"Crónica do Rei Pasmado" de Gonzalo Torrente Ballester (Caminho)
Gonzalo Torrente Ballester é um Autor que já nos habituou às suas irresistíveis provocações sob a forma de sátira.
A arte de Ballester manifesta-se, no caso de Crónica do rei Pasmado, em tornar central um facto trivial – o desejo de um marido contemplar a esposa tal como veio ao mundo – transformando-o num episódio romanesco. Ou se calhar burlesco, face à controvérsia e intermináveis debates das personagens à volta do facto em questão lembrando o humor típico do teatro shakespeariano: trata-se de uma crónica ou novela adquire quase que a forma de uma farsa, podendo facilmente ser adaptada ao teatro. Por outro lado, a polémica gerada à volta do assunto em questão poder-se-ia resumir em num único título do dramaturgo britânico: Muito Barulho por Nada. Porque o facto de um marido desejar contemplar a esposa nua não teria, aparentemente, nada de extraordinário. A não ser pela particularidade de o marido em questão se tratar do Rei Filipe IV de Espanha – II de Portugal – e a mulher em questão, a Rainha.
Junte-se, ainda, segundo a nota do tradutor António Cândido, as contingências impostas pelo formalismo da corte espanhola no século XVII que exigia, na época, um requerimento formal de cada vez que o soberano pretendesse passar a noite no quarto da Rainha tendo, para tal, de apresentar justificação. O que implicava que um pedido, tão insólito para a época, colocasse a corte – e o clero em particular – em pé de guerra e desencadeasse toda uma rede de intrigas…
Na trama, a situação ficcional escolhida pelo autor insere-se no contexto histórico de uma Espanha dominada pela Inquisição que instila o temor do Inferno num povo que pretende obediente, trabalhador, servil e pagador de pesados tributos. Tem, à cabeça do reino, um monarca semi-virgem – uma vez que, mesmo sendo pai, estava ainda longe de saber o significado da palavra erotismo – e cuja ingenuidade (ou falta de autonomia) o leva a manifestar publicamente, alto e bom som, a vontade em observar a nudez da Rainha, após ter dormido com uma prostituta e, pela primeira vez, ter contemplado o corpo nu de uma mulher.
As dificuldades criadas pelo protocolo, que regula todos os actos do rei – públicos e privados – obrigam o monarca a submeter-se à humilhação de tornar públicos os seus desejos mais íntimos.
Esta ausência de distinção entre vida pública e privada, num chefe de estado, imposta tanto pelos cortesãos como pelo clero, traduz-se numa feroz luta pelo poder entre aqueles que lhe estão próximos. Esta situação encontra apenas terreno fértil quando o poder está ocupado por alguém com uma personalidade dita “demasiado branda”, para não dizer frágil e imatura. E de um povo manipulável, porque rude e ignorante, subjugado pelo terror supersticioso de uma vingança divina, face aos supostos “pecados carnais” do Rei que representaria a divindade na Terra.
Personagens – Análise actancial
O Rei Filipe IV de Espanha
O protagonista da trama, tímido e inseguro, não consegue fazer ouvir a própria voz, diante dos cortesãos, que se fingem de surdos.
A Rainha Isabel de Bourbon
Filha de Henrique IV de França, tem uma educação bastante mais liberal do que o marido, o qual exibe constantemente uma voz titubeante e veste quase sempre de luto. O humor contagiante da Rainha manifesta-se nos gestos e expressões faciais, assim como no vestuário, apesar de a sua sensualidade ser reprimida pelo protocolo.
Marfisa, a exuberante cortesã de beleza loira vagamente veneziana – mas bastante menos diáfana do que a da Rainha, talvez porque temperada pelo sol de Espanha e pelo estilo de vida que leva – torna-se uma das grandes aliadas de ambos os soberanos. Em relação a Filipe, ao fazê-lo descobrir o erotismo, que não se esgota no acto sexual em si, nem do primário instinto de procriar. No que toca a Isabel, Marfisa ajuda-a a refinar o seu poder de sedução (uma vez que, segundo a própria Marfisa, ao elevado potencial da Rainha falta uma boa dose de experiência...) de forma a que o casal usufrua plenamente do prazer sexual.
O Primeiro-Ministro, começa por ser um dos principais oponentes do Rei – detendo o título de Valido, na pessoa do Conde de Olivares – e aliando-se a um clérigo ambicioso tem como principal objectivo o de conservar a posição privilegiada que detém na corte. No trono, interessa-lhe um Rei fragilizado, sem voz activa. E, uma vez que Espanha se encontra no centro da linha de fogo cruzado entre França e Inglaterra, cujos interesses económicos colidem com os da super potência Ibérica, o Valido pretende que o povo associe os fracassos da nação, ou um qualquer erro estratégico no teatro de guerra além fronteiras, em terras da Flandres, ou nalguma escaramuça com piratas ou com navios otomanos no Mediterrâneo, aos “pecados” sexuais do rei. Há, portanto, que agradar ao clero para conseguir um aliado, uma vez que este, mediante o hábil uso da retórica e do hiper-dramatismo, controla as massas populares, ignorantes e brutais, sedentas da vingança sanguínea que as redima da condição de pobreza, fatalmente decretada pelo “destino.” para servir as próprias ambições (que incluem gerar um herdeiro) este Valido encontra-se também na disposição de sacrificar o seu (do Valido) desejo sexual e a imensa torrente de lascívia da própria esposa, cujo comportamento lhe parece mais digno de uma amante do que de uma respeitável aristocrata, casada e mãe de família segundo os parâmetros do frade capuchinho que o aconselha a cair nas graças divinas para gerar descendência. O Primeiro-Ministro decide, então, procurar o padre German de Villaescusa para intervir junto da divindade.
O Padre Villaescusa
É o grande vilão desta crónica-novela. Fanático, demagogo, com uma sede ilimitada de poder, faz lembrar Savonarola, até no perfil aquilino. Adepto dos autos-de-fé, gosta de sentir o cheiro a carne humana carbonizada, pelo que se revela incansável ao exigir a perseguição da cortesã Marfisa, junto do Inquisidor-Mor, numa pseudo-tentativa de purga, uma vez que defende a existência da actividade sexual unicamente para fins reprodutivos.
Aconselha o Conde de Olivares e a esposa a relatarem-lhe todos os pormenores íntimos, relativamente à sexualidade de ambos para, em seguida, os humilhar e culpabilizar, ao recomendar-lhes que o acto seja praticado exclusivamente com fins reprodutivos e de forma santificada, isto é, no altar e no meio de uma novena, recitada em voz alta por um coro de freiras, de costas voltadas para os nubentes. O que dá origem a uma das cenas mais hilariantes da obra, num ritual hierogâmico, a fazer lembrar antigos ritos babilónicos e gregos e as cerimónias dedicadas a Ishtar e Aphrofite respectivamente. Outra curiosidade a respeito deste padre é a forma derrogatória como considera a população quer da Galiza quer de Portugal, sobretudo a população feminina, afirmando especialmente em relação à mulheres Galegas que 'as que não são bruxas são putas' [1992:20] e que 'Deveria haver uma maneira de o Rei, sem se desfazer dessas terras, se libertar de semelhante gente' [idem]. Não sendo o primeiro nem o último a usar de semelhante estratégia para se apossar do território, o Padre Villaescusa, logo no início mostra ao que vem, quais são as suas intenções e ambições.
O Padre Almeida é um Jesuíta português, exilado durante décadas em Inglaterra, que está a passar uma temporada na corte Ibérica e torna-se, juntamente com o Conde Peña Andrada, num dos principais aliados do Rei, ajudando à fuga de Marfisa.
Esta é a personagem-chave que acciona o mecanismo que potencia o desenrolar dos acontecimentos. È, simultaneamente, um homem de acção e o cérebro que comanda as operações, uma vez que detém as ligações de amizade e influência com as pessoas certas. É um estratego. E a amizade a amizade com o Inquisidor-Mor, o Padre Valdevielso, sucessor de Torquemada que , ao contrário deste, se apresenta na corte impregnado do banho cultural do renascimento, após viver largos anos em Itália, é muito mais esclarecido e brando do que o seu antecessor, levando-o a nutrir uma verdadeira estima por este jesuíta liberal e a apreciar a beleza de Marfisa, digna de figurar num dos quadros dos artistas italianos que mais admira.
O Padre Valdevielso é um homem de saúde frágil, mas avesso a autos-de-fé por isso torna-se um homem incómodo para pos cortesãos e clérigos mais radicais.
O Conde Peña Andrada é um Corsário, ao serviço de Filipe IV que o ajuda nos seus encontros clandestinos e, mais tarde, a preparar o encontro dos dois monarcas a sós, longe dos olhares indiscretos dos cortesãos.
O Padre Luís de Góngora é uma personagem histórica e figura chave da história da literatura do país vizinho dá voz à escrita ballesteriana: a “voz” de Ballester, a de D. Luís e a do Poeta como figura histórica aparece como que sobreposta em vários momentos na voz do narrador. Está, sobretudo, incarnada no discurso malicioso e satírico do Padre D. Luís, o qual gosta de compor poesia erótica bem como cantigas de escárnio e maldizer a respeito das personagens da corte e em cuja pena maliciosa o episódio de Marfisa com o Rei, mas também na forma assaz concupiscente com que o narrador se refere e representa as mulheres sexualmente apelativas, independentemente da idade ou condição.
O Padre Rivadesella
Uma personagem curiosa, este padre que dirige agradáveis e refinadas tertúlias/conversas a dois, autênticos desafios literários e filosóficos, com alguém que se diz ser o Diabo (uma vez que se trata de alguém que ninguém vê e que se calhar é a própria consciência), ao qual chama de Trasgu, debaixo de uma árvore ao entardecer.
Colette, a aia ou açafata da rainha, uma mulher culta e refinada que a instrui nas sobre as armadilhas na corte e forma de escapar às intrigas do Paço, mediante a experiência adquirida na Corte Francesa. Colette é a aia de confiança da Rainha.
A Camareira Real
A sedutora viúva, prima do Valido Conde de Olivares, a lembrar vagamente a Milady de A. Dumas a grande intriguista feminina, é adepta de longas e intermináveis proles para fazer face a maleitas e pestes que eliminem a descendência.
A Madre Superiora
Parente do Inquisidor-Mor, aliada dos reis, mulher culta e surpreendentemente tolerante.
E está completo o desfile de uma galeria das principais personagens tipo, cuja evolução plana – porque mantêm os traços principais da sua personalidade ao longo da trama – faz com que esta obra caia na categoria de novela e não de romance curto.
Um conjunto de figuras pitorescas que, assim, compõe esta farsa cujo intuito é a exibição dos defeitos daquela sociedade sendo precisamente, esses mesmos defeitos que revestem a história de interesse.
Crónica do Rei Pasmado é, segundo o próprio Autor, um scherzo em Re(i) menor, alegre mas não demasiado onde a riqueza dos diálogos maledicentes é polvilhada pelas mais pimenta das mais descarada hipocrisia. Ninguém escapa da língua e pena ferina do narrador. Nem mesmo as duas heróicas figuras do Conde da Peña Andrada e do Padre Almeida que abandonam duas mulheres perseguidas pela Inquisição a meio do caminho sem antes se certificarem de que ficam em segurança. O autor pretende despir mais do que os corpos, as almas toda a espécie de máscaras e falsos pudores, expondo a alma de toda uma corte e dissecando a anatomia sócio -cultural de uma época que acabou por se constituir como um ponto de inflexão na história de Espanha (e Portugal) por marcar o começo do declínio do maior Império de todos os tempos.
Uma obra literária que foi transformada em obra cinematográfica – dirigida por Imanol Uribe, com Joaquim de Almeida no papel do Padre Almeida, um jesuíta com alma de cavalheiro – mas que é talhada à medida para ser transformada em peça de teatro...
Ficamos à espera.
Cláudia de Sousa Dias
34 Comments:
Já conhecia e é a primeira vez que leio algo sobre a obra.
Gostei de teres feito uma análise sobre cada personagem, o que me dá a ideia que, realmente, estas se desenvolvem.
Fez-me lembrar, como dizes, Gil Vicente em "Auto da Barca do Inferno", e de certeza que esta é uma obra muito interessante desse ponto de vista.
Como já estava interessado há algum tempo, ficou ainda mais a vontade de ler o livro!
vais gostar e muito!~
;-)
CSD
Olá :) Há já algum tempo que visito este blog e gosto imenso de ler as tuas críticas detalhadas ;)
Já ouvi falar imenso neste autor mas nunca li nada dele. Para começar, que livro me aconselharias?
Olá Cláudia.
Voltei para ler as tuas longas e detalhadas crónicas, sempre estimulantes para novas leituras.
E este livro, tenho-o por aí mas não me tinha despertado ainda a atenção.
Vou pegar nele.
Um grande beijo para ti.
Aconselhar-te-is precisamente este, Sofia!
É o ideal para te iniciares no estilo de Ballester!
CSD
Obrigada pela visita Elipse!
Um grande beijinho para ti!
CSD
Ballester é imperdível. Fascina-me a forma como descarna figuras e expõe características psicológicas e comportamentos. Li também o «Don Juan» e lá está, até ao ridículo, o narcisismo, a manha e o desnorte daquela(s) figura(s)…Quero ler «A Ilha dos Jacintos Cortados»….
Muitos Beijinhos
TSC
b.e.i.j.o.
_____________
"aia" do bom gosto.!
Cláudia
que bom ler-te .....
kiss kiss
Bem depois das apresentações...
só mesmo ..lendo a Obra.
Gosto de vir aqui...ler-te.
kiss
SEmpre tive vontade de ler o Ballester mas nunca o fiz. Acasos. Mas a análise leve da Crónica deu-me vontade de o ir apanhar à estante. Merci bien!
Pequena nota editável: um pequenissimo lapsus linguae no final do 2º parágrafo ;)
Também é muito bom, Teresa...mas já pertence a outra fase da vida dele e a outro patamar de criatividade. muito mais surrealista...
CSD
È uma querida, Isabel!
CSD
Caríssimo Wolf...continuo com a mesma impressão que tive ao ler o seu blog...
;-)
CSD
Vai gostar de certeza, Nuno!
Mas o melhor que li dele até hoje é "Filomeno, Para meu Pesar".
Verdadeiramente sublime.
um beijo
CSD
Claudia
hum... talvez nas já agora.. porque essa impressão.. e de onde ela surge..
bj
sp
Claudia
desculpa nas de onde achas que já ouviste os meus uivos, e desde já te digo que aprecio muito o teu blogue é uma forma de amor por algo, sempre fico fascinado por isto..sempre
vá bom resto de domingo e desculpa a forma que utilizei para te fazer esta questão.
kiss e obrigado pelas tuas visitas.
Nada mais simples, Wolf :-)
Conheci alguém com uma escrita muito semelhente à tua e que já tem pelo menos dois livros publicados...
Mas é perfeitamente possível que seja só coincidência...
CSD
É realmente uma obra fantástica!
Abraço
P.
Obrigada Baudolino!
Um abraço...
CSd
Já por 2 ocasiões me recomendaram este livro e agora vejo esta opinião. Será certamente um livro a ler num futuro!
P.S: Apesar de já frequentar este blog há muito tempo e praticamente nunca comentar, devo deixar o meu apreço pelas opiniões e análises das obras. Continuações de um bom trabalho!
Obrigada ,livros em 2ª mão!
ballester é um dos meus autores de eleição!
csd
Desde ja os meus parabens ao responsavel pelo blog. Muito bom trabalho.
Acabei agora de ler o livro e adorei! Recomendo!!!!
Nunca tinha lido livros deste autor, mas agora que conheco, fiquei a gostar.
Queria continuar a ler livros deste autor, e para isso, queria que me recomendassem um mais ou menos do mesmo estilo.
Agradeco uma boa sugestao ;)
Joao Abreu
Leia todos. Comece numa ponta e acabe na outra. Mas se quiser uma sugestão pode pegar em "Filomeno, para meu pesar"
Apenas um conselho a respeito deste livro extraordinário: para o apreciar devidamente é essencial lê-lo no idioma original. Eu já tinha lido o livro em português, mas depois fiquei deslumbrado com a escrita do Ballester!
De acordo. Mas não há muitos livros em castelhano à venda em Portugal.
Lido de fresco :-)
http://numadeletra.com/cronica-do-rei-pasmado-de-gonzalo-65578
E eu neste momento a ler outro dele, também: "A saga/Fuga de J.B."
e a Marfisa?
Tenho de deixar alguma coisa para os leitores se darem ao trabalho de ler o livro :-)
Daquilo que me lembro - e tem de compreender que não é de todo possível lembrar-me de todos os detalhes de um livro lido em 2007/2008, estamos em 2021! - a Marfisa é sobretudo o objecto de discussão das personagens, a musa, a incarnação da Tentação. A história não é contada do ponto de vista da Marfisa. A Marfisa é o objecto de desejo. Na verdade ela mostra agentividade apenas quando se farta de ser objectificada e se refugia no convento, disfarçada de rapaz.
Mas os posts deste blogue são apenas uma proposta de leitura com o objectivo e despertar a curiosidade do leitor e levá-lo a procurar o livro e e lê-lo efectivamente. Este blogue não pretende substituir a leitura pessoal de cada um. Nem é um blogue que substitua o trabalho que deve ter um aluno caso tenha a missão de analisar o livro. Este não é um blogue teórico nem académico, embora por vezes possam ser mencionados alguns aspectos da teoria da literatura ou da linguística em alguns textos.
Adenda nº 1nao leitor desconhecido: Eu já tinha escrito sobre a Marfisa. Um ethos que é construído em oposição ao da Rainha em termos de expressão e condução da própria sexualidade. Apesar de que no livro é a sociedade que estabelece as coordenadas do comportamento de uma e outra e não a própria decisão ou vontade.
Adenda nº 2 aos leitores em geral: Acho curiosa a forma como são retratadas positivamente as personagens de origem portuguesa ou galega ao contrário do que acontece com os cortesão de Castela, exceptuando aqueles que sofrem a influência da corte francesa (como a dama Colette) ou da corte renascentista do Vaticano [o padre Valdevielso, confessor do Rei, ou o Padre Rivadesella, o poeta).
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