“O homem sentimental” de Javier Marías (Dom Quixote)
Javier Marías nasceu em Madrid, em 1951. Licenciou-se em Filosofia e Letras tendo, posteriormente, leccionado literatura espanhola na Universidad de Madrid.
Foi galardoado, em 1997 com o Prémio Nelly Sachs, pelo conjunto da sua obra, uma distinção considerada por muitos como a antecâmara do Prémio Nobel.
Mas para lá dos prémios e das distinções, a escrita de Javier Marías destaca-se pelo encantamento, pelo feitiço com o qual envolve o leitor ao transmitir não só a paisagem visual, mas também emocional e comportamental e ao enquadrar as personagens no cenário cultural onde elas se movimentam. A prosa de Marías é impressionista, pelo que não se detém em contornos fixos, no traçado da personalidade das suas personagens. Pelo contrário, dela brota uma tónica diarista, num discurso que parece aproximar-se um pouco da frieza analítica de um ensaio mas em cujas entrelinhas fervilha o caldeirão onde se cozinha o caldo das emoções que compõem a psique humana.
A descrição física, assim como a análise comportamental das personagens parecem brotar de um processo de acurada observação empírica e detalhada, pela dissecação dos mais ínfimos pormenores e cambiantes das expressões faciais, postura corporal, movimentos de mãos, onde até a indumentária serve como forma de expressão dos sentimentos ou da forma como se estabelece a comunicação com os outros. Uma profusão de sinais exteriores que denuncia, assim, o que vai na alma de cada um como por exemplo as peles roídas e cutículas inflamadas de Natália, conjugadas com o semblante que tenta ocultar com o cabelo, durante a viagem de comboio logo no primeiro capítulo, denunciam uma certa inquietação interior que tenta disfarçar a todo o custo.
Também as descrições de carácter mais generalista, como a panorâmica das cidades e dos respectivos transeuntes, das multidões anónimas que por elas circulam, obedecem ao mesmo processo ou, se calhar ao mesmo impulso. O Autor extrai, a partir da disposição, da configuração do aspecto exterior, da combinação entre as roupas escolhidas, as expressões faciais e a forma de caminhar dos seus habitantes, a respectiva forma de encarar a vida, inserindo-a na mesma visão pessoal, traçada pelo colorido emocional dos habitantes de cada cidade europeia, na sua própria cultura específica.
Se não vejamos:
(…) Madrid, a cidade onde passei a minha infância e adolescência (…) pareceu-me solitária e triste como poucas nas minhas inúmeras viagens pelo estrangeiro. Ainda mais que as cidades inglesas, que são as piores do globo, as mais enfermiças e as mais hostis; ainda mais do que as da Alemanha do Leste, nas quais há tanta disciplina e tanto amortecimento que passar pela rua a assobiar produz o efeito de um cataclismo; ainda mais do que as suíças que, pelo menos, são limpas e calmas e dão uma oportunidade à imaginação pelo próprio facto de não dizerem nada.
Madrid, pelo contrário parece ter pressa de dizer tudo, como se estivesse consciente de que a sua única possibilidade de conquistar o viajante reside no aturdimento e na veemência sem freio (…). Madrid é rústica e chocarreira e não encerra qualquer mistério; e não há nada de tão triste e solitário como uma cidade sem enigma aparente ou aparência de enigma., nada de tão dissuasório, nada de tão opressivo para o visitante.
A trama tem como personagem central e, também, como narrador um cantor de ópera que se encontra em Madrid de passagem para representar o papel de Cássio, no Othello de Verdi. Este acabará por entrar, ele próprio, numa trama paralela e tornar-se num dos vértices de um triângulo amoroso semelhante – embora não idêntico – ao da trama shakespeariana que deu origem à ópera do compositor italiano.
A personagem que podemos identificar com o Othello é um banqueiro belga Hieronymous Manur – tão tirânico como o Mouro de Veneza, mas cuja violência em relação à sua Desdémona madrilena, Natália, se manifesta sobretudo na privação de liberdade: Natália é vigiada vinte e quatro horas por dia pelo esbirro do banqueiro, o narcisista e venal Dato, que não chaga a ter a maldade de Iago e cuja missão é a de entreter a esposa do patrão e reportar a este as suas actividades diárias.
Hieronymous Manur é, no entanto, referido várias vezes quase como que num estribilho como sendo “um potentado, um ambicioso, um político, um explorador”. A visão do narrador transmite-nos o retrato de uma ave rapace, um homem habituado a dar ordens, sem nunca ser questionado. Manur compra a esposa a uma família que pertencente à elite empobrecida madrilena comprometendo-se, em troca, a reabilitar os negócios da família, arruinada por investimentos desastrosos. Natália é tratada pelo marido como um objecto muito caro, praticamente como uma prostituta de luxo, de quem se obtêm exclusividade em troca de conforto material e, simultaneamente, um animal doméstico ou, ainda, uma peça de museu.
Natália está demasiado consciente da dependência de um gesto seu para resgatar a família da ruína ou lançá-la de vez na penúria, pelo que se submete ao proxenetismo dos familiares, manifestando para com estes um amor e solidariedade incondicionais. Natália só consegue sair do estado de melancolia permanente quando encontra o irmão, Roberto, em Madrid. Ou o tenor madrileno que representa o papel de Cassio…
Existe ainda Berta, a namorada do tenor cognominado de “O leão de Nápoles” em virtude sucesso e reconhecimento que obteve nesta cidade – uma jovem agradável e culta mas sem mistério, que não deixa marca.
Já na figura de Natália, o tenor parece encontrar a melancolia e o mistério que lhe despertam o instinto cavalheiresco que se manifesta num desejo leonino de aniquilar o adversário: Manur. Trata-se de algo atávico, uma espécie de instinto que impele a derrubar o macho dominante, numa dada espécie animal. Algo que leva o protagonista a perseguir um amor, construído com base naquilo que o autor chama de “imitação” mas que nada mais é do que o desejo de competir.
Natália, por seu lado, vê no amigo o veículo que poderá libertá-la das amarras, das grilhetas, que a impedem de ser ela mesma e lhe bloqueiam a autonomia…
O Homem Sentimental é, desta forma, “…uma história de um amor que não se vê nem se vive mas que se anuncia e se recorda” (JM), porque o tempo da narração não é exactamente o tempo da vivência desse mesmo amor. Mas antes a vivência da expectativa e, posteriormente, quando este já se tornou apenas uma recordação.
É uma história que se anuncia trágica mas que só consegue verdadeiramente sê-lo para o homem sentimental que parecendo ser à primeira vista, o artista ou o pensador – cuja capacidade em fazer cedências é desenvolvida logo a partir da pré-adolescência o habitua, logo desde cedo, a saber perder e a reerguer-se das cinzas – mas que acaba por ser o homem de negócios, “o potentado, o ambicioso, o político, o explorador”, o homem de acção, que nunca é contrariado e que não sabe aceitar uma derrota.
Uma obra que se lê com prazer e lentamente, como que sorvendo, em pequenos goles, uma bebida rara e preciosa. Para degustar e absorver frase por frase.
Javier Marías é, por isso, uma excelente companhia para levar numa viagem de férias.
Cláudia de Sousa Dias
Foi galardoado, em 1997 com o Prémio Nelly Sachs, pelo conjunto da sua obra, uma distinção considerada por muitos como a antecâmara do Prémio Nobel.
Mas para lá dos prémios e das distinções, a escrita de Javier Marías destaca-se pelo encantamento, pelo feitiço com o qual envolve o leitor ao transmitir não só a paisagem visual, mas também emocional e comportamental e ao enquadrar as personagens no cenário cultural onde elas se movimentam. A prosa de Marías é impressionista, pelo que não se detém em contornos fixos, no traçado da personalidade das suas personagens. Pelo contrário, dela brota uma tónica diarista, num discurso que parece aproximar-se um pouco da frieza analítica de um ensaio mas em cujas entrelinhas fervilha o caldeirão onde se cozinha o caldo das emoções que compõem a psique humana.
A descrição física, assim como a análise comportamental das personagens parecem brotar de um processo de acurada observação empírica e detalhada, pela dissecação dos mais ínfimos pormenores e cambiantes das expressões faciais, postura corporal, movimentos de mãos, onde até a indumentária serve como forma de expressão dos sentimentos ou da forma como se estabelece a comunicação com os outros. Uma profusão de sinais exteriores que denuncia, assim, o que vai na alma de cada um como por exemplo as peles roídas e cutículas inflamadas de Natália, conjugadas com o semblante que tenta ocultar com o cabelo, durante a viagem de comboio logo no primeiro capítulo, denunciam uma certa inquietação interior que tenta disfarçar a todo o custo.
Também as descrições de carácter mais generalista, como a panorâmica das cidades e dos respectivos transeuntes, das multidões anónimas que por elas circulam, obedecem ao mesmo processo ou, se calhar ao mesmo impulso. O Autor extrai, a partir da disposição, da configuração do aspecto exterior, da combinação entre as roupas escolhidas, as expressões faciais e a forma de caminhar dos seus habitantes, a respectiva forma de encarar a vida, inserindo-a na mesma visão pessoal, traçada pelo colorido emocional dos habitantes de cada cidade europeia, na sua própria cultura específica.
Se não vejamos:
(…) Madrid, a cidade onde passei a minha infância e adolescência (…) pareceu-me solitária e triste como poucas nas minhas inúmeras viagens pelo estrangeiro. Ainda mais que as cidades inglesas, que são as piores do globo, as mais enfermiças e as mais hostis; ainda mais do que as da Alemanha do Leste, nas quais há tanta disciplina e tanto amortecimento que passar pela rua a assobiar produz o efeito de um cataclismo; ainda mais do que as suíças que, pelo menos, são limpas e calmas e dão uma oportunidade à imaginação pelo próprio facto de não dizerem nada.
Madrid, pelo contrário parece ter pressa de dizer tudo, como se estivesse consciente de que a sua única possibilidade de conquistar o viajante reside no aturdimento e na veemência sem freio (…). Madrid é rústica e chocarreira e não encerra qualquer mistério; e não há nada de tão triste e solitário como uma cidade sem enigma aparente ou aparência de enigma., nada de tão dissuasório, nada de tão opressivo para o visitante.
A trama tem como personagem central e, também, como narrador um cantor de ópera que se encontra em Madrid de passagem para representar o papel de Cássio, no Othello de Verdi. Este acabará por entrar, ele próprio, numa trama paralela e tornar-se num dos vértices de um triângulo amoroso semelhante – embora não idêntico – ao da trama shakespeariana que deu origem à ópera do compositor italiano.
A personagem que podemos identificar com o Othello é um banqueiro belga Hieronymous Manur – tão tirânico como o Mouro de Veneza, mas cuja violência em relação à sua Desdémona madrilena, Natália, se manifesta sobretudo na privação de liberdade: Natália é vigiada vinte e quatro horas por dia pelo esbirro do banqueiro, o narcisista e venal Dato, que não chaga a ter a maldade de Iago e cuja missão é a de entreter a esposa do patrão e reportar a este as suas actividades diárias.
Hieronymous Manur é, no entanto, referido várias vezes quase como que num estribilho como sendo “um potentado, um ambicioso, um político, um explorador”. A visão do narrador transmite-nos o retrato de uma ave rapace, um homem habituado a dar ordens, sem nunca ser questionado. Manur compra a esposa a uma família que pertencente à elite empobrecida madrilena comprometendo-se, em troca, a reabilitar os negócios da família, arruinada por investimentos desastrosos. Natália é tratada pelo marido como um objecto muito caro, praticamente como uma prostituta de luxo, de quem se obtêm exclusividade em troca de conforto material e, simultaneamente, um animal doméstico ou, ainda, uma peça de museu.
Natália está demasiado consciente da dependência de um gesto seu para resgatar a família da ruína ou lançá-la de vez na penúria, pelo que se submete ao proxenetismo dos familiares, manifestando para com estes um amor e solidariedade incondicionais. Natália só consegue sair do estado de melancolia permanente quando encontra o irmão, Roberto, em Madrid. Ou o tenor madrileno que representa o papel de Cassio…
Existe ainda Berta, a namorada do tenor cognominado de “O leão de Nápoles” em virtude sucesso e reconhecimento que obteve nesta cidade – uma jovem agradável e culta mas sem mistério, que não deixa marca.
Já na figura de Natália, o tenor parece encontrar a melancolia e o mistério que lhe despertam o instinto cavalheiresco que se manifesta num desejo leonino de aniquilar o adversário: Manur. Trata-se de algo atávico, uma espécie de instinto que impele a derrubar o macho dominante, numa dada espécie animal. Algo que leva o protagonista a perseguir um amor, construído com base naquilo que o autor chama de “imitação” mas que nada mais é do que o desejo de competir.
Natália, por seu lado, vê no amigo o veículo que poderá libertá-la das amarras, das grilhetas, que a impedem de ser ela mesma e lhe bloqueiam a autonomia…
O Homem Sentimental é, desta forma, “…uma história de um amor que não se vê nem se vive mas que se anuncia e se recorda” (JM), porque o tempo da narração não é exactamente o tempo da vivência desse mesmo amor. Mas antes a vivência da expectativa e, posteriormente, quando este já se tornou apenas uma recordação.
É uma história que se anuncia trágica mas que só consegue verdadeiramente sê-lo para o homem sentimental que parecendo ser à primeira vista, o artista ou o pensador – cuja capacidade em fazer cedências é desenvolvida logo a partir da pré-adolescência o habitua, logo desde cedo, a saber perder e a reerguer-se das cinzas – mas que acaba por ser o homem de negócios, “o potentado, o ambicioso, o político, o explorador”, o homem de acção, que nunca é contrariado e que não sabe aceitar uma derrota.
Uma obra que se lê com prazer e lentamente, como que sorvendo, em pequenos goles, uma bebida rara e preciosa. Para degustar e absorver frase por frase.
Javier Marías é, por isso, uma excelente companhia para levar numa viagem de férias.
Cláudia de Sousa Dias
10 Comments:
Dele também recomendo " O teu rosto amanhã". Um livro fabuloso.
um beijo
Já vi nas bancas e na bioblioteca...estou à espera de mais uma daquelas fabulosas promoições da LEyA...
Beijos
CSD
Parece-me fácil de ler. Já está na minha lista de compras!
Não exactamente, mas é fascinante.
eu nunca escolho os livros pelo critério do "fácil"
:-)
CSD
Boa-tarde,
Deixo aqui um convite para visitar e participar no blogue http://paulauster.blogs.sapo.pt/
Cumprimentos,
Miguel
Obrigada pelo convite, Miguel.
Irei sim.
CSD
e tu também es uma sentimentalk, como eu!
Mas é uma delícia que exi8stam pessoas com quem se possa falar de afectos e sentimentos, não achas?
CSd
bom blogue
gostei
ja linkeei
o meu blog literario é www.aminhalivraria.blogspot.com
cumpts
Obrigada.
Passarei por lá, com certeza.
:-)
CSD
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