“A Insuperável Mudez da Borboleta de Luísa Monteiro” (R-E-D-I-L)
Este livro, com a belíssima capa que
contém a réplica da pintura “Sappho” do pintor francês Charles
Mengin (o original, de 1877, encontra-se patente na Art Gallery em
Manchester, para quem quiser visitar) inclui três novelas de
temática sáfica, embora duas delas possam facilmente ser
convertidas em romance: uma delas de carácter épico-lírico e
histórico e outra de componente surrealista e modernista, inspirada
na vida de uma escritora-poeta portuguesa da primeira metade do
século XX, caída na obscuridade.
A Autora, Luísa Monteiro, escritora,
investigadora e docente, é um ser multifacetado o que obriga a que, apesar de várias das suas obras terem já aqui sido comentadas, se torne necessário que o seu perfil seja alvo de constantes
actualizações. Para além de LM ter já um currículo significativo
como jornalista de investigação, profissão a que se dedicou com
afinco até finais do século anterior, é alguém que publica ficção
desde idade muito precoce (seis anos de idade, tendo optado pelo uso
de pseudónimos desde os nove e voltado a ligar o próprio ortónimo
à ficção desde os trinta). Até à data de lançamento deste
título tinha já vinte e três títulos publicados, tendo este
surgido após um interregno de cinco anos, período durante o qual se dedicou
sobretudo à área da investigação no campo das Humanidades. Hoje
em dia, divide o tempo entre a investigação (UNL) a docência
(Universidade de Évora) e a escrita ficcional (drama, poesia,
prosa). Assina, ainda, uma coluna no jornal on-line “Económico” a
partir da qual difunde a sua visão do mundo em formato de crónica
sobre temas da actualidade.
No que respeita à obra de que hoje
falamos, A Insuperável Mudez na Borboleta é uma
experiência estética que consiste em três histórias de amor
trágico, contadas por um ponto de vista exclusivamente feminino, e
revestidas do páthos das antigas peças clássicas.
1. A primeira narrativa, aquela que dá
o título ao livro, consiste na evocação lírica de um amor no
passado criando, através do nome inventado pela narradora e por ela
atribuído à figura amada – Líbia. Trata-se de uma
intertextualidade com a poesia de Catulo, em cujos poemas eróticos o poeta romano se dirigia à sua musa, Lésbia, de onde a narradora apenas faz
cair um fonema e modifica uma vogal, tornando-a mais alta. À
narradora e protagonista já não resta muito tempo de vida, pois
está no último estágio de uma doença terminal. Recorda, então, um
episódio especialmente belo dos últimos anos em que deu aulas no
liceu a uma turma de adultos.
A prosa é entremeada com poesia, onde
o elemento do Belo tem primazia sobre os demais, sobrepondo-se e triunfando invariavelmente sobre o Absurdo, o Ridículo ou o Grotesco, como é característico na ficção de Luísa Monteiro.
O discurso da narradora torna-se
pungente na evocação da figura de “Líbia”, cuja descrição
física e postura faz lembrar as mulheres da Bíblia – Rebecca,
talvez, a carregar a ânfora ou cântaro com que dá de beber a
Isaque, junto ao poço no deserto – no gesto de equilibrar os livros na anca como as
mulheres outrora as ânforas nas suas idas e vindas aos poços para
se abastecerem de água. A imagem traz consigo uma bela metáfora que
associa a ânsia, a busca do Conhecimento à sede da água que mantém
a vida. A fronteira entre prosa e poesia em Luísa Monteiro torna-se
cada vez mais ténue, facto que é particularmente evidente neste
livro como podemos ver pelo excerto que se segue:
«Porque choras, Líbia? Foge desse
canto
e aninha-te no meu peito
assim...as paredes são frias, amor.»
Um dos aspectos mais extraordinários
da primeira história deste livro é o progressivo depurar da Palavra (e do discurso), num
minimalismo crescente, à medida que a história
se aproxima do seu desfecho. As palavras supérfluas como que “caem”
e são escolhidas aquelas que dizem mais, mas ocupam o menor
espaço possível, na folha de papel, ou que impliquem o menor esforço
vocal. Aqui a fusão entre o discurso narrativo e discurso poético é
total.
2. A segunda história tem, mais uma
vez um título modalizado por um advérbio, “A Invencível
Confissão de Úrsula”. Poderia ser um romance histórico de grande
valor literário. Mas para já, é apenas um conto que traduz a
reconstituição breve de um episódio histórico, cuja narrativa se
situa no tempo da invasão da Europa pelo Hunos, em plena fase de
desagregação do Império Romano. A história fundamenta-se num
facto ocorrido em Colónia, no ano de 383 d.c., conhecido como “o
massacre das onze mil virgens”. A trama ficcional nasce de um facto
inusitado, a casualidade de alguém que habita a época contemporânea
encontrar um manuscrito antigo no meio do espólio de um Museu,
dentro de uma cripta, à semelhança do que acontece nos romances de
Umberto Eco, que faz sempre deste género de descoberta algo de
romanesco. Esta é uma característica comum a todos os apaixonados pelo
Conhecimento e pelo desejo de trazer à luz um passado esquecido a
que Monteiro não é excepção. As circunstâncias desta descoberta
chegam ao leitor num prólogo com o sugestivo título de
“Advertência”:
«Adverte-se que a narrativa que se
segue não é ficção. Apenas o título é da minha Autoria.
Trata-se de uma fixação de textos antigos em latim descobertos por
Gumercindo Nunes, o avô de Teresa, a minha companheira de gabinete.
Quando descobriu que eu tinha tido latim, logo após o ensino
primário e até ao final do curso na Universidade Católica,
disse-me que tinha em casa uns papéis velhos que lhe pareciam ser em
latim muito recuado, deixados pelo falecido avô.
Gumercindo fora funcionário do Museu
de Arte Antiga de Lisboa e na altura (que Teresa não soube precisar
quando) em que trasladaram os restos mortais de Santa Auta para
aquele lugar, descobriu entre as ossadas um amontoado de folhas
escritas. Guardou-as e ocultou-as de todos os olhares (uma vingança
por ter sido obrigado a aposentar-se). Teresa herdou-os e nunca teve
curiosidade em saber o que continham. Foi a minha paixão por
espólios antigos e documentos esquecidos que a fez procurar esse
tesouro inútil da família.
De Santa Auta, sabia apenas que fora a
rainha D. Leonor, viúva de D João II, quem pediu o corpo ao
Imperador Maximiliano e que trouxe em cortejo Auta para Portugal, em
1751.
Deste espólio, algumas folhas são
autorizações de Roma, outras contém advertências com selo papal e
real e outras (que tive de ordenar) dizem respeito a uma narrativa,
ao que tudo indica de Santa Úrsula. Desta santa, existe uma relíquia
na Sé de Évora, que visitei no passado mês de Junho de 2012. E,
confesso, sem conseguir evitar as lágrimas.
Tornar públicos estes textos tem um
desejo subjacente: juntar os restos mortais de ambas. Mas se isso não
for possível, a quem de direito, ao menos que conste este testemunho
para a História.
O texto tem algumas partes
completamente ilegíveis. A linguagem foi adaptada para a escrita
corrente. Os originais regressaram à família Nunes.»
A voz da narradora da época histórica traz a
lume um amor sublime num momento crucial em que a Europa se desintegra
mediante as invasões bárbaras levadas a cabo por povos especialmente violentos e
sanguinários, marcando o fim de uma era e o desaparecimento de uma
civilização. O final trágico lembra a luta heróica das Amazonas
na Ilíada de Homero, dizimadas durante o impiedoso cerco de Tróia.
A intemporalidade da história, se a deslocarmos para o Oriente dos
nossos dias, também se espelha num exército de mulheres que luta ainda hoje, corajosamente, contra os Hunos do século XXI e ameaçam uma
Europa fragilizada.
3. A terceira história, “A poeta que
amou ciganas e fadas marrecas” é inspirada na vida da poetisa
Judith Teixeira, contemporânea de Florbela Espanca, silenciada pelo
conteúdo sáfico dos seus versos, rejeitados por uma sociedade
intolerante e incapaz de apreciar a beleza luxuriante dos seus
versos. A história está comprimida para caber no formato de uma
novela, mas foi originalmente pensada para ser uma biografia
romanceada da poetisa, onde as personagens dos seus poemas saltam de
dentro da prosa de Luísa Monteiro. Inúmeras intertextualidades irrompem do texto, sobretudo Carroll (e o mundo das maravilhas que se abre
com o chá de palavras da cigana Urdella) e Woolf (na secção Lappin
et Lappinova). Surrealismo num texto de grande teor dialógico, expresso em vozes
que se interrompem, fundem se atravessam, desvanecem e voltam a
materializar-se como fantasmas, espíritos que se movimentam no vácuo.
É assim a escrita de Luísa Monteiro.
De uma estranha beleza. Desconcertante até à última frase. A
insuperável mudez de borboletas silenciadas por uma sociedade
patriarcal, só se supera pela audácia de um ser discreto, que voa
com as asas transparentes da formiga-de-asas, como o génio, da arte
do domínio da palavra por Luísa Monteiro.
Cláudia de Sousa Dias
28.10.2014
5 Comments:
a partilha e os comentário no mural da Autora Luísa Monteiro no facebook:
Luisa Monteiro
18 h ·
... critica acabadinha de fazer, vinda de um cerebro e sensibilidade impares, actualmente ao serviço do King's College, Claudia de Sousa Dias. Ao lado de criticos como Joao Gaspar Simoes e Eduardo Prado Coelho, so pode figurar o nome de Claudia de SD -- e ninguem disso duvide. Querida Claudia, a da palavra genial. Para ti, as minhas maos todas a transbordar de afecto e gratidao.
HÁ SEMPRE UM LIVRO...à nossa espera!: “A Insuperável Mudez da Borboleta de Luísa Monteiro”...
Blog sobre todos os livros que eu conseguir ler! Aqui, podem procurar um livro, ler a minha opinião ou, se quiserem, deixar apenas a vossa opinião sobre algum destes livros que já tenham lido. Podem, simplesmente, sugerir um livro para que eu o leia! Fico à espera das V. sugestões e comentários! Agr…
HASEMPREUMLIVRO.BLOGSPOT.COM
Claudia De Sousa Dias
18 h · Gosto · 1
Claudia De Sousa Dias Estou que não consigo fechar a boca.... João gaspar Simões! Eduardo Prado Coelho!!!
5 h · Editado · Gosto · 1
Claudia De Sousa Dias Até fiquei sem ar!
18 h · Gosto · 2
Nuno Almeida *guarda blogue*
18 h · Não gosto · 2
Maria Quintans brava, Luisa querida
15 h · Não gosto · 2
Ana Ramalho hummm, depois do sorriso de Percival quero mais mais Úrsula e Auta!
15 h · Não gosto · 2
Ana Cristina Madeira Parabéns, querida Luísa!
8 h · Gosto · 1
Partilhas a partir do mural de Luísa Monteiro:
Marta Vaz partilhou uma ligação.
14 h ·
Mostrar anexo
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Tu, Luisa Monteiro, Zaclis Veiga, Sandro William Junqueira e 3 outras pessoas gostam disto.
Claudia De Sousa Dias
Josefa Lima
16 h ·
Um Livro Insuspeitável! Arrojado! Espantosamente Cru e Simultaneamente Delicado... non avata palura de o Ler...
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Tu e Luisa Monteiro gostam disto.
Josefa Lima “… Pôe no regaço a toalha branca
o teu beijo salgado
e um pouco de vinho tinto....Ver mais
16 h · Gosto · 1
Dois "gosto" no meu próprio mural...
E cá está ela! Finalmente no blogue. Maravilhosa na sua insuperável mudez. Mas jamais silenciada.
HÁ SEMPRE UM LIVRO...à nossa espera!: “A Insuperável Mudez da Borboleta de Luísa Monteiro”...
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Teresa Sá Couto e Ana Campos gostam disto.
E vários no antepost deste blogue:
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Madalena Ribeiro, Teresa Sá Couto e Ana Campos gostam disto.
Madalena Ribeiro Estou fascinada com Luísa Monteiro depois de ler a tua esplêndida resenha. Mal tenha um tempinho, vou ler a autora
Beijinhos, bom sábado
1 min · Não gosto · 1
Claudia De Sousa Dias
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