“Obra ao Negro” de Marguerite Yourcenar (Dom Quixote)
Tradução de António Ramos Rosa,
Luiza Neto Jorge e Manuel João Gomes
Para quem não está familiarizado com
a obra da Autora, Marguerite Yourcenar estreou a sua
actividade literária em 1929, com a publicação de Alexis ou le
Traité du Vain Combat. Publicou dez anos depois Le Coup de
Grace (O Golpe de Misericóridia) que foi adaptado ao cinema pelo
cineasta Volken Scholendorff. No início da década de cinquenta do
século XX publica Mémoirs d'Hadrien (Memórias de Adriano)
uma das suas obra-primas. A outra será esta de que hoje aqui
falamos, Ouvre au Noir (Obra ao Negro). Yourcenar
passou a ser membro da Academia Francesa em 1981. Terminou os
seus dia em retiro numa ilha da Costa Leste do EUA.
Nesta edição da Dom Quixote está
incluída uma nota explicativa da Autora à laia de posfácio, com o
intuito de esclarecer os leitores acerca do processo de construção
da narrativa, as fontes consultadas, as correntes de pensamento, as
principais influências que sofreu durante o processo de concepção
de uma obra de tal magnitude, abrangendo um dos períodos mais
conturbados da História da Europa. O romance é assim o resultado do
cruzamento de várias correntes filosóficas, artísticas, concepções
religiosas que marcaram o fim da Idade Média e transitaram ainda
durante bastante tempo para a época seguinte apesar do desabrochar
do Renascimento. No romance está já patente a ascensão fulgurante
da Burguesia e o peso do poder este grupo social que emergiu das
camadas mais abastadas das classes populares começa a fazer-se
sentir na estrutura social que está a deixar de ser tripartida, isto
é, a deixar de ser composta unicamente pelo Clero, a Nobreza e o
Povo. Ou seja, em termos económicos despontam os tentáculos do
mercantilismo e, no aspecto religioso, está-se já no período da
Contra-Reforma a coincidir com a proliferação das mais diversas
seitas de cariz protestante, cuja dissidência e rivalidade acirrada
marcavam sobretudo o ambiente social da Europa Central e do Norte.
A autora começa por introduzir a
epígrafe de Pico della Mirandola, a dar o mote da narrativa:
«Não te dei, ó Adão nem rosto
nem lugar que te seja próprio,nem qualquer dom particular, para que
teu rosto, teu lugar e teus dons os desejes, os conquistes e sejas tu
mesmo a possuí-los. Mas tu, que não conheces qualquer limite, só
mercê do teu arbítrio, em cuja mãos te coloquei, te defines a ti
próprio. Coloquei-te no centro do mundo para que melhor pudesses
contemplar o que o mundo contém. Não te fiz nem celeste nem
terrestre, nem mortal nem imortal, para que tu, livremente, tal como
um bom pintor ou hábil escultor, dês acabadamente a forma que te é
própria.»
A forte perturbação sofrida em todo
o tecido social da Europa que é característica desta época
conturbada, vê nascer do caos o movimento Humanista, corrente
filosófica que pretenderá substituir a visão Teocêntrica do
Universo pela visão Antropocêntrica a qual vemos implícita na
epígrafe, cuja ideia principal é a de que é o homem que se acaba a
si mesmo, ao completar a obra da natureza (ou a obra divina),
estimulando o bom desenvolvimento do corpo e espírito. Também, na
mesma epígrafe, a ideia de que o entendimento, o intelecto superior
atribuído à alma humana lhe confere um sentido acrescido de
responsabilidade, cabendo ao mesmo Homem o papel de preservar o mundo
tal como lhe foi dado ou simplesmente destruí-lo quer seja por
avidez quer por inércia.
Posfácio da Autora
«O romance que
se acaba de ler tem, como ponto de partida, uma narrativa de
cinquenta páginas, D'aprés
Dürer publicada juntamente com duas outras novelas, também
de fundo histórico, no volume intitulado La
Mort conduit l'attelage, ed Gasset, 1934. Essas três
narrativas unificadas e ao mesmo tempo contrastantes, mercê de
títulos que lhes foram posteriormente aplicados – D'aprés
Dürer, D'aprés Greco, D'aprés Rembrandt –, não eram
mais afinal que fragmentos isolados de um enorme romance concebido e
parcialmente escrito entre 1921 e 1925, entre os meus dezoito e vinte
anos.
Do que poderia
ter sido um grande fresco romanesco, abarcando vários séculos e
vários grupos humanos ligados entre si quer pelos laços de sangue
quer pelos do espírito, nasceu o primeiro capítulo, uma quarenta
páginas inicialmente, intituladas “Zenão”. Esse romance,
demasiado ambicioso foi sendo escrito a par com os primeiros esboços
de uma outra obra que mais tarde viria a chamar-se Mémoirs
d'Adrien (Memórias de Adriano). Renunciei provisoriamente
a ambos por volta de 1926 e os três fragmentos já citados
transformaram-se em La mort
conduit l'atellage, vieram a aparecer, quase sem emenda, em
1934, apenas acrescidos no que respeita ao episódio de Zenão, de
uma dezena de páginas muito mais recentes, um breve esboço do
encontro de Zenão com Henrique Maximiliano em Innbrück, na Obra
ao Negro, agora apresentada.
(…)
A primeira parte de “Obra ao
Negro” segue de muito perto o esquema de “Zenão” - D'aprés
Dürer de 1921-193; a segunda e a terceira parte são inteiramente
deduzidas desse texto escrito há já quarenta anos.»
Segundo a Autora, o
título de 1934, apresenta aquelas três narrativas como se fosse
quase um hipertexto da obra dos três pintores, o que não
corresponde exactamente à verdade. Isto porque “D'aprés Dürer”
inspirada na obra do pintor, intitulada “Melancholia”, cuja
figura central, de aspecto sombrio, é provavelmente a incarnação
do género humano que se apresenta perdida em reflexões, no meio dos
seus cilindros, tal como Zenão, sendo aquilo a que um leitor mais
purista classificaria ser uma história mais flamenca que alemã. Mas
para a Autora já à data da publicação de Obra ao Negro,
essa afirmação corresponderia à verdade nessa altura, mais do que
na primeira narrativa, dado que a segunda e terceira parte, então
inexistentes, se passam na verdade, na Flandres e os temas de Bosch e
Brueghel, por exemplo, que ilustram a desordem e o horror do mundo,
invadem a segunda versão da obra, facto que não se encontrava no
primeiro esboço.
A obra trata da história de uma
dissolução, de um sistema económico (o feudalismo) que dará
origem ao mercantilismo a par da génese das sociedades industriais
tal como as conhecemos hoje em dia, tal como o tecido social que a
compõe. Trata-se da dissolução de um regime, da morte de uma Era
contada em três movimentos, tal como numa tragédia em três actos,
ou da ascensão, estagnação e desaparecimento (ou aniquilação) de
um homem que representa uma forma de pensar independente, uma voz
crítica. Mas o final representa também a alvorada de uma nova ordem
mundial.
As convulsões sofridas pela Europa que
nos são escritas em “A Obra ao Negro” são de cariz semelhante
àquelas que são sofridas no terreno, sempre que há um contexto de
Guerra disseminada por vários pontos do continente. Assim, no século
XVI, assistimos a um processo de transformação profunda muito
semelhante àquele que sofreu a Europa com as duas Grandes Guerras do
Século XX (de lembrar que o livro começou a ser escrito a partir do
interregno entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial tendo sido
publicado apenas já depois de a última ter terminado). Por outro
lado, torna-se inquietante observar, quando lemos uma obra como esta,
que muitos dos sinais que antecedem, normalmente um contexto de
Guerra generalizado na Europa ocorrem nos nossos dias, tendo nos
bastidores os mesmos agentes que determinam as condições económicas
e sociais em contextos semelhantes, com o objectivo de proteger uma
classe dominante mas minoritária que nem sempre estará àfrente de
um Estado mas que quase sempre o controla, directa ou indirectamente.
É o caso do banqueiro que empresta dinheiro ao Rei, por exemplo.
Assistimos na “Obra ao Negro” uma certa modificação naquilo que
compõe o tecido social das elites com as ascensão da burguesia, com
tudo aquilo que tem de positivo (o desenvolvimento científico e o
apoio às artes, libertação da servidão) e de menos positivo (uma
maior dependência do estado do sector financeiro).
O protagonista de Obra ao Negro
é o filósofo Zenão, um sábio que é movido pela inquietude
interior que o impele a procurar um mundo onde os valores maiores
sejam a liberdade de pensamento e a procura e criação de
conhecimento. O caminho percorrido pelo filósofo é espinhoso, dada
a conjuntura de instabilidade generalizada um pouco por toda a parte,
mas fá-lo. O preço a pagar é altíssimo: o desenraizamento, o
apagamento social e por fim, a própria vida. É obrigado a
prosseguir o seu caminho na errância, encontrando uma estabilidade
temporária na Escandinávia, mas nem aí está assegurada a
liberdade completa de pensamento, nem de acção, fruto das
rivalidades de todos os que ambicionam a sua posição. Na segunda
parte, Zenão refugia-se no anonimato e na clandestinidade para
prosseguir a sua busca de conhecimento que pretende aplicar em nome
do bem comum até à dissolução final da matéria do seu próprio
corpo. A morte apanha-o à traição, precisamente na altura em que
está mais próximo de chegar à sua “opus nigrum”, ou seja, de
entender o processo de desconstrução dos modelos ou das Formas, se
quisermos usar o termo platónico, para propiciar um novo paradigma
de concepção do Mundo. Mas uma vez está patente que o conhecimento
da verdade implica uma busca, uma eterna demanda através de um
caminho interminável, em direcção a um ponto de fuga onde esta
parece estar posicionada, sempre na linha do horizonte. É por essa
razão que Zenão, ao identificar-se com essa mesma busca,
personifica a figura do Homem Intemporal.
Estrutura e Progressão da Narrativa
A acção do romance é, como se disse,
tripartida. Há um primeiro momento de ascensão onde Zenão se
movimenta, num cenário de transformação constante – A Vida
Errante –, um segundo momento, em que atravessa uma fase de
relativa estabilidade, mas fechado em si mesmo, obrigado a permanecer
incógnito, situação que contém em si o germe da entropia - A
Vida Imóvel – e, por último a fase da dissolução, da
paralisação total, do accionar do processo de entropia – A
Prisão.
Obra ao Negro poderia
muito bem tratar-se de uma trilogia com os três volumes publicados
separadamente tal a densidade da história que suga a atenção do
leitor como um buraco negro, obrigando a uma leitura lenta, reflexiva
e concentrada.
Em termos gerais, o que Marguerite
Yourcenar descreve ao longo deste livro tripartido, que
ultrapassa o devir e o questionamento existencial de Zenão, que é
o próprio drama existencial da Europa num cenário caótico de um
cisma religioso, de onde emergem seitas dispostas a matar e a morrer
pela sua verdade que crêem absoluta. Enquanto isso, nos bastidores,
de forma sub-reptícia a riqueza aparentemente infinita da banca
seduz os Reis que perseguem objectivos expansionistas, ao
subsidiar-lhes as guerras que lhes satisfazem o desejo insaciável de
poder. A burguesia toma o freio nos dentes e ameaça rivalizar com a
aristocracia pela posição dominante da sociedade. Afinal a
História, com todas as suas dissoluções e reedificações, nada
mais é que a história da circulação das elites, que mexem as
forças ocultas desencadeadores do caos que gera a mudança.
No meio de tudo isto, Zenão é um
homem de especial visão e talento, mas tem uma relação que se
torna controversa face ao poder a partir do momento em que decide
defender a sua independência acima de tudo. A força motriz do
romance é precisamente a oposição entre o saber e o
poder, duas forças que,
no romance de Yourcenar, se encontram quase sempre em
conflito. O confronto final significará que um deles terá
forçosamente de sair derrotado. Já no cárcere, Zenão assiste à
dissolução da Europa que sempre conheceu, perecendo junto com ela,
mas mantendo o seu sonho intacto: o conhecimento como motor do
desenvolvimento a sua única utopia.
“Obra ao Negro” é assim como um
fresco imenso sob a forma de discurso que retrata uma Europa em
convulsão devido a um choque ideológico, religioso, político,
económico e social como pano de fundo, e que transmite um ethos
não só de desajuste no discurso do narrador sempre que se refere a
Zenão, mas sobretudo de perseguição de um fim último: o da total
liberdade de pensamento e expressão que foi desde o final da Idade
Média até ao início do século XXI a Grande Utopia do Sonho
Europeu.
Cláudia de Sousa Dias
6 Comments:
Ainda postei hoje de manhã e as reacções já se fizeram sentir:
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Comentários:
Dalila Sepulveda:
Gostei tanto deste livro claudia obrigada por me recordares
há 6 horas · Não gosto · 1
Paulo Manuel Jesus:
Esta margarida fascinou-me com um livro que me marcou adriano de seu nome e as suas memórias. Simplesmente soberbo. Inesquecível.
há 4 horas ·
Anabela Soares:
Um dos livros da minha vida. Adoro-o quase tanto como à citação do Pico della Mirandola, que marca a autonomização do homem, no alvorecer do Renascimento e do Humanismo. Boa apreciação, como sempre!
há 3 horas ·
Outras opiniões sobre o livro:
http://minhaliteraturaagora.blogspot.co.uk/2009/08/para-ler-obra-em-negro-de-marguerite.html
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Obrigada Madalena:
Mais um da infindável lista em falta… De facto, os "reis", seja qual for a forma de governo, muitas vezes se deixam manipular como marionetas perante os donos do dinheiro.
Beijinhos J
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