"A Metamorfose" de Franz Kafka (Quasi)
“A Metamorfose” de Franz Kafka (Quasi)
Um jovem caixeiro-viajante que sustenta a família acorda, um dia, e vê-se (ou imagina-se?) transformado em escaravelho. A partir daí, começa, de uma forma progressiva, a ver o mundo e a sentir as coisas que o rodeiam através do olhar do insecto.
O apetite modifica-se, os objectos ganham outra dimensão, a relação com os pais e a irmã sofre, também, uma alteração progressiva à medida que estes começam a aceitar a sua nova existência e a vê-lo com um ser desprovido de coluna vertebral, isto é, começam a enxergá-lo da mesma forma que o protagonista se vê a si próprio – efeito espelho.
A estranha doença ou transformação de Gregor Samsa – seja ela física ou meramente psicológica, embora com efeitos somáticos – acaba por desencadear uma profusão de transformações radicais no quotidiano da família, não só no que respeita aos hábitos, como também à disposição dos objectos na casa.
A doença de Gregor – porque podemos facilmente associar este género de “metamorfose” a uma deturpação da percepção, característica de alguns tipos de esquizofrenia ou simplesmente a uma qualquer maleita destruidora do sistema nervoso central, progressivamente incapacitante – implica, desde logo, uma série de reajustamentos adoptados, quer pelos pais quer pela irmã, no sentido de assegurarem o sustento da família. O pai, preparado para assumir a condição de aposentado, regressa à vida activa, obrigado a um rejuvenescimento repentino, que se exprime não só na postura corporal mas também numa completa reenergização de toda a actividade mental e física; a mãe arranja forma de trabalhar em casa (costura) e a irmã, um emprego temporário, desistindo, pelo menos algum tempo, do sonho de estudar violino no Conservatório. Chegam, inclusive, a alugar parte da casa para arrecadar mais algum dinheiro.
A progressão da doença de Gregor faz com que este se torne uma presença incómoda para os que o rodeiam – um inválido que começa a ser visto como um fardo.
Franz Kafka é particularmente duro, melhor dizendo, usa de uma capacidade de análise de tal forma fria e objectiva para descrever emoções tipicamente humanas – que não obedecem a condicionalismos morais nem ao sentido do politicamente correcto, servindo-se do recurso à ironia para o efeito, ao associar à imagem de um corpo deteriorado, ao aspecto exterior repulsivo de um escaravelho (um animal repugnante para a maior parte dos humanos) – ao criar um vivo contraste, entre o amor e adoração demonstrado pelas restantes personagens à beleza exterior, à “jovem frescura do corpo” da irmã e o incómodo crescente por ter em casa alguém que não é socialmente útil. Um aspecto da obra mediante o qual não nos podemos deixar de sentir em xeque pela exposição de atitudes que, não raro, queremos sublimar ou, pelo menos, racionalizar, dando-lhe uma coloração socialmente mais aceitável no que respeita às motivações que estão na sua origem.
Trata-se de expor, de forma assaz crua, o culto que a sociedade ocidental presta à Beleza e à Juventude, como mecanismos de selecção eugénica na espécie humana. Franz Kafka mostra-se particularmente visionário, ao prever o aparecimento de uma ideologia dominante no continente europeu que trouxesse uma forma de dominação semelhante ao nazismo, uma vez que, na altura em que escreveu este conto surgiam nos países mais desenvolvidos da Europa, as Teorias Raciais da História e o Darwinismo Social – esta última a enfatizar, particularmente, a necessidade de competição entre os mais aptos da mesma espécie, como forma de aperfeiçoamento e capacidade de adaptação ao meio…
E, numa antecipação de quase um século no que respeita à obsessão face ao mesmo culto da beleza e da eugenia que hoje vivemos (porque amplamente difundida pelos media), Franz Kafka conseguiu tecer o retrato dos já referidos mecanismos de selecção dos mais aptos, segundo os teóricos do darwinismo social. O que pressupõe uma capacidade de adaptação à mudança a toda a prova, quer no ecossistema social quer dentro da célula familiar.
Uma obra mais do que actual e que não deixou de inspirar alguns dos mais proeminentes autores do século vinte como Gabriel García Márquez e Salman Rushdie…
E cuja pertinência temática continua imune à passagem do tempo.
E uma mosca na sopa das consciências mais puritanas a arrotar hipocrisias pseudo-humanitárias…
Cláudia de Sousa Dias
Um jovem caixeiro-viajante que sustenta a família acorda, um dia, e vê-se (ou imagina-se?) transformado em escaravelho. A partir daí, começa, de uma forma progressiva, a ver o mundo e a sentir as coisas que o rodeiam através do olhar do insecto.
O apetite modifica-se, os objectos ganham outra dimensão, a relação com os pais e a irmã sofre, também, uma alteração progressiva à medida que estes começam a aceitar a sua nova existência e a vê-lo com um ser desprovido de coluna vertebral, isto é, começam a enxergá-lo da mesma forma que o protagonista se vê a si próprio – efeito espelho.
A estranha doença ou transformação de Gregor Samsa – seja ela física ou meramente psicológica, embora com efeitos somáticos – acaba por desencadear uma profusão de transformações radicais no quotidiano da família, não só no que respeita aos hábitos, como também à disposição dos objectos na casa.
A doença de Gregor – porque podemos facilmente associar este género de “metamorfose” a uma deturpação da percepção, característica de alguns tipos de esquizofrenia ou simplesmente a uma qualquer maleita destruidora do sistema nervoso central, progressivamente incapacitante – implica, desde logo, uma série de reajustamentos adoptados, quer pelos pais quer pela irmã, no sentido de assegurarem o sustento da família. O pai, preparado para assumir a condição de aposentado, regressa à vida activa, obrigado a um rejuvenescimento repentino, que se exprime não só na postura corporal mas também numa completa reenergização de toda a actividade mental e física; a mãe arranja forma de trabalhar em casa (costura) e a irmã, um emprego temporário, desistindo, pelo menos algum tempo, do sonho de estudar violino no Conservatório. Chegam, inclusive, a alugar parte da casa para arrecadar mais algum dinheiro.
A progressão da doença de Gregor faz com que este se torne uma presença incómoda para os que o rodeiam – um inválido que começa a ser visto como um fardo.
Franz Kafka é particularmente duro, melhor dizendo, usa de uma capacidade de análise de tal forma fria e objectiva para descrever emoções tipicamente humanas – que não obedecem a condicionalismos morais nem ao sentido do politicamente correcto, servindo-se do recurso à ironia para o efeito, ao associar à imagem de um corpo deteriorado, ao aspecto exterior repulsivo de um escaravelho (um animal repugnante para a maior parte dos humanos) – ao criar um vivo contraste, entre o amor e adoração demonstrado pelas restantes personagens à beleza exterior, à “jovem frescura do corpo” da irmã e o incómodo crescente por ter em casa alguém que não é socialmente útil. Um aspecto da obra mediante o qual não nos podemos deixar de sentir em xeque pela exposição de atitudes que, não raro, queremos sublimar ou, pelo menos, racionalizar, dando-lhe uma coloração socialmente mais aceitável no que respeita às motivações que estão na sua origem.
Trata-se de expor, de forma assaz crua, o culto que a sociedade ocidental presta à Beleza e à Juventude, como mecanismos de selecção eugénica na espécie humana. Franz Kafka mostra-se particularmente visionário, ao prever o aparecimento de uma ideologia dominante no continente europeu que trouxesse uma forma de dominação semelhante ao nazismo, uma vez que, na altura em que escreveu este conto surgiam nos países mais desenvolvidos da Europa, as Teorias Raciais da História e o Darwinismo Social – esta última a enfatizar, particularmente, a necessidade de competição entre os mais aptos da mesma espécie, como forma de aperfeiçoamento e capacidade de adaptação ao meio…
E, numa antecipação de quase um século no que respeita à obsessão face ao mesmo culto da beleza e da eugenia que hoje vivemos (porque amplamente difundida pelos media), Franz Kafka conseguiu tecer o retrato dos já referidos mecanismos de selecção dos mais aptos, segundo os teóricos do darwinismo social. O que pressupõe uma capacidade de adaptação à mudança a toda a prova, quer no ecossistema social quer dentro da célula familiar.
Uma obra mais do que actual e que não deixou de inspirar alguns dos mais proeminentes autores do século vinte como Gabriel García Márquez e Salman Rushdie…
E cuja pertinência temática continua imune à passagem do tempo.
E uma mosca na sopa das consciências mais puritanas a arrotar hipocrisias pseudo-humanitárias…
Cláudia de Sousa Dias
25 Comments:
Li há bastante tempo e já reli, entretanto umas duas vezes. Pode ser qualquer um de nós de um ou do outro lado da porta do quarto de Gregor. Lembro-me de fazer esse exercício de alteridade de um lado e de outro da porta e de ser tenebroso e fascinante. Já tinha lido numa vertigem 'O Processo' e ainda hoje me lembro das muitas sensações que tive no decurso da leitura e de comentar isso mesmo com colegas do secundário. Foi a minha iniciação kafkiana, nunca terminada. E perdura...
Este foi, também, a minha iniciação neste conterrâneo de Milan Kundera...
CSD
excelente nota introdutória..
Nota 20 Claudia
:))
como te disse,
impressionante
sinergético
assustador
eléctrico ( ...
beijo
Foi o primeiro livro de Kafka que li.
Na altura fiquei impressionado com a violência da descrição e pelo escuridão da estória.
Seja como for, é uma excelente metáfora, que terá funcionado, eventualmente, como uma libertação do autor face à relação que tinha com o seu pai.
Boa análise, gostei.
Cumprimentos,
Filipe de Arede Nunes
A sua crítica diz tudo.
Achei esta obra fenomenal e digna de fazer parte da leitura obrigatória mundial. O seu paralelismo à sociedade é arrepiante de tão verdadeiro que é, expondo situações de medo e discriminação que não enfrentadas, apenas escondidas.
Boa escolha! :)
Tenho cá em casa o livro... Já estive mais longe de ler Kafka! =D
Acho que nunca tinha lido uma opinião sobre este livro, e da tua apreciação entendi que é um livro complexo!
Thnks, Wolf...
:-)
CSD
Outro para ti,Luci...
;-)
CSD
E ainda falta explorar a parte motivacional no que respeita à relação do Autor com a pr´pria família...
CSD
Obrigada Filipe e Djamb!
csd
Acho que devias experimentar,Pedro...
CSD
Este é um livro fascinante e simultaneamente chocante. O primeiro que li de Kafka e que me deixou realmente impressionada.
Excelente crítica Claúdia ;)
Obrigada, Sofia.
:-)
Beijinho e bom fim de semana!
CSD
Tenho andado afastado deste blog (e de quase todos) por causa dos muitos trabalhos em que estou metido.
Gostei da análise feita e deu para recordar uma leitura com mais de 40 anos.
Que me diz quanto a debruçar-se sobre «As velas ardem até ao fim»?
Gostava de ler a sua opinião.
Obrigado por partilhar connosco o seu bom gosto.
Onde nos leva Kafka...
O Castelo, O Processo...
Nem sempre a imaginação se alimenta de coisas cor-de-rosa e a minha alimentou-se muito com estas obras.
cp
Prof. Luís: Já li e o comentári desse livro no arquivo de Fevereiro de 2006...
:-)
Um abraço
CSD
Em literatura raramente as coisas são cor-de-rosa e quando o não normalmente não se trata de literatura...
CSD
Que felicidade recordar estas leituras...
Bem hajas, Cláudia
Bjinhos
TSC
obrigada Teresa!
Adoro ter-te por cá!
CSD
Curioso...
Avcabei de reler há muitíssimo pouco tempo. Coincidência.
Bjs
Luis
Tenho pena de só ter lido este post agora.
Uma pequena nota essencial: Gregor Samsa acorda transformado num insecto. Algumas pessoas vêem um escaravelho (como fizeste no teu texto) outras, talvez a maior parte, vêem uma barata. Penso que isto é revelador do quão bom é o texto de Kafka; o bichinho primordial que ele "cutuca na gente" é espantoso e admiravelmente conseguido.
Este pequeno facto inicial, motor gerador do elemento fantástico do enredo, também deveria ser indicador de algo que sucessivas leituras têem falhado ver ao longo dos tempos: a comicidade ou humor na escrita de Kafka.
Recordo Os Testamentos Traídos de M.Kundera onde ele aponta precisamente isto, e onde ficamos a saber coisas preciosas, como a leitura feita pelo próprio autor a um grupo de amigos e de onde todos saíam a chorar lágrimas de riso, do princípio ao fim (bom, confesso que há distância de uns anitos esta memória, pelo que o episódio pode ter sido referente ao Processo e não à Metamorfose, mas o argumento mantém-se).
Sempre fomos condicionados a ler Kafka como um arauto urbano-depressivo, mas garanto que ler os seus textos como peças de humor é uma revelação tremenda. Da primeira vez que li O Castelo, acabei por o abandonar devido ao aborrecido da situação de chove-não-molha que lhe vai do princípio ao fim das páginas...mas quando anos depois peguei nele como texto cómico...gargalhada geral do princípio ao fim.
O que só vem provar que às vezes não só devemos ser um pouco cegos em relação às criticas, como também que devemos ler tantas quanto possivel :)
Beijokas Cláudia
Adorei o teu comentário, Nuno.
muito, muito obrigada!
CSD
O livro é fantástico e favorece uma série de interpretações... bom também é o artista da fome.
www.pedromrn.blog.uol.com.br
O livro é fantástico e favorece várias interpretações. Também gosto de o artista da fome.
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