pelo outro. A família de “Varguitas” espera que “Julita” seja possuidora de uma generosa dose de bom senso calculista a sobrepor-se a uma qualquer paixão inconveniente, susceptível de lhe comprometer o futuro, ao apresentar-lhe os mais cobiçados partidos, verdadeiros portentos económicos, sem olhar à evidente decrepitude física dos mesmos, inclusive os cabelos ralos, dentaduras postiças ou ventres pronunciadamente convexos.
Já de “Varguitas”espera-se que consiga uma vantajosa aliança quer em termos económicos quer em termos políticos após a conclusão da licenciatura em Direito, satisfazendo, assim, as aspirações do pai que se move nas mais elevadas esferas da política e alta finança de Lima.
Contudo, a juventude de “Marito” e a solidão de Júlia acabam por minar os projectos megalómanos da família…
Da mesma forma a pulsão que leva “Varguitas”, o qual acumula, juntamente com os estudos, a função de locutor de uma rádio local –, a escrever e a amar os livros vem contrariar um futuro cuidadosamente arquitectado pelos pais e pelos tios, que passam de ora a vante a tratar “Julita” como uma perigosa e nefasta mulher fatal.
As retaliações não se fazem esperar. Esbarram, contudo na forte personalidade e persistência de Marito – que só faz “o que lhe dá na gana” – e no romantismo de Júlia, a qual não tem nada a perder e em quem a audácia e a frontalidade de “Varguitas” exerce um fascínio irresistível…
Mas A Tia Júlia e o Escrevedor é um romance que se desenvolve a duas velocidades: paralelamente a uma trama de contornos folhetinescos entre “Varguitas” e Júlia – uma pedrada no charco, sobretudo numa família tão tradicional como a dos Llosa –, é desenvolvido, em ritmo de alternância, o drama de Pedro Camacho, o “escrevedor” de rádio-novelas, xenófobo – o qual vai deixando transparecer na obra o ódio visceral que nutre face a tudo o quanto provém da Argentina – e a quem o director da rádio decide contratar para elevar o nível de audiências. Camacho é um homem enfezado, misantropo, ferreamente agarrado a hábitos de rotina que lhe preenchem a jornada – o oposto da caracterização dos seus protagonistas masculinos. Trata-se, na realidade de uma personagem burlesca, cuja tacanhez de espírito confere ao romance a comicidade necessária para nos apercebermos do forte sentido crítico do Autor que se mescla com um humor de cariz satírico um pouco ao estilo de um Boccaccio ou Gil Vicente.
Llosa pretende caracterizar a figura típica daqueles escritores que escrevem para sobreviver, tendo para isso de fazer algumas concessões: para tal, dedicam-se à produção de uma escrita industrial – Camacho chega a produzir nove novelas diárias a serem transmitidas na rádio, povoadas de personagens planas, onde o protagonista tem sempre a mesma aparência física, diferindo apenas no nome. Tanto as personagens como o estilo narrativo de Pedro Camacho exibem os mesmos preconceitos e emitem os mesmos juízos de valor em todas as estórias ques acabam por se fundir, confundir e misturar numa amálgama incompreensível até mesmo para os ouvintes mais fiéis que assistem religiosamente a todas as emissões.
O escrevedor Camacho é um ser quase analfabeto que, apesar de não conseguir produzir textos muito elaborados, consegue torná-los cativantes para a maioria do público – mesmo aquele considerado intelectual - que consegue ver nas cenas mais rocambolescas uma deliciosa comédia, apimentada por um humor incisivo e, simultaneamente, ingénuo.
Camacho acaba por sucumbir a um esgotamento nervoso, vítima de excesso de trabalho e falta de tempo para reciclar a informação e buscar novas fontes de inspiração.
O drama de Pedro Camacho é desenvolvido e rematado por Varguitas o qual, dentro do próprio romance, “agarra” no novelo caótico das estórias de Camacho para as desenvolver, tornando-se a partir de então, um verdadeiro escritor.
Audácia, ficção e realidade que se misturam e marcam a génese de uma estrela no mundo das letras.
Cláudia de Sousa Dias
21 Comments:
Li este livro há alguns meses e confesso que não foi dos meus favoritos. A partir de certa altura comecei a achar maçudo, e cheguei mesmo a saltar os folhetins de Pedro Camacho.
POrque simplesmente chega uma altura em que esses mesmos folheteins se tornam uma salgalhada incompreensível. é propositado. o varguitas depois é que pega naquele novelo e vai desenredá-lo em romances posteriores como "Lituma nos Andes", os Cadernos de Dom Rigoberto, entre outros...
A chave está na citação feita no início deste post!
:-)
CSD
abraço recebido. na noite "chuventa".
doce o teu "re.escrever" sobre os livros. num rodapé atento e inteligente.
____________beijos....menina...:)
Agora, de "chuventa" passou a "álgida"...
Nem consigio tirar as luvas para teclar, apesar de, aqui na rádio, estar o ar condicionado ligado!
beijos
CSD
Olá Cláudia!
Já está online o blogue sobre a Joanne Harris (http://joanneharris.blogs.sapo.pt) Fico à espera da sua visita.
Boas leituras!
Está cá em casa por ler... Confesso que não vou pegar nele em breve, mas quem sabe se não me surpreendo!
visitarei sim.
logo que compre os últimos livros dela
;-)
CSD
espero bem que sim...!
beijo grande
CSD
Posso fazer uma sugestão/pedido?
Por vezes gostaria de consultar opiniões anteriores ou até tirar ideias para futuras leituras, mas, na minha opinião, a estrutura do blog não facilita muito. Se existisse um menu lateral com todas as opiniões ao longo dos anos, facilitaria imenso a pesquisa. É uma ideia.
Bom Natal!!
Cláudia,
Tenho lido com regularidade as suas críticas, mas ando sempre fugido atrás dos livros de ensaio e falta-me o tempo para os romances. Tenho pena!
Hoje deixo comentário para lhe desejar um excelente Natal e um 2009 pleno de boas leituras para nos brindar com as suas sugestões sempre tão lúcidas e bem construídas.
Boas Festas
Cláudia
Votos de festas felizes e um 2009 com muitos livros!
Beijo
Votos de feliz Natal e de um 2009 cheio, pelo menos de livros e de todas as coisas boas da vida.
Um grande abraço
P.
não faço ideia como é que isso se faz mas posso tentar descobrir...
CSd
Obrigada Luis pela visita e pelo carinho.
um abraço.
O'sanji e baudolino: os livros são uma das boas coisas da vida. Outra delas é os amigos que encontramos na blogosfera como vocês!"
Abraço ou abreijos como quiserem..
CSD
Olá Cláudia,
Já há algum tempo que não passo por aqui [por culpa minha, claro!], e hoje vim apenas para desejar-te
FELIZ NATAL
E
BOM ANO 2009
[com boas leituras].
Beijos
Obrigada, Nandokas!
retribuo com todo o carinho.
CSd
Olá, Claudia, tudo bem? Sou editor-assistente do Digestivo Cultural, uma revista eletrônica de jornalismo cultural, do Brasil, e gostaria de saber se você teria interesse em republicar esta sua resenha de "Tia Julia..." no Digestivo. Eis o meu e-mail: rafaelnikov@gmail.com Aguardo um contato seu. Um abraço, Rafael Rodrigues
podemos falar sobre isso, sim...
CSD
Oi, Claudia! Você pode me enviar um email para conversarmos? Meu endereço é rafaelnikov@gmail.com Um abraço!
Adorei a leitura, e também a critica que Mario Vargas Llosa faz a nossa sociedade.
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