HÁ SEMPRE UM LIVRO...à nossa espera!

Blog sobre todos os livros que eu conseguir ler! Aqui, podem procurar um livro, ler a minha opinião ou, se quiserem, deixar apenas a vossa opinião sobre algum destes livros que já tenham lido. Podem, simplesmente, sugerir um livro para que eu o leia! Fico à espera das V. sugestões e comentários! Agradeço a V. estimada visita. Boas leituras!

My Photo
Name:
Location: Norte, Portugal

Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Sunday, August 02, 2009

“Escritos de Frida Kahlo” por Raquel Tibol (Quetzal)


Uma colectânea de pequenos textos, notas, cartas e poemas que é uma verdadeira caixinha de surpresas, pelo facto de a maior parte dos textos aí incluídos não serem “literários” ou, pelo menos, de não terem sido escritos com essa intenção – a de impressionarem pela beleza ou com o intuito de causarem impacto na opinião pública ou no seu destinatário – mas antes a de resolver, na maior parte dos casos, pequenas questões práticas da vida quotidiana ou simplesmente desabafos.

No entanto, através deles, pode-se desvendar um pouco da personalidade da verdadeira Frida Kahlo, independentemente de todas as ficções e distorções, criadas à volta da sua figura e, assim, quase se poder escutar a “voz” ou as várias vozes de uma das melhores artistas plásticas não só do século XX mas de toda a história da pintura.

Nos Escritos de Frida Kahlo estão contidas todas as “Fridas” que compõem a mulher única e inimitável que foi Kahlo e cuja poesia pictórica de que se serve para exprimir as mais intensas emoções e sensações nos seus quadros, integrados no movimento estridentista causaram um impacto de tal forma grande no público e na crítica. Impacto esse que, associado à lenda de mulher sedutora, sensual e revolucionária muito contribui para fazer perdurara a lenda de mulher sedutora e ardente, fazendo simultaneamente perdurar o seu fascínio muito para além da erosão da beleza, e dos fantasmas da doença e da morte.

Nestes “escritos” começamos por ver uma Frida adolescente, algo naïf, mais propensa a acreditar na força das próprias convicções ideológicas ao mesmo tempo que sofre a tortura da convalescença de um aparatoso acidente, que lhe deixou sequelas para o resto da vida.

A Frida deste período é apaixonada, dependente e um bocadinho manipuladora, faceta que surge nas entrelinhas das cartas de amor escritas a Alejandro Gómez Árias, o primeiro namorado. Mas também sabe ser mordaz e impiedosa na crítica quando se trata de traçar o retrato psicológico e social das gentes de Nova Iorque, Paris ou Los Angeles ou até mesmo da personalidade de alguém de quem não gosta, como é o caso de André Breton. O pedantismo dos intelectuais franceses que preconizam a corrente do surrealismo, ou a superficialidade dos norte-americanos endinheirados têm o dom de a irritar fazendo aflorar uma verborreia carregada de cianeto emocional. Temos, também, a oportunidade de constatar a forma como a pintora mascara o sofrimento, ao colori-lo com e seu humor cáustico. O cromatismo da linguagem passa, também pelo uso da gíria e calão populares da região do México. A finalidade do uso de uma linguagem desbragada é a de, em primeiro lugar, quebrar o gelo, desdramatizar a própria situação e o próprio sofrimento. No entanto, quando precisa de conseguir um favor de alguém, Frida não hesita em fazer exactamente o oposto, valendo-se da sua situação para conseguir os seus objectivos.

Segundo o autor do prefácio, Antonio Alatorre, professor de literatura na Universidade do México, a linguagem ácida de Frida “torna-se especialmente acerada, quando dirigida especificamente aos intelectuais e artistas do surrealismo os quais, com excepção do dadaísta Marcel Duchamp, despreza de forma radicalmente visceral, por estar convencida de que estes apenas se preocupam com o lado fútil e superficial da vida, enquanto a Europa sofre a ameaça crescente do nazismo – corrente que na época prolifera a um ritmo preocupante – para além de não suportar a postura indolente desta corrente ideológica.

A escrita apaixonada e acutilante que utiliza como forma de crítica servindo-se da sátira atinge uma tonalidade muito pitoresca ao utilizar expressões locais como, por exemplo, “espinhela” ou “espinhaço” para designar “coluna vertebral”.

Esta linguagem brejeira assim como a tendência viperina são características que se atenuam de forma notória quando Frida se refere a Diego Rivera, uma vez que o afecto a obriga, inconscientemente, a adoçar a linguagem.

O acidente que a deixa fisicamente inválida durante largos meses e com sérias limitações físicas durante toda a vida, obriga-a a realizar um sem-número de intervenções cirúrgicas. Frida consegue exprimir-se, muitas vezes em surdina, usando de um estoicismo revelador de uma enorme coragem e vontade férrea de aproveitar o melhor que a vida lhe possa proporcionar.
Outro aspecto que se destaca nos seus “Escritos” é o amor que nutre pelo pintor Diego Rivera, seu marido, o qual se manifesta de forma incondicional e multidimensional. Frida parece ter sido, pelas emoções manifestas nas cartas e pequenos escritos, uma mulher de sexualidade intensa e ardente, faceta que também se manifesta na sua pintura.

Mas tanto na expressão da sua paixão adolescente por Alejandro Gomez Árias quanto após o divórcio de Diego, nos relacionamentos passageiros com o fotógrafo Nicholas Murray e outros que se lhe seguiram, Frida evidencia sempre os sinais característicos de uma paixão dramática, avassaladora, característica da expressão do estridentismo, a sua imagem de marca impressa em tudo o que faz desde o sexo à pintura, passando também, é claro, pela escrita.

O afecto demonstrado a Diego mostra ser, no entanto, multidimensional, por se exprimir numa faceta maternal – patente quando o apelida de “mi niño”, uma simplicidade maternal que se manifesta no companheirismo que se baseia nas múltiplas afinidades que os unem – e, claro, na intensíssima sexualidade e atracção erótica que os une.

O facto de Frida não ter conseguido escrever a sua autobiografia , deveu-se, sobretudo aos efeitos das elevadas doses de Demerol que era obrigada a tomar para conseguir suportar as dores atrozes de que sofria na coluna. Raquel Tibol, viu-se, assim, na necessidade de organizar cronologicamente os escritos de Frida, sobretudo após a saída para o mercado da biografia de Haider Herrera, que serviu de base ao filme protagonizado e co-produzido por Salma Hayeck. Esta organização dos escritos de Frida por Tibol teve como objectivo “a criação de uma autobiografia tácita com a inclusão dos escritos pessoais da pintora na categoria de literatura confessional e intimista mexicana do século XX”, ainda segundo Alatorre.

O discurso de Frida está situado algures num continuum onde, de um lado, está a sinceridade e, do outro, a manipulação, ocupando posições diferentes nesse mesmo continuum, consoante as circunstâncias chegando, por vezes, a revestir-se de uma máscara de auto-comiseração ou auto-flagelação, a evidenciar uma necessidade insaciável de afecto.

As emoções afloram à pele manifestando-se na forte expressão do seu erotismo, verbal e pictórico, acompanhado de um grande poder de auto-análise e, ao mesmo tempo, de uma grande dose de humildade. Esta forma de expressão artística integra-se, como já foi referido, no movimento intelectual surgido em finais de 1931, denominado de “estridentismo”. Esta corrente, inspirava-se no futurismo e dadaísmo e visava enaltecer a emoção como fonte de criação estética, cuja expressão era baseada em associações livres, autênticas pirotecnias verbais, como é o caso da pintura de Frida, cujo impacto no público tinha a força de um grito ou um berro de dor.

No que respeita à escrita Frida Kahlo consegue por vezes criar o mesmo impacto. Frida afirmava não se considerar uma pintora surrealista, apesar de utilizar algumas das técnicas do surrealismo, uma vez que a sua linguagem “não diz respeito aos sonhos mas sim ao estado de vigília”, ao domínio do consciente. Na linguagem utilizada nas cartas, a pintora serve-se, também, frequentemente dos recursos utilizados pelos estridentistas, como é o caso da descrição do ambiente da palestra dada por Diego num clube de senhoras idosas:

Ayer, Diego dió una conferencia en un club de viejas. Había como que unos cuatrocientos espantajos, todas como de doscientos años, con el pescuezo amarrado, porque les cuelga en forma de olas. En fín, unas viejas espantosas, pero todas muy amables. La mayor parte escupen al hablar, y todas tienen una dentadura postiza que se les hace para todos los lados. Bueno, te digo que había cada iguanodonte ancestral…”
(…)
Los gringos me cáen muy gordos, com todas sus cualidades y sus defectos. Me cáen bastante gacho sus maneras de ser, su hipocresía: eso de que para todo tiene uno que ser very decent, very proper, etc., etc. Pero no sé porqué, aún las más grandes cochinadas las hacen con un poco de sentido del humor; los gringos en cámbio, son sunpones de nacimiento”.

É um facto que a a data de 1925 é um marco no discurso escrito de Frida. A escrita dela evolui “por degraus” como também afirma Alatorre: “degraus de palavras que servem para evadir-se dos muros do enclausuramento, desenvolvendo-se simultaneamente a partir da mesma motivação que a levou a pintar: a necessidade de catarse e fuga ao tédio”.

A sintaxe, os ritmos e a ambiguidade idiomática que a levam a misturar o castelhano com o inglês, fazem das cartas de Frida uma forma de expressão, que é herdeira directa do estridentismo da sua pintura.

Apesar de, como já foi dito, grande parte do conteúdo destas cartas ser apenas constituído por “desabafos”, a pintora começa, a dada altura, por utilizar jogos sintácticos e polissémicos onde a sátira e o despudor são a arma que usa para combater a solidão.

Frida parece já expressar desde idade muito precoce, um vulcânico e telúrico impulso sexual, no qual a dimensão da sua tragédia pessoal não a impedem de dar rédea solta à sua coqueteria, tratando mesmo o amantes esporádicos após o divórcio de Diego, como se fossem amores eternos e intemporais.

A linguagem utilizada é sempre uma tentativa de exorcismo quer da dor quer da solidão, a traduzir-se num ponto de convergência entre o racional e o irracional, com o objectivo de regressar a si mesma pela eterna busca do êxtase.

Deixo-vos com um magnífico poema de Frida oferecido postumamente a Diego:

Poema

na saliva.
no papel.
no eclipse.
em todas as linhas,
em todas as cores, em todos os jarros.
no meu peito.
Fora. Dentro.
No tinteiro. Nas dificuldades da escrita.
Na maravilha dos meus olhos – nas últimas
linhas do sol (o sol não tem linhas), em
Tudo (I). Dizer tudo é imbecil e magnífico.
O DIEGO na minha urina – o Diego na minha boca –
- no meu
Coração, na minha loucura, no meu sonho – no mata-borrão – na ponta da caneta –
Nos lápis – nas paisagens – na comida – no metal – na imaginação
Nas doenças – nas vitrinas – Nas lapelas dele – nos seus olhos – na sua boca.
Na sua mentira.



Frida Kahlo


Arrebatadora.


Cláudia de Sousa Dias

4 Comments:

Blogger Maria said...

E eu quero partilhar contigo a experiência de ter lido o 13º livro de Ian Fleming esta noite... Cada vez gosto mais de ler, é um prazer que não pára de crescer, sinto sempre a mesma excitação quando pego num livro novo. É por isso que gosto tanto do teu blog.


beijos

11:26 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

ainda não li nada de fleming...
mas estou com vontade de pegar nos romances de sir arthur conan doyle e naquele espírito de lógica matemática de Holmes...


:-))


CSD

8:42 PM  
Blogger Toutinegra Futurista said...

Desconcertante, esta Frida Kahlo!
abraço
P.

3:59 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

ah, sem dúvida.



obrigada

;-)


csd

6:24 PM  

Post a Comment

<< Home