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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Monday, August 30, 2010

“A Mulher Certa” de Sándor Márai (Dom Quixote)




A atribulada vida de Sándor Márai é afectada pelas convulsões decorrentes das mudanças estruturais que assolaram a Europa no século XX e estiveram na base do seu exílio durante o domínio soviético. Exílio esse que terminou apenas com a morte do Autor, a escassos meses do derrube do Muro de Berlim.


A nostalgia do passado e de todo um mundo desaparecido com a revolução Cultural, após a instauração do regime comunista na Hungria, a recusa em fazer da actividade de escritor um instrumento de propaganda política, fosse qual fosse o sistema económico onde estivesse inserido, até decidir pôr termo à vida já com quase noventa anos, são aspectos que se reflectem na escrita de A Mulher Certa. Uma escrita impregnada de melancolia, introspectiva e centrada na análise do passado, nos meandros das relações humanas e no emaranhado processo de atracções e repulsões que lhes estão subjacentes. Uma escrita que se afoga na mais profunda solidão.


A Mulher Certa é o livro das desilusões e desencantos que precedem o desmoronar dos sonhos ao longo de toda uma vida, ou de várias vidas, ao longo de um século conturbado, marcado pela extinção de uma determinada classe social – a alta burguesia húngara, consolidada desde a belle époque ou, desde o inicio do século XIX, que em parte de fundiu com a aristocracia formando uma élite que foi substituída por uma burguesia emergente ligada ao alto funcionalismo estatal.
Neste contexto, A Mulher Certa é um livro que abprda as temáticas do amor, o casamento a relação com o dinheiro, as relações com o Outro, a forma de comunicar, isto é, a imagem que projectam para o exterior.


Em 1941, Sándor Márai publicou As Igazi/A Mulher Certa, obra composta apenas pelos dois primeiros monólogos; mas para a edição alemã, em 1949, junta-lhe o monólogo de Judit, o terceiro vértice do triângulo amoroso em que é centrada a trama. Mas esta terceira é reescrita em 1980, sendo-lhe então acrescentado o epílogo. A presente edição inclui as quatro partes do romance, embora não fosse de todo descabido acrescentar-lhe à laia de subtítulo, Judit e um epílogo, o título introduzido pelo Autor na versão de 1980. Um romance de vulto, composto por três longuíssimos monólogos e um epílogo. Três pontos de vista diferentes a juntar as peças que formam o mapa dos acontecimentos que servem de base para a construção da história. O remate final é-nos apresentado pelas conclusões relatadas no epílogo, no qual é introduzido um quarto narrador que não participa directamente nos acontecimentos: Lajos, o amante de Judit.



A primeira parte – Marika



O romance inicia com a descrição de um ambiente de prosperidade, no interregno entre as duas Grandes Guerras do século XX: uma elegante pastelaria onde se observa a rotina de uma elite que desaparecerá no espaço de duas décadas. Sentada discretamente a um canto, Marika relata a uma amiga de longa data e à qual já não vê há algum tempo, uma história de desamor, a qual acabou por fazer ruir um casamento aparentemente perfeito. Todos os dias à mesma hora, espia discretamente o ex-marido que vem todos os dias àquele lugar e, todos os dias, faz a mesma compra. No entanto, naquele dia Péter compra casca de laranja cristalizada para a nova esposa, algo que não passa despercebido à ex-mulher. Marika observa-lhe, de forma quase que obsessiva, os movimentos e gestos rituais, sempre do mesmo ângulo de visão: a mesa do canto naquela pastelaria, ao fim da tarde, logo que este sai do emprego, na vã tentativa de compreender a falência de uma relação com tantas fragilidades quantas aquelas existentes na estrutura do próprio Império.


Marika é pródiga em detalhes no relato que faz à amiga, traduzindo a forma como a expressão de duas sensibilidades diferentes se chocam, devido a formas diferentes de entender e vivenciar o amor. Esta diferença resulta de personalidades divergentes, estruturas segundo diferentes representações mentais, em que a possessividade no amor, de um dos lados, se torna incompatível com a reserva e a ânsia de liberdade, do outro. Marika dá-nos a conhecer uma história de duas pessoas habituadas a viver de forma diametralmente oposta, desde a organização do próprio quotidiano que é moldado por formas de socialização condicionadas pelas convenções subjacentes ao respectivo nível socioeconómico de cada um. No entanto, trata-se apenas de um dos lados deste triângulo. Um ponto de vista pessoal, osbservado, metaforica e literalmente, de apenas um dos cantos da pastelaria.

Sándor Márai possui o mérito de traçar o perfil psicológico de cada uma das personagens de forma exaustiva e minuciosa e relacioná-las com o ambiente socioeconómico e cultural onde estas se desenvolvem, característica que manifesta em todos os seus romances. Ao leitor cabe o papel de ouvinte, de receptor conjuntamente com a inlerlocutora. Esta, no entanto, desempenha um papel não propriamente passivo, mas mais o de um entrevistador não-directivo, tal como o terapeuta num consultório de psicoterapia.


Marika deixa quase sempre transparecer um ciúme obsessivo e excessivo, que deixa transparecer nos gestos e nas frases que vai soltando, misturadas com uma boa dose de insegurança, algum orgulho e sentimento de posse, deixando o leitor adivinhar até que ponto a personalidade da narradora contribuiu para a asfixia da relação.


No discurso de Marika, Sándor Márai dá a entender que a maternidade, a beleza, o refinamento, a sedução não são elementos suficientes para sustentar uma relação que transporta consigo algumas fissuras estruturais.


O aparecimento de uma figura do passado na vida de Péter é apenas o golpe de misericórdia numa relação que já vem a definhar há muito tempo. Marika poderia até ser A Mulher Certa. Mas os seus medos, a insegurança doentia que manisfesta acabam por deitar tudo a perder. No passado de Péter existe um abismo que contém algo de telúrico e vulcânico e que o atrai fatalmente, como chega a intuir Lázar - escritor de sucesso e amigo do casal com quem Marika antipatiza no início da vida de casada, talvez por suportar com dificuldade o olhar crítico e um conhecimento da vida anterior do marido à qual não consegue aceder e que está convencido ser de natureza nefasta, se não mesmo destrutiva.


Ao longo do romance e sobretudo nos capítulos seguintes, Sándor Márai empenha-se em mostrar que as paixões podem até não se concretizar mas a memória não permite que desapareçam. Projectando-se ora na figura de Péter, ora na figura de Lázar que são duas fases diferentes do seu “eu” o Autor, herdeiro simultaneamente do Romantismo, defende o argumento de que as almas apaixonadas são orgulhosas e sofrem muito. A confirmar esta hipótese a citação de Marika deixa pouca margem para dúvidas ao recordar o temperamento artístico do marido que dizia ser “um artista que ainda não encontrou o seu género. Entre os burgueses isso é frequente. Quando é assim, extingue-se uma família.”


Em relação a Lázar, Marika tem, também, sentimentos dúbios de atracção e repulsão, já que o escritor é a negação da faceta de burguês do marido:


Sentia-se à sua volta a solidão de quem vive no Pólo Norte. Solidão e serenidade, uma triste serenidade, subitamente compreendia que aquele já não desejava mais nada, nem felicidade, nem êxito, sim, e talvez, nem sequer escrever, mas só conhecer e compreender o mundo. Estava careca e sempre com o ar de quem educadamente, se aborrece um pouco. Mas havia também nele algo de monge budista, um pouco do olhar oblíquo de quem olha o mundo e não é possível saber-se o que pensa.


As duas “almas” apaixonadas que mais sofrem são precisamente Marika e Péter, os narradores da primeira e segunda parte.


Em relação a Judit, Marika descreve-a como dona de um rosto de uma beleza fatal, “perigosa como um felino de grande porte, orgulhosa e sem piedade (...) Era um rosto liso e implacável. Que não aguentava cumprimentos fáceis, nem suportava sorrisos adocicados.


Judit aparece como uma ameaça para Marika, pela sua paciência e perspicácia, ao esperar o momento certo para atacar de emboscada.



Segunda Parte - Péter



A segunda parte consiste na exposição do ponto de vista de Péter. Nela, o Autor explora a mentalidade burguesa, ou melhor, da alta burguesia ao esmiuçar o comportamento e as motivações do burguês rico de há várias gerações, isto é, não colocando em evidência a vulgaridade e o exibicionismo do novo-rico, mas, à maneira da escritora norte-americana Edith Wharton, do princípio do século XX, a forma como os “grandes senhores” que, não sendo aristocratas, têm de provar a toda a hora e em cada gesto, que são grandes senhores, capazes de desempenhar o seu papel na perfeição. Mas ao contrário de Wharton, Márai não se limita a mostrar as atitudes das personagens: explica-as detalhadamente ao fundamentá-las em razões de carácter psicológico, cultural ou social. E no caso de Péter as atitudes são formatadas a partir de uma forma de viver que acabará por se revelar um autêntico colete-de-forças ao limitar e constranger a sua liberdade individual de Péter e dos que o rodeiam.


Mais do que um aristocrata, o burguês é muito sensível a estas tonalidades. Até à hora da morte, o burguês precisa de se afirmar. O aristocrata, ao nascer, já mostrou o quanto vale. O burguês está condenado a acumular ou a conservar.


Destas palavras, depreende-se que Péter já não pertencia à geração que acumula e nem mesmo à segunda geração. O autor aqui, dá a entender que é durante a vida de Péter que a fortuna da família irá desaparecer.


O cenário é o mesmo da primeira parte. A mesma pastelaria onde Marika conversava com a amiga. Alguns anos depois, é a vez de Péter ocupar a mesa de um canto obscuro daquele local e contar a um amigo a sua versão dos factos: a dissolução de um casamento, onde o gelo já se instalou por um lado, e a desilusão de uma paixão de longa data. A falência de ambos os relacionamentos: o primeiro, com a mulher perfeita; e o segundo, com a paixão desmedida, incomensurável.


Péter é um narrador mais completo que Marika, por agregar, já,dois pontos de vista: a sua própria forma de olhar os acontecimentos e o conhecimento da conversa ocorrida anos antes, entre a ex-esposa e amiga, naquele mesmo lugar, fruto de uma indiscrição. Além disso, no tempo em que decorre esta segunda parte, Péter está já divorciado da segunda esposa, o que explica o teor pessimista do discurso e a opinião em geral pouco positiva das mulheres.


É pelo monólogo de Péter que nos apercebemos, também, das mudanças das relações de poder entre as diferentes classes sociaisno espaço de uma década: da riqueza que muda de mãos, da alteração dos hábitos, comportamentos, da linguagem verbal e dos gestos, do devir das mentalidades. Em suma, a transformação da cultura de um povo. E, também, daquilo que permanece intemporal: as expressões faciais que revelam o pensamento das pessoas, quando julgam não estar a ser observadas, gestos que acabam sempre por traí-las.


Depois da meia-noite, este café fica deserto e frio. A última vez que cá estive era ainda um estudante estagiário, foi por altura do Carnaval. Na época, eram lugares conhecidos, viam-se muitas mulheres, como aves coloridas, cintilantes e divertidas. Passaram-se décadas sem cá pôr os pés. O tempo correu, o local endomingou-se, mudaram os frequentadores. Agora vem cá a alta sociedade, uma clientela nocturna…sabe, a gente bem, como se diz.


Nas primeiras páginas desta segunda parte, o Autor explica, pela voz de Péter, a intenção da obra, ou seja, as causas que são responsáveis pela grande tragédia da Humanidade, petrificando a vida, dotando-a de um cinzentismo doentio: a solidão.


O livro é, todo ele, a tentativa de explicação de um estado de alma que acaba por assolar as três personagens principais – uma solidão recorrente, aliada à sensação de um inexorável fracasso.


A solidão que, antes ou depois, precipita qualquer ser humano, como um viajante nocturno, numa fossa.


A Humanidade, na sociedade industrial, perece viver segundo o Autor, ao falar através da voz de Péter:


Como se a alegria se apagasse da terra. Às vezes, por instante, ainda bruxuleia, aqui e além. No fundo da alma humana, vive a recordação de um mundo feliz, solar, brincalhão, no qual o dever é, simultaneamente, divertimento e esforço, agradável e sensato.
(…)
Talvez os gregos sim, tenham sido felizes (…) porque eram cultos, no sentido mais profundo, mais inculto do termo, incluindo os oleiros…Mas nós não vivemos numa verdadeira cultura, mas numa civilização de massas, mecânica e enigmática. Todos têm a sua parte e ninguém a verdadeira alegria (…) e toda esta tensão deriva da solidão
.
(…)
Conheço mães com meia dúzia de filhos, em cujo rosto se surpreende a mesma solidão e desconfiança, e burgueses solteirões que nem a tirar as luvas conseguem esconder um ar artificioso como se as suas vidas fossem uma sequência de gestos forçados. E quanto mais os políticos e profetas se preocupam em construir comunidades cada vez mais artificiais no seio da comunidade, quanto mais educam as crianças nesse sentido forçado de comunidade, maior será a solidão das almas
.



O único desvio deste cinzentismo quase niilista reside na presença da beleza na sua forma mais pura, como a estátua viva do arquétipo da beleza selvagem, representado por Aldozó Judit.
Diante dela, Péter não sente estar perante algo de ameaçador, como Marika ou Lázar, mas a sensação inquietante de ter diante de si a concentração da beleza primordial, ao olhar directamente para a face do seu ídolo.


…um rosto aberto, expectante, radioso e confiado, como só pode ser um rosto humano em início de vida quando ainda não comeu da árvore da consciência, nem conheceu a dor e o medo.



O drama de Péter, que se desenrola no desfiar do relato da sua história ao amigo, enquanto degustam uma garrafa de vinho tinto a história desenvolve-se sem pressas, pela noite dentro, no sentido de constatar a inexistência de uma fórmula ou modelo conceptual que ensine a humanidade a ter sucesso nos seus relacionamentos. Esta fórmula ideal felicidade adquire os contornos de uma quimera, cuja realidade, o fracasso resultante da desconfiança, do medo, do ensimesmamento, da solidão e, mais tarde, do conformismo, em evidente analogia com o mito genesíaco da perda da felicidade pela expulsão do paraíso. A infelicidade tem a ver com o ciclo de vida do Homem e com o crescimento e amadurecimento das relações, decorrentes do processo de mudança em curso, uma vez que, na Terra, sendo esta, um organismo vivo, nada é estático.



…poetas, médicos, deviam falar aos jovens da alegria da convivência, das possibilidades da vida a dois, homens e mulheres…não da “vida sexual”, mas da alegria, da paciência, da modéstia e da satisfação. Quando verbero os homens, é que neles desprezo, talvez, acima de tudo, essa cobardia – a cobardia como escondem, de si mesmos e do mundo, o segredo da própria vida.


Péter ama Judit porque está decidido a romper com o tédio, a solidão a que o obriga o dever de se comportar como o burguês rico de conduta exemplar; deseja a romper com a aridez de uma vida social onde tudo tem de ser perfeito, o paraíso artificial onde se representa, se finge uma vida de delicadeza, serenidade, correcção. Péter explica este tipo de comportamento convencional pelo facto de a burguesia ser uma classe exclusivamente empreendedora, aquela que consegue não só detonar as mudanças nas estruturas económicas, mas também o teor das relações entre os agentes económicos, susceptíveis de potenciar ou atenuar o conflito entre classes o qual, por sua vez, promove a circulação das élites.


Era como se estivessem sempre a prestar contas de alguma coisa. Viviam segundo planos rigorosamente estabelecidos. Tinham visto grandes povos projectarem planos quadrienais e quinquenais com vista ao aperfeiçoamento da raça e ao progresso da nação que, a seguir, eram impostos de forma cruel, executados a qualquer custo, sem respeitar minimamente a vontade das populações. Por que o objectivo destes planos de longo alcance não é o bem-estar do indivíduo, mas a prosperidade de um povo em geral, de uma nação.

(…)


Na base das nossas acções, dos nossos hábitos, havia algo de renúncia consciente.


Péter é, também, de opinião que a raiz, tanto dos conflitos interpessoais como sociais, tem a ver com a relação que cada um estabelece com o dinheiro. O que não anda, de todo, longe da verdade, já que é um dos motivos que em muito contribuíram para o erodir de ambas as relações.


Mas no que toca a Judit, familiares e amigos de Péter vêem na jovem, oriunda da classe proletária e com antecedentes de pobreza extrema, tudo menos “a mulher certa”. Judit é, pelo contrário, vista por todos como uma mulher perigosa, capaz de trazer à vida de Péter uma paixão, sem dúvida fulminante pela sua teluricidade, mas fatal. O desenrolar dos acontecimentos mostram que, após dois divórcios, a tristeza e a solidão parecem ser a companhia permanente de Péter, interrompida no passado, apenas pela intrusão de Judit.


Nessa solidão entrou, um dia, Aldozó Judit.


A descrição do momento em que Judit, aos quinze anos, entra em casa de Péter pela primeira vez e vira o rosto para a luz, de forma a expô-lo ao olhar do futuro patrão, é um dos trechos mais belos, poéticos e artísticos da obra de Márai. Um trecho dotado de uma força passional que ilumina o carácter sombrio do romance, como a chama de uma vela. Em particular o o segundo em que Judit expõe, revela o rosto pleno de beleza total, é um instante de puro deslumbramento. E de subversão com o quê de revolucionário também, pois ao fazê-lo, a jovem empregada olha o filho do patrão com a mesma altivez de uma princesa, numa atitude “silenciosamente condescendente”.


E porque era terrivelmente bela, de uma beleza austera, virgem e completamente selvagem, um exemplar perfeito da criação, que a natureza só uma vez consegue desenhar e fundir com tal perfeição, essa beleza começou, a pouco e pouco a influir na atmosfera da nossa casa, como um surdo e contínuo fundo musical. A beleza é, seguramente, uma força, a par do calor, da luz ou da vontade humana.


Outro trecho de grande força telúrica nesta segunda parte é aquele que trata da questão do desejo, na cena em que Péter observa, hipnotizado, os quadris de Judit, ajoelhada diante da lareira, pose que a jovem enfatiza, de forma provocante, ao saber-se observada.
Mas e, contrapartida, a solidão traz, também, a liberdade à vida de Péter, em vários momentos da narrativa: o primeiro foi durante o curto exílio na Europa, pouco antes de casar pela primeira vez e já depois de conhecer Judit, durante o qual tem a possibilidade de perceber a tendência da evolução económico-sócio-política do continente, no período entre as duas guerras e, depois, já após o segundo divórcio. O clima da “paz armada”, verificado no interregno entre as duas Guerras Mundiais é particularmente elucidativo :

todos se moviam com uma certa desconfiança como quem foi vítima de uma grave e inesperada rapina. Todos, indivíduos e nações, procuravam mostrar-se afáveis, abertos e magnânimos, mas em segredo, á cautela, apertavam o revólver no bolso das calças.


No regresso a casa acaba por desposar Marika, a quem todos consideram “a mulher certa”.
O ciúme é ums das facetas do comportamento humano melhor e mais exaustivamente retratadas por Márai. O autor, mais uma vez pela voz de Péter, identifica-se com a definição de Léon Tolstoi como “uma forma mesquinha e desprezível de vaidade. Discorda, no entanto, da solução desumana proposta pelo autor de Guerra e Paz para o evitar - uma solução não muito distante do uso da burka em alguns países do médio Oriente - apesar de achar igualmente aviltante a redução da mulher à categoria de objecto de desejo, pelo mercadejar dos dotes físicos, imposta pelos media.


Só num sistema de produção e ordem social no seio do qual a mulher a si mesma se considera mercadoria é que precisam disso.


No entanto a análise das descrições das atitudes de Judit, mesmo no discurso apaixonado e melancólico de Péter, apercebemo-nos que a paixão não afecta minimamente Judit. Trata-se de um relacionamento e onde está inequivocamente presente um desequilíbrio de forças, onde quem não ama é quem domina pela atracção que exerce sobre o outro e o torna vulnerável. Através da união com o filho do patrão, Judit inicia, assim, um processo de vingança social, um resgate de contas pela infância mergulhada na miséria e no desconforto e dando azo, após o casamento com Péter, a um autêntico cenário de luta de classes doméstico.


À timidez inicial de Judit, segue-se uma voracidade consumista, traduzida numa insatisfação permanente e incomensurável, a quel acabará por se transformar em apatia.


O casamento, enquanto fruto da paixão em Péter, serve de pretexto ao Autor para uma dissertação sobre o amor conjugal enquanto vertigem, a operar como antídoto face à melancolia. Nela, o carácter telúrico de um amor perfeitamente carnal é comparado, audaciosa e algo hiperbolicamente, a uma aventura na selva. Péter afirma, perante o amigo e confidente, a absoluta convicção que a paixão, quando mútua (e só neste caso) coloca o homem e a mulher no mesmo plano, isto é, em pé de igualdade em termos absolutos.


Terceira Parte – Judit


Judit é a segunda narradora feminina presente na obra e, também, a protagonista. O terceiro vértice do triângulo, que no fim se transforma num quadrado amoroso. No entanto, apesar do papel central, nem sempre o leitor consegue sentir empatia pela personagem. O discurso de Judit é, por um lado, melífluo, untuoso, usa e abusa da adulação para conseguir o que quer. O monólogo é dirigido ao amante, a quem sustenta, com o dinheiro da venda das jóias, herdadas do casamento. Mas o tom da narrativa muda radicalmente quando se refere ao passado: ao caracterizar as pessoas que cruzam o seu caminho as suas palavras tornam-se implacáveis, amargas. As atitudes que toma no passado revelam, também, a inexistência de qualquer tipo de inibição em utilizar a própria beleza ou o dinheiro para atingir os seus objectivos.


O relato prossegue, desta vez, durante uma noite de insónia, numa pensão romana, versando sobre a história do seu casamento com Péter e a vida após o divórcio. O discurso de Judit confirma aquilo que se depreende nas entrelinhas do relato feito por Péter na pastelaria, nas frases de Lázar e na intuição de Marika: que o casamento com o filho do patrão não reside em motivações sentimentais ou românticas, mas em finalidades puramente práticas.


O discurso é contundente, cínico ao mencionar daqueles a quem decidiu espoliar no passado, sem revelar o menor remorso, pena ou arrependimento: “os ricos”. Sendo-lhe mais fácil tolerar a grosseria dos novos-ricos do que o tratamento cavalheiresco, educado ou condescendente dos grandes senhores, Judit identifica na observância quase obsessiva pelas convenções, pela ordem, distinção e regras de etiqueta, uma espécie de loucura ou mania, “expressa de forma educada. “
Por outro lado, Judit mostra ser uma mulher extremamente inteligente, e facilmente adaptável a novas situações, com uma capaz de aprender quase instantâneamente. Durante o breve tempo em que convive com Lázar, enquanto dura a ocupação alemã na Hungria, Judit empenha-se em absorver conhecimento, quer através de livros quer mediante as conversas com o escritor, como uma esponja. Ou uma planta carnivora.


Judit interessa-se, tal como as outras personagens, pelas características que distinguem a mentalidade burguesa da mentalidade proletária, uma vez que teve a oportunidade de se movimentar em ambos os meios. Está convencida que estas diferenças de mentalidade residem na forma em como cada gruipo social estabelece ou estrutura as relações ou laços familiares. Para uns, a tradição e a cultura, a forma de estar é como que uma missão. Para outros, uma mera necessidade de sobrevivência, sendo os primeiros instruídos sobretudo com a razão e não tanto com o coração ou com as vísceras.


Aneste aspecto, Judit entra em forte contradição, uma vez que, se para a classe proletária o estabelecimento dos laços ou relações familiares se baseia numa mera necessidade de sobrevivência, então seria a este estrato social que seria imputável o primado da razão em detrimento das suas escolhas afectivas e das relações familiares e não o contrário. Por outro lado, Judit acredita que “ser rico” ou pertencer a uma elite social é uma questão de atitude:

Se alguém é rico, (…)sê-lo-á para sempre, eternamente, , e quem não é rico, de pouco lhe servirá ter muito dimheiro, pois nunca será um rico a sério (…) é preciso acreditar que se é rico a valer.


Neste ponto, o pensamento de Judit converge com o de Lázar que é da opinião que o processo de socialização está ligado ao processo de enculturação no sentido antropológico:


A cultura é um acto reflexo.


Neste caso, tratar-se-ia de um conjunto de respostas automáticas e socialmente aprendidas, inculcadas desde a mais tenra infância.


O abismo cultural entre Péter e Judit teria estado, segundo esta perspectiva, na falência do casamento de ambos, o qual teria ruído a partir de uma fissura estrutural. A falta de cumplicidade e impossibilidade de partilha de todo um conjunto de experiências seriam, apenas, algumas das consequências decorrentes dessa mesma falha.


A invasão da Hungria pelo Exército Vermelho e a implementação do regime comunista são temas abordados por Péter ainda na segunda parte, mas também por Judit, na terceira parte do romance. Neste caso, de forma mais exaustiva, ao que não é alheio o facto de esta parte do romance ter sido escrita muito depois da Guerra de 1939-1945 e concluída já no final dos anos 1970. Lajos, o amante, mais adiante, no epílogo, trará as conclusões finais.


Na pensão romana, Judit comenta as as alterações políticas ao criticar as expropriações a seu ver arbitrárias, a nacionalização das empresas e extinção dos ofícios. Mesmo dentro deste contexto generalizado de reengenharia social, Judit consegue fugir com as jóias, produto do casamento, que esconde das autoridades. Lajos, por sua vez, foge da polícia política após ser aliciado para a função de delator, pouco depois de o pequeno negócio do pai ter sido, também, espoliado. É, pela voz de Judit, ficamos a saber do destino e da dispersão da fortuna de Péter e da forma como Lázar vive os anos da ocupação nazi e a formula para se fazer triunfar um escritor dentro da Nova Ordem Social.. A Revolução Cultural acontece também na Hungria, à semelhança daquela que é implantada na China de Mao Tse Tung, isto é, colocando a Arte e a Literatura ao serviço da Política, ou para sermos mais exactos, ao serviço do Regime Político vigente. O que constitui um grave incómodo para um livre-pensador como Lázar. Este sente que o seu ofício deixou de o ser a partir do momento em que começa a ser mutilado pela Censura.


Judit fala do tempo em que viveu em casa do escritor, como hóspede, altura em que partilharam o pensamento e a miséria. Fala dos bombardeamentos de uma forma vívida, como se tivesse regressado à toca subterrânea da infância.


Em casa de Lázar, e apesar da ameaça das bombas, Judit sente ter encontrado um refúgio. A presença do escritor tranquiliza-a. Mas sente-se, também, desafiada, não só porque o seu companheiro de refúgio perecer imune à sua beleza, mas também por sentir um desejo irresistível de entender a mente de um ser tão complexo quanto estranho. No início, e mesmo muito depois de lhe ter perdido o rasto, Judit tem dificuldade em compreendê-lo e aos seus escritos. Até mesmo em interpretar algumas passagens das obras que este lhe recomenda. Judit demora algum tempo a adquirir conteúdos de forma apoder fazer as associações necessárias a entender todos os subentendidos nas frases dos autores que lê.


Por outro lado, Lázar sente-se um pouco na pele de Pigmalião. Enquanto que Judit sente-se fascinada pela aparentemente inesgotável fonte de conhecimento de que parece gozar o escritor. A tal ponto que, durante o relato, Lajos chega a sentir alguma insegurança, receando ver-se suplantado. Este, entretanto, exerce sobre ela o domínio perfeito porque lhe controla as finanças, ao executar ele próprio a venda das jóias com que Judit sustenta as necessidades diárias. Lázar, por sua vez, representa, na narrativa de Judit, não um amor sensual mas a volúpia do conhecimento ao empenhar-se em proteger Judit, convencido que a sua beleza a torna vulnerável, uma vez que para a maior parte dos humanos, isto é, para os feios ou para os medianamente bonitos, A beleza é uma afronta. E, no caso de Judit, que a possui em abundância, coloca-a na mira daqueles que dela querem usufruir ou comercializar. Para Lázar, também o talento, para os que o possuem em maior proporção do que a maioria, é uma provocação; e o carácter, então, um atentado. Porque a desproporção é sempre aviltante. E no caso dos seres notoriamente belos, talentosos ou íntegros, estarão mais expostos que a maoria a actos de boicote ou sabotagem, colocados em posição mais vulnerável em relação a uma esmagadora mole de seres menos favorecidos.


Em relação àqueles a quem classifica na categoria de “ricos”, Judit está convencida de que estes não são na verdade “cultos” mas parasitas de algo a que antes se chamava “cultura” como o talento ou conhecimento.


Os gregos eram cultos porque todo o povo se alegrava (...) e essa alegria é a cultura (...) mas depois esse povo desapareceu e no seu lugar ficaram apenas pessoas que falam grego...e já não é a mesma coisa.

Epílogo – Lajos, dez anos após a morte de Judit


O epílogo de A Mulher Certa incide, quase todo, nas mudanças verificadas pela evolução da situação geopolítica no Continente Europeu e Americano, com a eclosão da Guerra Fria. Nesta fase do romance é explorada a forma de vida de um proletário, dentro dos diferentes sistemas político-económicos, onde narrador e interlocutor acabam por concluir que nenhum sistema é perfeito. Desde a arbitrariedade manifesta na prepotência do Estado ao interferir na esfera privada da vida do cidadão, nos regimes ditos comunistas, testemunhada pelo narrador, até à implacabilidade da selva humana presente nos sistemas liberais das grandes metrópoles do Ocidente, com as ruas controladas pelos gangs, pelos cartéis a liderar o tráfico de droga e humano ou, com a vida dos cidadãos e as instituições controladas pelos abutres que comandam a especulação financeira.


O local da acção é Nova Iorque no final dos anos 1970, altura em que a Cidade começa a ser dominada pelas máfias locais. Lajos, ou Ede, já não trabalha como baterista, em clubes nocturnos, como no tempo em que era amante de Judit. É apenas um barman. Hoje, a prioridade é a estabilidade, garantida pela segurança que lhe confere um emprego de salário modesto mas que lhe permite ter um automóvel, sustentar a casa e a família sem grandes luxos. O mergulho no passado dá-se, desta vez, ao balcão do bar, onde serve bebidas, em conversa com um cliente. Lajos recorda a mulher húngara que foi sua amante em Roma e gastou os últimos tostões com ele, até à morte.


É, também, abordada a questão da literatura e da pseudo-literatura e o oportunismo vazio dos escritores que escrevem, ou escrevinham apenas para ganhar dinheiro vendo na escrita nada mais do que um negócio como qualquer outro. Ou seja a questão do fenómeno marginal a que está sujeita a Grande Literatura.


O próprio Lajos, não deixa de se submeter a esta lógica materialista, embora noutra vertente: à semelhança dos escritores que deixam de o ser para escrever em função do que as massas ou um determinado regime político desejam ver escrito, Lajos também se vende. Neste caso, tornou-se gigolo profissional para elevar um pouco os rendimentos familiares. Prostitui o corpo como alguns prostituem o intelecto ou a escrita, desvirtuando-a, ao esvaziá-la de conteúdo ao escrever apenas para proporcionar a evasão ou o simples voyeurismo do leitor.


Um dia, um encontro casual ao balcão do bar onde trabalha dá-nos a conhecer em que se transformou Péter. Pesar de já não ter a fortuna colossal de outros tempos, mantém a atitude de um grande senhor, confirmando a opinião de Lázar de que “a cultura é um acto reflexo”. Péter é um grande senhor, mas de uma outra era, que não consegue nadar nas águas turbulentas do capitalismo selvagem da actualidade.


Fala-se ainda de consumismo. Dos bens adquiridos compulsivamente para exibição de status, do crédito desgovernado. De como apesar do poder de compra “o proletário é ainda proletário e o senhor ainda senhor”.


No entanto, sob um determinado prisma, as coisas inverteram-se: a produção é feita em, larga escala para as massas e não para uma élite ou um grupo mais ou menos restrito de consumidores. Por isso, O senhor mata a cabeça para me fazer a mim, proletário, consumir. (Lajos)


As últimas cenas são protagonizadas por Péter e Lajos, os dois homens mais importantes na vida de Judit: um que lhe proporcionou a mudança de estilo de vida, o portal de acesso a um mundo diferente, que antes apenas entrevia; e o outro, aquele que lhe proporcionou o prazer no sentido mais absoluto do termo. Ambos partilham a memória da mulher a cuja intimidade acederam, um dia. A conclusão a que chegam é a de que o amor é a única força motriz susceptível de colocar homens e mulheres em pé de igualdade e cuja lembrança é capaz de unir os seres mais improváveis. Uma força absolutamente revolucionária na sua essênncia. E, por isso mesmo, temida.


Caminhávamos como dois velhos amigos numa intimidade profunda que só pode existir entre dois homens que estiveram na cama com a mesma mulher (...). E esta é, na verdade a verdadeira democracia.




Claudia de Sousa Dias

2 Comments:

Blogger Ricardo Antonio Lucas Camargo said...

O que me chama a atenção é que, a partir do clássico tema do "triângulo amoroso", o autor veio a fazer uma reflexão sobre o sectarismo e a instrumentalização do ser humano pelas facções e, curiosamente, como o Proust de "À sombra das raparigas em flor", traz-nos a temática das frustrações diante das grandes expectativas. O texto que escreveu, Cláudia, revela-me uma espécie de "femme fatale" que, entretanto, coloca em questão o próprio conceito de "respeitabilidade" e a emergência das paranóias a partir dos sectarismos. Euclides da Cunha ofertou-nos um dos mais pungentes retratos do fanatismo no seu documento "Os sertões", bem como da truculência empregada pelo exército republicano, educado nos princípios filosóficos do positivismo comteano, na repressão dos seguidores do místico Antonio Conselheiro. Na literatura brasileira, é o mais forte retrato do sectarismo.

1:52 AM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Segundo me disseram, a tradução literal do título do livro é: "A Verdadeira". Em vários momentos da narrativa, Péter refere-se a Marika como "a verdadeira", querendo dizer a legítima. Mas tarde, esse conceito é relativizado chegando depois à conclusão que que não existe "a verdadeira" ou "o verdadeiro" - Judith também se refere da mesma forma a Péter - assim como não existem relações perfeitas. Nem sistemas económicos ideais ou perfeitos.

1:12 PM  

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