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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Saturday, August 02, 2008

"A Selva" de Ferreira de Castro (Guimarães Editora)


A leitura deste romance, escrito em 1926, quinze anos depois de o Autor abandonar o Seringal, junto ao curso do Rio Madeira, afluente do Amazonas, é um autêntico mergulho no clima de humidade “opressiva e sufocante” daquilo que o Autor chama de “inferno verde”.

O carácter auto-biográfico da obra encontra-se explícito no respectivo prefácio, que nos permite percepcionar as transformações, os acrescentos, que distinguem o romance de da biografia.
A experiência do contacto com a selva amazónica é tão evidente, na prosa de Ferreira de Castro, que seria de todo desnecessária a confirmação pelo próprio Autor de que este tenha, de facto, vivido junto da selva equatoriana e contactado de perto com os trabalhadores do Seringal.

A profusão descritiva e a minúcia dos detalhes. relativos ao clima e à variedade da flora local, atestam-no de forma inequívoca, conferindo-lhe uma autenticidade e verosimilhança a toda a prova.

Ferreira de Castro escreve como quem compõe um diário de bordo, à semelhança de Joseph Conrad, tratando ao mesmo tempo – tal como o supracitado autor naturalizado britânico –, a selva como um ser humano dotado de alma e não como uma pluralidade de seres, na sua relação com a espécie humana. No entanto, a relação entre os seres que pertencem à selva, sobretudo aqueles que pertencem ao mundo vegetal, é muito semelhante àquela que se estabelece entre os seres humanos, num lugar isolado da chamada “civilização”, no meio do nada, onde as instituições não funcionam ou simplesmente nem existem.

No seringal, vigora a lei do mais forte, tanto no mundo vegetal como animal, inclusive entre os animais humanos. E é no mesmo seringal que a faceta animalesca do ser humano se manifesta nos impulsos mais bestiais, que vêm ao de cima e se sobrepõem à cultura, às normas sociais, à moral, à religião, à ética, à justiça. Na selva, só os seres mais fortes e mais aptos sobrevivem.

Ao longo do romance Ferreira de Castro põe em evidência alguns paralelismos particularmente interessantes: por exemplo, tal como as lianas e as orquídeas se alimentam de forma parasitária da seiva das árvores que as sustentam e transformam a luz solar em alimento – nalgumas delas o parasitismo acabará por destrui-las – e ao fazer extinguir a própria fonte de alimento; também os homens que detém o poder conferido não só pela supremacia económica mas sobretudo pela força, conseguem subjugar os mais frágeis, cuja vulnerabilidade os impede de se lhe oporem, e escraviza-los, parasitando-os até à morte.
Outra semelhança que podemos encontrar na temática de Castro e Conrad é o facto de o primeiro se dedicar, nesta obra a relatar algumas experiências do seu passado adolescente na selva amazónica sob a forma de romance. Conrad, por seu lado, projecta, também parte da própria juventude passada na floreste húmida do continente africano em O Coração das Trevas. Ambos se preocupam em expor a rapacidade dos povos europeus durante a época colonial e o choque cultural entre colonizadores e colonizados. O objectivo seria, no caso de Conrad, o de denunciar a falta de ética que leva a um crescimento económico desenfreado, mediante a exploração do marfim, pelo comércio ultramarino inglês, no coração da selva africana na obra supracitada ou, através da exploração das minas de prata sul-americanas, em Nostromo.
Ferreira de Castro faz o mesmo no tocante à exploração do comércio da borracha na Amazónia e do trabalho dos “seringueiros” que se ocupam da extracção do látex da árvore da borracha – a seringueira – e que são escravizados pelo dono da empresa – Juca Tristão – o magnate da borracha.

Os capatazes Balbino e Caetano encarregam-se de “engajar” os trabalhadores agrícolas, que vivem em situação de extrema pobreza, nas regiões secas do Ceará. Estes empreendem uma viagem duríssima, muitos deles acabam, inclusive, por morrer no caminho. E os que chegam ao detino ficam endividados pelo resto da vida ao patrão que se oferece para custear as despesas da viagem e ao consumo de géneros na "venda" que o mesmo explora, junto ao seringal, praticando os preços correspondentes aos do mercado negro, ao vender as mercadorias por um valor cinco vezes superior àquele pelo qual as adquiriu. Enquanto isso, a margem de lucro das vendas da borracha que o patrão reserva para si mesmo impede que os trabalhadores possam saldar a dívida que se vai acumulando, sobretudo no tocante aos que se tornam dependentes da “cachaça”, a qual funciona como anestésico e como elemento alienador da realidade.

O protagonista da estória é um jovem, monárquico – Alberto – expulso do País após a implantação da República.
Em Belém do Pará, Alberto Alberto fica sem emprego, vítima da crise conjuntural, fruto das flutuações na cotação do preço da borracha. O Tio Macedo, irmão da mãe de Alberto, supostamente seu protector, não quer assumir o fardo de sustentar o sobrinho, após dois meses na situação de desemprego.

Alberto aceita, por orgulho, a sugestão do Tio em ir para o seringal, apenas para não ter de se sujeitar à humilhação de se ver sustentado como um “parente pobre”, pelo Tio.

Ao chegar à selva, após a viagem no porão infecto de um barco fluvial, em terceira classe, Alberto depara-se com a beleza esmagadora da selva amazónica, cuja profusão de espécies obriga à formação de complicados esquemas de sobrevivência como o mutualismo, o parasitismo e o comensalismo.

A relação dos exploradores do seringal com as tribos índias locais, que habitam as redondezas, não é pacífica. O choque de valores existente entre uma cultura perfeitamente integrada no meio físico local – onde a propriedade não existe – e os valores subjacentes ao capitalismo, é inevitável, atingindo paroxismos de violência.

As relações humanas em geral formam-se, naquelas paragens, com base no nível de selvajaria mais primário devido à impossibilidade de funcionamento dos mecanismos de controlo social legais, no que toca à criminalidade como sendo os tribunais ou a fiscalização por parte do Estado.

Por outro lado, a ausência de elementos do sexo feminino dá azo ao eclodir, num lugar como este, dos mais bestiais impulsos nas bestas humanas: o caso de Agostinho e da agonia do seu desejo por uma criança de nove anos, do impulso de a violar que acaba por vitimar o pai da criança a consequentemente a si próprio, a busca de alívio da tensão sexual através do coito com animais. Mesmo Alberto, o expoente máximo da “educação civilizada”, tem uma série de reacções inexplicáveis pela via racional, patentes na tentativa de sedução da velha negra – Nhá Vitória – ou no impulso irresistível de espreitar Dona Yáyá no banho .Tudo fruto do excessivo isolamento a que é submetido. No auge do seu violento desejo por Dona Yayá, a única mulher branca naquelas paragens, Alberto chega a desejar a morte de Guerreiro, director da contabilidade dos negócios de Juca Tristão, seu chefe e amigo – reminiscências vagamente freudianas relacionadas com a tragédia de Édipo Rei – envolvendo Dona YáYá (figura maternal Jocasta), Guerreiro (figura paternal Laio) e Alberto (Édipo perdido e reintegrado num reino desconhecido onde se apaixona por uma rainha com idade para ser sua mãe).

A diferença entre Alberto e Agostinho está na educação e na intensidade do impulso. Alberto nunca chega ao ponto de concretizar os seus desejos pela força ou a recorrer ao crime. O que não acontece com o seringueiro, apanhado em flagrante, na tentativa de violar uma criança.

A personagem Alberto torna-se fascinante porque modelada. Alberto é, inicialmente, um jovem pedante, defensor da supremacia hereditária das elites, um monárquico típico, orgulhoso da sua estirpe, dos pergaminhos e privilégios de classe, do seu “sangue azul”. No entanto, à medida que a trama avança, que penetra na selva, vai sentir-se progressivamente em paridade de circunstâncias com os companheiros de viagem e dos trabalhadores do seringal. Alberto muda gradualmente de convicções ao passar por uma série de conflitos internos, sobretudo após exercer o duro ofício da extracção da borracha, principalmente quando se apercebe da ganância do patrão e da forma como manipula as vidas dos trabalhadores.

O ponto de viragem da história dá-se quando Alberto toma a cargo a gerência da loja. É nesta altura que o jovem se apercebe até que ponto a vida dos seringueiros está a ser vampirizada por Tristão.

Alberto vê-se, então, obrigado a mudar de convicções e a forma de encarar a vida no seringal. Apesar de tudo, a tentação de ficar rico continua a acenar-lhe, pela deferência causada pela nova posição social e pela adulação do patrão.

O Negro Tiago – de alcunha Estica, que detesta de morte, por lhe lembrar o defeito na perna – nutre um afecto genuíno pelo patrão. Mas a crueldade deste faz emergir a revolta interior causada por décadas de humilhação na senzala, durante o período da escravatura, abolida há pouco mais de vinte anos. Tiago, o Estica, decide fazer justiça pelas próprias mãos…em nome da Liberdade.

Estes acontecimentos vincam a verdadeira intenção do Autor ao escrever a obra: a de mostrar a fragilidade das estruturas que sustentam um determinado regime político, sobretudo se se tratar de uma falsa democracia, quando esta assenta na desigualdade e as clivagens sociais atingem proporções obscenas. A Selva de Ferreira de Castro pode-se considerar, tendo em conta a época em que foi escrita, como um manifesto anarquista em defesa dos direitos humanos, mais propriamente dos direitos dos trabalhadores.

No final, à laia de epílogo, Alberto, no papel de narrador, chama a atenção para as falhas do sistema judicial, sobretudo para os critérios de aplicação do Código Penal, pelo que decide, a partir de então, dedicar-se apenas ao ramo civil, uma vez que o Direito Penal ou Criminal já não serve o Ideal de Justiça como valor absoluto…

Um livro fascinante.

Talvez porque cada vez mais actual.

Cláudia de Sousa Dias

23 Comments:

Blogger Teste Sniqper said...

Aqui nasceu o Espaço que irá agitar as águas da Passividade Portuguesa...

9:49 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Mas...não era FB?!

CSD

10:16 PM  
Blogger Pedro said...

Conheço o livro de vista, e confesso que não me atrai por aí além. Embora sinta algum fascínio por essa descrição, e pela difícil viagem, o livro em si não me chama a atenção.

Mas nunca se sabe o dia de amanhã ;)

1:08 AM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

além do clima, toda a perspectiva sociológica tratada faz da obra um marco na história da literatura portuguesa. O autor não faz juízos de valor...gosto partcularmente de encontrar uma obra que já não é contemporânea e o discurso continua actual...

CSD

4:23 PM  
Blogger Teresa said...

Concordo plenamente. É um belo clássico da Literatura Portuguesa. Pertinente, também, essa intertextualidade com o «O Coração das Trevas» de Joseph Conrad. ;-)

Bjinhos

TSC

3:20 PM  
Blogger inominável said...

Olá Cláudia!

Sabes se o novo romance de S. Rushdie já está traduzido em português? É que estou a fazer uma lista de livros para comprar em PT em Set e não o encontro :(

5:16 PM  
Blogger n.fonseca said...

O ferreira de Castro de A Selva até que não anda muito esquecido, mas é sempre bom relembrá-lo. Personagem e escritor dos mais interessantes. Dele só li a existencialista novela A Missão, sobre um padre com um dilema tipicamente sartriano, que é um hino à humanidade. Muito bom. A propósito há uns links por aí engraçados, como esta entrevista em françês http://www.ceferreiradecastro.org/?id=2.1.2

Para o inominável:
O Rushdie ainda não está traduzido, mas alguem o deve estar a fazer; não devemos esperar muito, apesar de se poder comprar a versão hardcover em inglês que já por aí anda há algum tempo. O que a malta gostava era que traduzissem o primeiro romance dele, o Grimus, que apesar de não ser tão bom quanto o resto, é interessante. Ficção cientifica com pós de fantasia, mas é uma primeira obra...o bonito é que a editora dele cá costuma dizer que já o publicou todo...portuguesices.

6:17 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Teresa, é uma querida!


CSD

7:40 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Inominável, acho que logo que saia em Portugal seremos as primeiras a comprá-lo!

CSD

7:42 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Obrigada Nuno, pela sugestão!

Vou anotar...


beijinho grande


CSD

7:42 PM  
Blogger Erika Rodrigues said...

Parabéns pelo belo trabalho Cláudia. Terminei de conhecer seu blog e fiquei encantada.
No entanto, não localizei o feed para acrescentá-lo ao meu agregador.
Poderia me passar?
Grata

12:41 AM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

www.hasempreumlivro.blogspot.com

Acho que é isto que pretende...


CSD

3:32 PM  
Blogger yolanda said...

vou fazer um espetáculo sobre A selva. é muito bom ter material como este para começar a estudar. excelente reumo, análise e contextualização. Obrigada

4:43 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

não tem de quê, Yol...


um grande beijinho


c.

5:23 PM  
Blogger Duarte said...

Descobri este espaço quando fazia uma busca à obra de Ferreira de Castro, um escritor que me tem despertado ultimamente pelo meu desejo de uma incursão na amazónia. Não o queria fazer sem esta leitura, além de querer ainda ver o filme inspirado na mesma obra. Foi assim, acidentalmente, por causa de "a selva", que afortunadamente, descobri este espaço maravilhoso que irei adicionar aos meus preferidos, para seguir leituras, sugestões e dicas, deste mundo literário. As suas críticas são preciosas. Parabéns pelo espaço, felicito-me ainda por tê-lo descoberto :) Saudações! :)

3:41 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Obrigada...Fico contente pelo facto de os meus textos fazerem as pessoas interessarem-se pelos autores e pelas suas obras...

:-)


CSD

4:37 PM  
Blogger José Zéfiro said...

Obrigado por este "blog".
Dei com ele ao ser levado a comparar a loja de "A Selva" com as cantinas do mato e a cultura do algodão em Moçambique em meados do século XX. Os seringueiros eram em Moçambique os africanos negros, trabalhadores compelidos com as eternas dívidas à cantina.
Farei uma releitura de "A Selva".
E. M.
14Jan2012

4:57 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

:-)

7:12 PM  
Blogger Álvaro said...

Excelente resumo, Cláudia. O livro de Ferreira de Castro serve hoje, perfeitamente, para ilustrar como se escravisam agora, não, seringueiros, mas nações inteiras. Vou colocar uma ligação para aqui no mural do meu Facebook, espero que funcione...

12:54 AM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Dá perfeitamente àlvaro. Senão é só copiar e colar o browser e aparece logo a capa do livro e tudo.

1:59 AM  
Blogger Unknown said...

This comment has been removed by the author.

9:56 PM  
Blogger Unknown said...

This comment has been removed by the author.

9:57 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Vão me desculpar, mas vão ter que ler o livro. Ou pelo menos ver o filme. Tenham lá paciência. Este blogue destina-se a criar nos leitores a vontade de ler e descobrir o livro. Não tem a finalidade de se substituir à leitura do livro.

10:37 PM  

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