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Monday, November 08, 2010

“2666 de Roberto Bolaño (Quetzal) "Livro III - A Parte de Fate"




Desta vez, o papel central é atribuído a um jornalista norte-americano, encarregue de fazer a cobertura de um acontecimento desportivo de grande importância para a população do bairro de Harlem, Detroit. Mas cedo Fate se esquece do combate de boxe, protagonizado pelo pugilista negro sobre o qual deve incidir a matéria e interessa-se pelos crimes, envolvendo uma assustadoramente elevada taxa de assassínios acompanhados de violação daquela pequena cidade no Norte do México. O desejo de ver publicado o resultado das investigações é-lhe, no entanto, dificultado por um motivo surpreendente: a revista para a qual escreve destina-se ao público afro-americano e as mulheres assassinadas são, na sua maioria, mexicanas.




As primeiras frases desta terceira parte de 2666 colocam imediatamente o leitor, mais uma vez, em contacto com o pensamento caótico do protagonista no qual predomina a ideia de morte e a sua chegada, súbita e inesperada, como se fosse uma partida do destino (Fate, em inglês). A chegada da Morte é como um cataclismo que lhe leva repentinamente a mãe e uma vizinha, deixando-o como que absorto, anestesiado devido ao choque, o que faz pensar que Bolaño projectava de forma subtil e indirecta o drama pelo qual estava a passar e que se pode detectar nas entrelinhas: a doença e subsequente alteração no quotidiano e na relação com as pessoas mais chegadas.




Mas após o choque inicial, a atmosfera sombria das primeiras cenas desta terceira parte vai-se atenuando e o protagonista acaba por adoptar uma atitude estóica e enfrentar a mudança de hábitos e cenário como um desafio.




O trabalho atribuído a Fate, no Norte do México, é encarado por este como uma terapia. Chegado ao local, tenta conciliar a reportagem com a investigação criminal e a escrita a que se junta uma pitada de romance, uma atracção sexual inesperada e contida pela reserva do jornalista. Ao chegar ao México, Fate entra em contacto com o Professor Amalfitano e a filha, continuando de algum modo a história do volume anterior. Mas não sem antes se dedicar à investigação daquele país e fazer uma espécie de “cura espiritual”. Uma das cenas de maior importância neste volume e mesmo da obra na sua totalidade é a do sermão do pastor evangélico cuja acutilância denuncia uma vontade de ferro e sólidas convicções, apesar de expressas sob a forma de veludo posto nas palavras e na tonalidade da voz. O pastor que realiza o serviço fúnebre da mãe de Fate, apesar de se dirigir à população afro-americana de Harlem fala de temas universais que ultrapassam em muito a população daquele bairro. De valores profundamente enraizados no humanismo de pendor socialista, o Reverendo não hesita em apontar algumas chagas sociais que afectam principalmente as sociedades urbanas, criando acentuados contrastes e incomensuráveis disparidades económicas. No discurso do sacerdote evangélico estão contidas cinco palavras-chave ou directrizes que tenta incutir na mente dos seus fiéis. São, também, cinco as palavras-chave à volta das quais se desenvolve o romance: perigo (criminalidade, insegurança), dinheiro (corrupção), comida (subsistência); estudo (literacia) e utilidade (desenvolvimento sustentável).




Em Santa Teresa, Oscar Fate sentirá o cheiro do perigo que paira no ar como uma nuvem de gás tóxico. O dinheiro e a distribuição assimétrica da riqueza bem como a falta de solidariedade entre as classes sociais, a exuberância da comida local mexicana, em contraste com a pobreza local, servem de pretexto para aproximar algumas das figuras centrais do romance. Tudo conspira para que Fate escreva algo que interessa de sobremaneira à população local e sirva também de denúncia como uma das maiores violações dos direitos humanos no Ocidente.
A tudo isto junta-se a colaboração com peritos em investigação científica e criminal credenciados para tentar descortinar a fronteira entre o reino das aparências ou das sombras e vislumbrar, ainda que minimamente, as cores da realidade. Toda a narrativa parece apontar para o primado do conhecimento como contraponto à ignorância e, assim, separar o trigo do joio e dar o nome as coisas: discernir, classificar, avaliar e, por fim, julgar.




A metáfora das estrelas, usada pelo sacerdote em Harlem, pouco antes da viagem de Fate - e, mais tarde, na quinta parte, na história de Archimboldi – remete para Platão e para a alegoria da caverna quando se sugere que “a proximidade do Sol ilumina mas também ofusca”, dando a entender que quanto mais nos aproximamos da Verdade, menos vemos e maior se torna o risco de sermos por ela destruídos.




Isto porque segundo algumas das personagens com quem contracena Fate durante as suas investigações acreditam, quea maioria dos criminosos da História esteve sempre integrada nas estruturas do poder, acabando regra geral, por serem olhados como um mal necessário por aqueles que estão “de fora” e não lhes conseguem fazer frente.




Esta será a acepção negativa do utilitarismo relacionado com a última das cinco palavras chave do sacerdote afro-americano. A segunda acepção da palavra utilidade tem a ver com aquela que não se vê no imediato, mas apenas no longo prazo. Trata-se da crença de que a capacidade para avaliar a utilidade de algo a longo prazo só pode ser dada por algo como a cultura, o conhecimento, o oposto da ignorância – isto é, em franca ligação com o quarto item do quinteto de directrizes do sacerdote evangélico de cariz socrático-platónico, com um toque do pragmatismo aristotélico. O pastor chega, inclusive, a enfatizar a importância da literatura e do conhecimento como motor do desenvolvimento humano e do homem como ser social.No entender do pastor, a cultura confere sentido crítico e capacidade de discernimento. Essa é a sua verdadeira utilidade.




Antes da partida para o México e em entrevista a um ancião que seria o último membro do PC americano, Fate depara-se com um frágil octogenário fiel admirador de Karl Marx e acérrimo crítico de Estaline. Um homem culto, profundamente humanista, que não se enquadra em sociedades predadoras, lúcido e despojado.




Já em viagem, Fate interessa-se pelas questões que rodeiam a natureza do crime e do criminoso, pelos métodos de investigação criminal, em diálogo com um antigo membro do FBI reformado, discorrendo sobre arquétipos e tipologias dos diferentes crimes, sobre a imutabilidade da natureza humana desde as mais antigas civilizações...diálogos reflexivos que servem de base para explicar o sucedido em Sonora. Segundo o ex agente, a criminalidade não teria aumentado nos últimos séculos, mas teria apenas passado a ser mais notificada devido à imprensa e aos media, passando a chegar a todo o lado. (vide pág 310/311). E os mexicanos parecem, segundo o mesmo investigador, fechar ou insistir em fechar os olhos à realidade que os circunda.
O detective, ainda em conversa com Fate, é da opinião que aquela sociedade está fora da sociedade, todos, absolutamente todos são como os antigos artistas de circo.




E que os crimes tem assinaturas diferentes.







(…)




aquela cidade parece pujante , parece progredir de alguma maneira, mas o melhor que podiam fazer era sair uma noite para o deserto e atravessar a fronteira, todos




Ao chegar a santa Teresa, Fate toma contacto com um colega de profissão e fica impressionado com a indiferença, o desprezo, da opinião pública face às vítimas confirmando a opinião do colega.
Ao encontrar-se, por acaso, com Amalfitano e Rosa, Fate apercebe-se de que esta é uma adolescente que se expõe, sem se aperceber, a situações de perigo devido ao carácter de algumas pessoas com quem convive. E, também, de que nenhuma mulher jovem ou bela está a salvo naquela cidade. Fate está consciente, ao frequentar a noite em Santa Teresa, quão fácil é para uma adolescente desde sempre protegida pelo meio familiar rodear-se de amizades duvidosas e ser arrastada para o submundo onde a morte espreita.




É com um sentimento de aviltante surpresa que se apercebe também mentalidade local através das ultrajantes anedotas que circulam nos bares e nos cafés sobre as mulheres e o lugar que lhes destinam naquele tipo de sociedade: da cama para o fogão e vice-versa.

Uma vida independente para uma mulher parece ser, ali, a maior das utopias. Ou aberrações.

CSD

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