“A Peregrinação de Barnabé das Índias” de Mário Cláudio (Dom Quixote)
Mário Cláudio nasceu a 6 de
Novembro de 1941, no Porto. Licenciou-se em Direito pela Universidade
de Coimbra. Foi bolseiro do Instituto Nacional de Investigação
Científica no London College University, lendo lá obtido a
pós-graduação do Master of Art in Library an Information Studies.
Foi bibliotecário, funcionário superior da Delegação Norte do
Ministério da Cultura e membro da Comissão Instaladora do Museu
Nacional da Literatura. Começou a escrever nos anos 1960. Hoje, a
sua vasta obra está dispersa pelos vários géneros literários:
poesia, romance, conto, novela, teatro, crónicas, literatura
infanto-juvenil, etc. É autor de várias biografias romanceadas,
nomeadamente A trilogia da Mão que engloba as obras Amadeo
(sobre Amadeu Souza-Cardoso), premiada com o Grande Prémio Romance
Novela, promovido pela Associação Portuguesa de Escritores, em1984
e Guilllermina (sobre Guillermina Suggia) que arrebatou o
Prémio Antena 1 da Radiodifusão Portuguesa (1986) ficando, depois,
completa com o volume Rosa. Recebeu
também o Prémio Américo Lopes de Oliveira em Fafe
(1993), atribuído ao romance Tocata para dois clarins.
Peregrinação de Barnabé das
Índias é uma obra complexa, cuja escrita é inspirada no
estilo barroco, à semelhança dos poetas cronistas do século XVII.
A trama consiste num relato que congrega a memória de Vasco da Gama,
já na velhice, recordando a viagem à Índia, diante das cinzas do
borralho de um Inverno alentejano particularmente gélido, num
período em que a Europa atravessava uma infindável vaga de frio.
Estas memórias de Vasco da Gama são enriquecidas e complementadas
com a descrição do cenário e condições de vida das gentes da
Nazaré naquele período, particularmente adversas. A narrativa fica
a cargo de duas vozes que se complementam: a de Vasco da Gama,
contada na terceira pessoa, mas por um narrador omnisciente que nos
dá a conhecer o ponto de vista de um velho almirante, o qual faz
uma retrospectiva da própria vida. Mário Cláudio utiliza
aqui de forma magistral a técnica do flashback (analepse) ao
recuar até à infância de Vasco da Gama, abordando a hipótese de
uma suposta origem judia da família do navegador, que o teria
colocado em posição vulnerável na Corte e na mira da Inquisição,
mercê da sua grande fortuna, facto que o ajudaria a “motivar” a
saída do país. Pedro da Gama, irmão de Vasco, possui uma certa
debilidade física mas que é largamente compensada pelo temperamento
benevolente e carismático, que lhe granjeia a admiração
incondicional do irmão. A Odisseia dos irmãos Gama passa, a ser a
dada altura, contada por um narrador participante, um peregrino,
andrajoso, que visita o antigo capitão naquela impiedosa noite de
Inverno, logo no primeiro capítulo, dando lume vivo às memórias de
ambos. Este peregrino, Barnabé tem como missão levar desfiar o
rosário de aventuras e peripécias que se traduzem numa narrativa
iconoclasta fazendo o leitor olhar a histórica viagem de Vasco da
Gama à Índia por um outro prisma, desfazendo a aura romântica e
épica, associada à descoberta do caminho marítimo para a Índia.
Barnabé foi um jovem grumete, de
família judia, que decidira outrora embarcar na expedição para
fugir à miséria e à perseguição etno-religiosa é neste artigo
abordada por vários prismas segundo o ponto de vista de três
investigadoras: Lélia Parreira Duarte da Universidade Federal de
Minas Gerais1,
Dalva Calvão e Maria Alzira Seixo
A investigadora Lélia Perreira Duarte
no seu ensaio A Peregrinação Mistificada: Fernão Mendes Pinto,
Augusto Abelaira e Mário Cláudio preocupou-se em encontrar elos
de ligação ou pontos de contacto, entre as obras de Fernão
Mendes Pinto A Peregrinação (1614), Os Lusíadas
(1572), O Bosque Harmonioso (1982) de Augusto Abelaira e
a obra de Mário Cláudio de que falamos hoje aqui (1998).
Trata-se de um exercício comparatista que envolve estas quatro
narrativas, as quais descrevem o mesmo facto histórico, sendo que
três delas (a de Mendes Pinto, Abelaira
e Mário Cláudio)
desmascaram os objectivos predatórios da missão evangelizadora,
exaltada no poema épico de Camões.
Lélia Parreira confronta a perspectiva
religiosa e positiva de Os Lusíadas cujos protagonistas lusos
são aquilo a que se chama de “heróis revestidos de coragem e
determinação”, em A Peregrinação de Fernão
Mendes Pinto, o narrador assume o papel de um não-herói, embora
revestido de coragem e determinação. Em contrapartida, n'O
Bosque harmonioso, o narrador mostra-se “indeciso,
preguiçoso e não confiável (Parreira, 2000). Mas, n'A
Peregrinação de Barnabé das Índias, temos por um lado um
protagonista que assume o papel de narrador – Barnabé, judeu jovem
e pobre, oriundo de uma família de comerciantes, que ousa quebrar as
regras que orientam as relações sociais e familiares da sua pequena
comunidade, é um romance que revela os interesses obscuros que fazem
movimentar as águas muito para além do Cristianismo e dos grandes
feitos históricos e que se fundamentam essencialmente na ânsia de
poder e na submissão mais pelo medo do que pela coragem.
No entender de Lélia o que faz Mário
Cláudio na obra de que aqui tratamos é retirar a Vasco da Gama
“o heroísmo com o qual Camões o havia coroado”, mas
humanizando-o pelo distanciamento do tom “religioso, laudatório e
grandiloquente” de cujo discurso narrativo sobressai “ uma prosa
satírica de tom picaresco”. A reescrita da história de Mário
Cláudio é, portanto uma forte e contundente crítica ao heroísmo
canónico com que se retratou durante muitos anos os descobrimentos
portugueses.
Outro aspecto salientado pelo trabalho
desta investigadora da obra deste autor portuense, é a forma como
está representado o elemento do fantástico ou do maravilhoso em A
Peregrinação de Barnabé das Índias. Em relação à obra de
Mendes Pinto, os marinheiros são levados até ao lugar onde
conseguem obter comida, conduzidos por uma ave: na de Abelaira, o
elemento fantástico está ligado à própria viagem dos navegantes à
Lua e à salvação de Cristóvão da morte na fogueira à qual fora
condenado por práticas judaizantes e à fuga espectacular de que é
protagonista, usando um balão de ar quente. (anacronismo mais do que
evidente). Na obra de Mário Cláudio, Lélia vê esse mesmo
elemento do maravilhoso ligado à figura de Barnabé que sofre várias
metamorfoses: de criança traquinas e curiosa a judeu camuflado,
marinheiro e, por último, mendigo, figura da qual emanam poderes
extraordinários. Por outro lado, a figura do Anjo, é identificada
com a imagem de S. Rafael, encabeça a proa da nau de Pedro da Gama é
que salva, por duas vezes, o Barnabé da morte.
Na óptica de Dalva Calvão2,
da Universidade estadual do Rio de Janeiro, no seu artigo intitulado
Viagem e Morte em Peregrinação de Barnabé das Índias de Mário
Cláudio “a ideia mística de ultrapassar limites internos”
dá lugar a uma possível abertura a outros reinos que não os
materiais e é concretizada na construção de uma “outra
travessia” direccionada “outro oriente” e reflectida “numa
viagem na escrita e pela escrita”.
Voltando à visão de Lélia nas três
obras por ela analisadas o leitor assiste ao espectáculo da miséria
humana, trazida pelas vozes que nos chegam do Oriente...”. Mas ,
por outro lado, os dilemas vividos pelos narradores e companheiros de
viagem são, deste ponto de vista, em tudo opostos à perspectiva do
narrador de Luís Vaz de Camões, adoptando antes uma
“estrutura testemunhal performativa, buscando o eco no silêncio
do outro”, o que lhe dá realmente profundidade narrativa e
conteúdo dialógico.
Lélia identifica esta dimensão
performativa, n' A Peregrinação através
do discurso paródico do narrador; mas em O Bosque
Harmonioso esse discurso paródico é substituído aquilo a que
chama de “apropriações de textos” ao apresentar-se como “ a
tradução de um manuscrito encontrado e que se constrói como
um encadeamento, isto é, um conjunto de histórias encaixadas na
narrativa e resulta num jogo de incertezas (…) como o
encontro de Tareja e Afonso, aparecendo como questionáveis os vários
amores que surgem nos diferentes relatos.” Já A
Peregrinação de Barnabé das Índias por ter o formato de
“um romance compacto, dividido em capítulos, mas cujos títulos
não indicam o seu conteúdo”esta característica não é tão
facilmente identificável. IA obra de Mário Cláudio obriga a uma
leitura concentrada obrigando o leitor a sair da confortável posição
passiva. A investigadora de Minas Gerais chama também a atenção
para oscilações na narrativa que podem comprometer a verosimilhança
dos acontecimentos. Por exemplo: no discurso de Barnabé, onde é
notório o tom de um sobrevivente face a um conjunto de situações
extremas, colocando em confronto a credibilidade face ao o grau de
crueldade nos horrores por ele descritos. Assim, do ponto de vista de
Lélia Parreira, os relatos de Barnabé surgem como narrativas
puramente ficcionais e não como certezas ou factos historicamente
documentados. Pelo contrário: no seu discurso encontramos
frequentemente as expressões “ouvira falar” , afirmara que sim”,
“presumia”, “se bem que...” que uma deixam margem de
incerteza relativamente confortável ao narrador.
Pela voz de Barnabé, Mário Cláudio
tece uma trama formada por narrações se sobrepõem a outras
narrações (polifonia) nas quais, tal como acontece em Abelaira, os
textos são construídos em rede e se ligam uns aos outros através
da intertextualidade. E é através deste cruzamento de vozes que,
lentamente, as incertezas se vão lentamente esbatendo, ao mesmo
tempo que sobressai o tom testemunhal.
No romance, a figura de Paulo da Gama
surge ao lado da do irmão, ganhando destaque a parceria que se
estabelece entre ambos, ao mesmo tempo que abre caminho a
interrogação sobre qual destas duas personagens terá efectivamente
descoberto o caminho marítimo para a Índia. Esta relação de Vasco
da Gama com o irmão será, talvez, um dos aspectos que mais realçam
a faceta humana desta personagem que surge na nossa História como
heróica. Além de que Mário Cláudio põe também a nu
vários aspectos da fragilidade não só deste mas de ambos os irmãos
Gama: a saúde frágil de um e a dependência emocional do outro.
Juntos, formam um único ser de dimensões míticas onde, no final, a
personalidade e provavelmente uma boa parte do carisma de um é
absorvida por aquele que sobrevive.
O percurso de Barnabé, por sua vez,
decorre na obscuridade mas no final é ele quem parece demonstrar ter
ido mais longe no plano do amadurecimento e da busca pela Sabedoria.
A viagem espiritual de Barnabé que a
que se refere Dalva Calvão tenta evidenciar como “O peregrino do
ser refere-se à finalidade do romance como detentor da intenção de
“contar a história a partir do ponto de vista das duas figuras
centrais” das quais já falámos. O livro é, todo ele, uma
sucessão de transformações e movimento contínuos, quebrados por
grandes e radicais mudanças na vida do protagonista,
descontinuidades momentâneas, portanto. Pedro da Gama e Barnabé são
personagens que incarnam, em termos de temperamento, o contraponto
face a Vasco da Gama: enquanto a personalidade autoritária e algo
ríspida deste último, que revela alguma dificuldade em controlar os
seus marinheiros e, por isso se refugia no seu camarote, o torna uma
figura pouco simpática, Pedro, por outro lado, serve de inspiração
a Barnabé, que acaba por desbravar o 'verdadeiro' caminho marítimo
para a Índia. Ele é o verdadeiro aventureiro – e sobrevivente –
que arrisca a existência em busca do desconhecido. E Vasco da Gama é
a personagem histórica acerca de quem o Autor faz a reconstituição
psicológica fora do cânone da História. Assim, por contraste,
Barnabé, enquanto personagem fictícia embora central na trama, é o
marinheiro a bordo de da nau S. Rafael que convive de perto com ambos
os irmãos Gama e por isso, adquire valor como “testemunha” da
História. Ele é o viajante que vai percorrendo os caminhos
tortuosos da vida conduzindo, também ele, o leitor, através de um
cenário que engloba um espaço em contínua transformação pela
acção do tempo em interacção com os homens. Esta transformação
é operada a três dimensões que se intercruzam: física
(geográfica e corporal), e espiritual. Barnabé percorre o caminho e
reconstitui a memória pessoal e histórica pela via da marginalidade
que começa com o desenraizamento, em Portugal, e prossegue com a
libertação dos próprios “demónios” ou fantasmas. Este
“desenraizamento” é mais um elemento que liga a arquitectura da
trama tecida por Mário Cláudio ao estilo barroco, ao acompanhar a
ideia de movimento que se vê também nas artes plásticas daquele
período. A desarmonia e desequilíbrio em que Barnabé se vê, a
cada passo, mergulhado é sempre a mola que o impele a esse mesmo
movimento à mudança . A própria atracção pela navegação é
estimulada pelo desejo de paz, por um lado, mas também pelo impulso
de fugir da decadência e conhecer o não só o mundo mas a si mesmo.
Este investigador vê no percurso de
Barnabé o caminho que leva à transcendência que passa pelo
conhecimento de um novo espaço e ultrapassa os limites físicos da
própria esfera de acção (o mar alto e novos continentes e o
confronto com o perigo que, na prática se traduz sempre, de uma
forma ou de outra por uma restrição à liberdade: de certa forma, o
barco em pleno mar alto não é muito diferente de uma prisão).
O Barroco e o Movimento
Como já foi dito, o primeiro encontro
entre Barnabé e Vasco da Gama dá-se no início do romance, num
tempo muito posterior ao da viagem à Índia, em casa do ex-navegador
dando-se o reconhecimento entre ambos (anagnorise), que marca o ponto
de partida para o início da narração da odisseia. Nos capítulos
seguintes, dá-se o primeiro salto temporal para o passado – numa
primeira fase, para relatar a infância de cada um separadamente e
depois, para recordar a viagem conjunta; e, por último, as vidas
divergentes após o regresso a Portugal até ao momento do reencontro
presente. Aqui está presente não só o dinamismo barroco através
da movimentação temporal – ao saltar de um dado momento do tempo
para o outro – mas também pela alteração e mudança dos espaços
e cenários que se vão pintando diante dos olhos do leitor: da cena
diante da lareira no tempo da velhice de Vasco da Gama, passa-se para
o cenário da infância do navegador na praia da Nazaré, a infância
de Barnabé, e o momento crucial em que este perde o amigo no rio, da
juventude de Barnabé no interior Norte de Portugal com o tio
comerciante, a fuga para Lisboa, com as suas vielas escuras e
miseráveis, cheias de salteadores, o primeiro encontro com os irmãos
Gama no momento em que se preparam para partir e a decisão de
embarcar, os diferentes estágios da viagem, mar alto, Calecute...até
chegar ao seu destino.
Com o primeiro salto temporal
regressivo, cria-se a primeira descontinuidade, para relatar a
infância de ambos, separadamente, mas sempre dando a ideia de
simultaneidade, o que ressalta a ideia de movimento. Depois a
alternância de narradores, dá ao texto a sua dimensão polifónica,
onde a mesma alternância de “voz”, cada qual com a sua visão de
acontecimentos, permite a leitor obter uma visão mais completa e
complexa dos acontecimentos, enriquecendo a narrativa, a qual é
explorada de vários ângulos como acontece no cinema. Vasco da Gama
e Barnabé têm entre si vários elos de ligação, apesar do enorme
abismo económico e social que os separa: uma infância conturbada,
com importantes perdas afectivas, os respectivos graus de fragilidade
que poderão colocá-los na mira da Inquisição, fazem deles, no
primeiro momento em que se encontram pela primeira vez, dois
fugitivos o que por si só faz adivinhar uma história cheia de
peripécias.
A bordo da nau que os leva para longe,
cria-se também, de forma progressiva, um clima de insegurança, que
prenuncia alterações drásticas, um sentimento colectivo que é
agravado pelos conflitos relacionados com a hierarquia e, também,
entre os próprios marujos.
Outra questão que tem uma presença
muito forte no romance e apontada por esta investigadora é a da
religiosidade: Vasco da Gama, por exemplo, é obrigado a converter-se
ao cristianismo, negando veementemente quaisquer práticas
judaizantes, após a publicação de um édito por D. Manuel que
proibia aquele culto no país ao mesmo tempo que expulsava todos os
judeus do território português.
Quanto a Barnabé, o convívio com
cristãos fá-lo agarrar-se ainda mais à religião de origem,
praticada secretamente, dando voz à figura mítica do judeu errante.
Esta questão da religiosidade liga-se ainda a outra, aqui
anteriormente debatida, a relação entre o real e o fantástico: a
fronteira entre estas duas dimensões esbate-se à medida que
avançamos para o desenlace da trama: esta atinge o seu clímax no
momento do confronto com a morte, durante o qual é exaltada a
imaginação do protagonista (Barnabé) uma explicação plausível
para a questão relativa ao contacto com o divino.
Um facto curioso parece ser que ao
contrário de Barnabé, Vasco da Gama não enfrenta o medo que está
personificado na figura mitológica da Hydra. É por essa razão que
não é ele quem descobre verdadeiramente o caminho marítimo para a
Índia nem o caminho para o conhecimento de si mesmo. Para Dalva
Calvão, que relaciona esta peregrinação ou viagem como o caminho
em direcção à morte ou “à outra vida", Barnabé é um
homem religioso, daí que sua experiência metafísica esteja
sobretudo relacionada com factos onde parece estar presente a
manifestação do divino ou do sobrenatural. Também é frequente os
romancistas de estilo barroco privilegiarem não tanto a
verosimilhança mas o questionar que está subjacente à introdução
deste elemento místico ou fantástico.
Para Dalva Calvão, A
Peregrinação de Barnabé das índias é um convite que o
autor faz aos leitores no sentido de empreender uma viagem pelo Eu
interior do protagonista através da reconstituição crítica e
irónica daquilo que foi a expansão marítima portuguesa. Trata-se,
na verdade de uma alegoria que representa o Homem que vai fazendo uma
peregrinação pela vida no sentido de encontrar a paz de corpo e
espírito. Assim, o corpo de Barnabé sofre o desgaste operado pelo
Tempo, mas esse devir não o transforma em ruína.
«Barnabé, ao contrário de Vasco
da Gama, não é um fim em si mesmo», pois este não superou os
seus medos, as suas limitações, mas encerra-os consigo. Por outro
lado, Barnabé é o proscrito, excluído da sociedade, alcança a
degradação física mas nunca a interior, porque descobriu o que
procurava. Há, no entanto, outras alegorias presentes na obra: a já
mencionada Hydra (o medo que paralisa os homens e os devora), o rio
onde desaparece André (Estige, o rio de passagem para o Hades), a
nau de S. Rafael (passagem e conhecimento de novos mundos). Dalva
Galvão cita Walter Benjamim a propósito da relação entre a
alegoria e o barroco, como multiplicadora de sentidos e amplificadora
de ambiguidades. E refere-se à própria metamorfose de Barnabé
relacionando-a com a Teoria do movimento de cariz barroco já falada
neste posta a propósito da perspectiva de Lélia Pereira. Dalva
Calvão acrescenta que de acordo com este modelo de escrita e
construção narrativa o homem nunca está em repouso, de tal modo
que a própria vida se encarrega de obrigá-lo a agir. Deste ponto de
vista, a viagem é o percurso existencial entre o nascimento e a
morte para ambas as personagens e é também o fio condutor da acção
e da viagem em si.
Conteúdo e recursos estilísticos
Com um discurso de
prosa elaborada, longos períodos com frases encaixadas, contendo
hipérboles, ousadas metáforas e pontuação não muito
convencional, a prosa de Mário Cláudio, ao dar a voz a Vasco
da Gama e a Barnabé segue o vertiginoso ritmo da corrente do oceano
da memória, vai recuperar uma série de arcaísmos como “por mor
de” (por causa de), “futurar” (calcular, deduzir, prever) e
recriar a sonoridade (aproximada) do discurso da época, não sendo
no entanto uma reprodução fie para se tornar legível (e
inteligível) aos leitores actuais.
A linguagem
utilizada por Mário Cláudio, cuja construção sintáctica muito
aproxima as vozes presentes na narrativa à escrita camoniana, recria
com assaz verosimilhança as cores do tempo que marcavam o então
discurso da época, ultrapassando a mera expedição aventurosa às
terras distantes, mundos então desconhecidos para os europeus. A
viagem de Barnabé é como que um percurso iniciático em que a
Índia, mais do que um lugar exótico ou fonte de incomensuráveis
riquezas, representa antes uma saga, penosa e cheia de obstáculos.
Por último a perspectiva apresentada
por Maria Alzira Seixo da Universidade Nova de Lisboa3
chama a atenção para um outro ponto de vista: a relação entre
História e Literatura em Peregrinação de Barnabé das
Índias, ao
salientar, antes de tudo, aquilo a que chama de
“sentido evolutivo do modo de escrever, ler, ensinar e difundir
a literatura de acordo com o paradigma dos formalistas russos,
encabeçados por Tynichekhov”. Esta perspectiva enfatiza o
critério de qualidade estética ou de consistência de valor, que
nunca pode deixar de estar presente num romance histórico, tornando
possível “configurar a variabilidade da propriedade estética
com a representação da mutação sócio-cultural do discurso.”
A trama construída por Mário Cláudio
pode ser, segundo este critério, exemplo da exigência de
interdisciplinaridade entre os Estudos Literários, na procura
da intersecção dos espaços das Ciências da Linguagem com as
Ciências Históricas, sem deixar de coexistir a necessidade de
preservar o seu espaço próprio, “correspondendo ao traçado de
uma secante, ao posicionar-se entre o pensamento de cariz filosófico
e a 'criação intersticial'”, o que implica a articulação do
elemento ficcional face ao conhecimento adquirido da História
Europeia e, neste caso, da Expansão Portuguesa, sem esquecer, no
campo da Lexicografia, o estudo da Navegação Marítima e apreensão
da gíria típica dos navegantes.
Em terceiro lugar, para Maria Alzira
Seixo, o estudo da História no sentido contemporâneo, uma vez que
se relaciona com a memória de um passado colectivo, torna-se
passível de ser reconstituído através da polifonia discursiva e
implicado na enunciação, a qual deverá estar presente no texto
literário. Por último, a Autora enfatiza a importância da História
como movimento accional em “Peregrinação de Barnabé das
Índias, sobretudo por se tratar de uma reescrita da História
de Portugal, isto é, de uma “história da História” (ou uma das
muitas).
É sobre estas três formas de olhar a
obra de Mário Cláudio que nos propusemos descodificar o
romance de MC de que aqui tratamos , estabelecendo a relação entre
os elementos poéticos contidos na diegese e e o quotidiano das
personagens é colocado em destaque, sublinhando as propriedades
discursivas da prosa, no âmbito da construção de um texto,
simultaneamente histórico e literário, onde são implicadas a
alteridade temporal e espacial, dentro de um contexto de um Império
onde o sujeito narrativo dialoga com uma entidade histórica num
cenário em constante transformação tal como o mundo à sua volta.
23.03.3012-24.11.2013
Cláudia de Sousa Dias
4 Comments:
De Mário Cláudio li, e tenho, "a quinta das virtudes". Hei-de relê-lo, escreve de uma forma muito peculiar que vale bem a pena ler!
Beijinhos e parabéns pela óptima resenha!
esse ainda não li...!
mas ainda me falta muito para ler de Mário Cláudio e não só!
A tese este ano vai dificultar um pouco as coisas. Já só tenho cinco texto na gaveta de reserva!
Por um acaso, pesquisando sobre Ismail Kadaré encontrei estue Blogue, de cuja leitura se tornará obrigatória daqui para frente. Peço-lhe uma visita e um comentário a meu blogue. http://deus-carmo-literatura.blogspot.com.br/
Braços Carmo
Também gosto muito de Kadaré e tenho pena de não ter lido mais coisas dele...ainda vou a tempo...penso eu.
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