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Monday, October 28, 2013

“Persona” de Eduardo Pitta (Quidnovi)



Persona é uma obra da Autoria do poeta, ensaísta e crítico Eduardo Pitta, constituída por três novelas cujo tema principal e, apesar de não conseguirmos evitar pensar no filme homónimo de Ingmar Bergman, e de uma possível intertextualidade com a obra do cineasta a te temática central, comum às três narrativas, incide apenas na questão da identidade sexual, mais propriamente na edificação da Persona ou Máscara que faz parte do processo mais amplo de construção do Eu nas personagens de Eduardo Pitta. A acção situa-se em terras de Moçambique, no período anterior ao vinte e cinco de Abril. Apesar de Persona de Eduardo Pitta não ter como ponto de partida a criação de Bergman, podemos olhá-la como o lado simétrico da do realizador sueco: as personagens centrais são, ao contrário das do filme,  masculinas, todas elas e enfrentam um meio social e regime político hostis, formando um vasto conjunto de obstáculos à livre escolha da pessoa que se deseja ser. Daí as máscaras – personae – que visam adopção de uma conduta aparente, mais ou menos fictícia que implica sempre uma performance, uma actuação, como se se estivesse no palco a actuar perante um público e consoante as expectativas desse mesmo público, que espera daquele actor, que veste aquela máscara, um determinado comportamento, como é o caso do jovem adolescente da primeira história, Marilyn.

O Autor identifica esta publicação como “uma trilogia de contos morais”, cuja acção decorre em Moçambique, entre 1960 e 1973. As três estórias representam três momentos-chave na vida da personagem central que aparece em todas as narrativas, apesar de, na minha opinião, a primeira se enquadrar melhor no género conto.

Assim, Marilyn, a primeira história, será talvez a situação retratada que melhor ilustra o espírito da obra. A acção passa-se em 1962, o protagonista é um adolescente que, pelo aspecto algo efeminado e conduta que revela uma tendência a uma inclinação por pessoas do próprio sexo, é alvo de bullying na escola, sendo encaminhado para ajuda psicológica com o objectivo de corrigir aquele “desvio”, mas acaba por ser assediado pelo próprio médico, que tenta aproveitar-se da situação vulnerável da criança, ao abrigo da máscara social que lhe é proporcionada pela profissão.

A forma como é construída a narrativa é feita de forma a provocar no leitor uma crescente sensação de angústia e o intuito de incitar a revolta no leitor que se “cola” à figura da criança, como o elo mais frágil que é, dado que o agressor tenta chantagear a vítima, ao tentar fazê-la sentir-se culpada pela situação e, assim, justificar um assédio premeditado e cuidadosamente planeado.

A cena no consultório coloca o leitor numa situação de extrema tensão psicológica como a que assistimos ao longo do filme “Michael” do realizador austríaco Markus Schleinzer. Em ambos os casos, o leitor/espectador experimenta a sensação de empatia pela criança, ao tomar consciência do terror sentido por esta, face à eminência de sofrer um abuso sexual por parte de um adulto. O desfecho da história, ao contrário do filme de Schleizer, onde se nota a marca da influência de Michael Hannecke, traz ao leitor a sensação de alívio, mediante a dissipação do risco, mas também a tristeza pela morte de algo, uma fase da vida, um paradigma, um ícone representado por alguém que, também ela, é impedida de ser o que deseja, vivendo de uma máscara criada para ela, para o agrado das massas. A história termina de forma abrupta, com a desilusão de um jovem que vê desvanecer-se um primeiro amor e, simultaneamente, desaparecer um ícone de beleza absoluta, arquétipo da imagem da sensualidade inocente.


A segunda história intitula-se Kalahari e consiste numa trama que descreve uma aventurosa viagem através do deserto, uma odisseia empreendida por um grupo de jovens boémios – e com as hormonas em fogo – em pleno mês de Setembro de 1967. Eduardo Pitta descreve uma paisagem escaldante e exótica ao longo de uma travessia que pode tornar-se, por vários factores – geográficos, climáticos e sócio-políticos –, arriscada. Na escrita de Eduardo Pitta, em Kalahari, estão presentes inúmeras referências culturais que denunciam um forte contacto com a cultura anglo-saxónica, desde o requinte cinematográfico dos cenários por onde se movimentam as personagens, que denuncia a denuncia a origem social do protagonista, Afonso, e dos jovens que o acompanham como pertencentes, quase todos, à elite local, beneficiando de uma cultura muito acima da média, mas impregnada de rebeldia e inconformismo, que se reflectem, por vezes, na crueza da linguagem, presente também na expressão de um intenso erotismo com que é descrita a pujante sexualidade juvenil de que está revestida a estória.

A acção da última narrativa passa-se entre 1971 e 1973, tendo como pano de fundo a repressão à homossexualidade, presente no exército e a repressão feita pela PIDE à homossexualidade. É aqui, talvez que encontramos mais vincadas as contradições inerentes a uma sociedade que insiste em excluir determinados grupos sociais, baseados apenas na orientação sexual. Esta será, de entre as três narrativas que são aqui comentadas, aquela que explora, de fora mais completa e sob várias perspectivas, as personae de que se munem as pessoas que sofrem o aguilhão do desejo recalcado, numa perspectiva eminentemente freudiana.

A opinião da crítica

O escritor e filósofo Miguel Real comentou a propósito desta trilogia, num artigo do JL (2001), acerca do léxico utilizado pelo autor, classificando-o de “subversivo” relativamente à chamada “normalidade”, ao passo que Pedro Mexia no DN (2001), refere-se-lhe como “uma narrativa de aprendizagem sexual, de fruição homoerótica”. Já Maria Augusta da Silva no Diário de Notícias (2001) descreve a obra como “uma abordagem crua e desassombrada de um lado oculto da guerra colonial e do apartheid sul-africano, mas na qual se cumpre a função crítica perante cenários marcados pelo arbítrio e abuso do poder”. Jorge Listopad do JL (2001), por sua vez, fala do “enigma poético” a propósito da obra que “filtra a homossexualidade latente, factual, ressuscitando a memória dos pequenos infernos”. E Fernando Matos Oliveira na Colóquio-Letras (2002) destaca: “A impressão que se tem ao ler Persona é a de uma reactivação de experiências de leitura de algum património moral do século XVIII, até porque há entre eles marcas de género (…): ritmo acelerado, narrador autodiegético, e sobredeterminação da pulsão erótica.” E Helena Barbas no Expresso (2002), por sua vez, compara as idades de Afonso nas três estórias – doze, dezoito e vinte e dois anos – fazendo corresponder a cada uma delas “uma forma de iniciação”. Finalmente, Edgar Pereira da Revista de Estudos Portugueses da Universidade de Minas Gerais (2005) destaca o último conto “pela contiguidade da libertação política e da concepção libertária da sexualidade (…). O último conto atinge em cheio as supostamente sólidas fundações do Império Luso”. EP aponta ainda “o dinamismo e agilidade da linguagem, num português globalizado”, referindo-se à profusão de estrangeirismos, sobretudo de origem anglossaxónica, mas também galicismos e expressões de origem crioula, cujo resultado final é “uma prosa ficcional alegre e ousada, refinada e demolidora, irónica e encharcada de cepticismo”.

Por todas estas razões a leitura de um livro tão inquietante e fracturante quanto Persona torna pertinente a sua reedição, editada pela primeira vez em 2000 e em 2003, de forma a facilitar o seu acesso ao público para além dos raros exemplares existentes em pouquíssimas bibliotecas.


18.12.2012-16.09.2013

Cláudia de Sousa Dias

4 Comments:

Blogger Eduardo Pitta said...

Obrigado pela leitura. Permito-me discordar da relação com o filme de Bergman. No meu livro, o título remete apenas para «máscara». Ponto. Há uma gralha: na citação do Fernando Matos Oliveira, onde está "génese", deve estar «género». Já agora: o livro é de 2000. A edição de 2003 é a segunda.

1:24 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

obrigada eu pela visita e pela clarificação das imprecisões :-)

csd

5:31 PM  
Blogger M. said...

Parece-me uma obra deliciosa!!!

1:16 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

o primeiro conto arrepiante, devido ao suspense, o segundo, divertido e o terceiro, inquietante.

:-D

1:19 PM  

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