“Cem Garrafas numa parede” de Ena Lucía Portela (Âmbar)
Tradução de Manuela Correia Ribeiro
Ena Lucía Portela nasceu a 19
de Dezembro de 1972, em Cuba. É narradora e ensaísta, licenciada em
Línguas e Literaturas Clássicas pela Universidad de La Habana, tal
como as duas protagonistas de Cem Garrafas numa Parede,
Zeta e Linda. Apesar de ser este, até à data, o único romance
publicado em Portugal, Ena Lucía Portela é uma escritora
sucessivamente premiada por várias obras de sua autoria, sobretudo
dentro dos géneros romance e conto. O romance El Pájaro: Piñal
y Tinta China arrebatou o Prémio Cirilo y Villaverde de la
Unión de Escritores y Artistas de Cuba (UNEAC), em 1997.
Publicou depois a colectânea de contos Una extraña entre las
Piedras, em 1999. O conto El viejo, el asesino y yo obteve
nesse ano o Prémio Juan Rulfo
para a categoria “conto”, outorgado pela Radio França
Internacional para logo ser publicado no ano seguinte. Em 2001,
publicou o romance inédito La Sombra del Caminante. Quando
conquistou, em 2002, o Prémio Jaén
com o romance Cién
Botellas en la Pared
(Cem Garrafas numa Parede),
o romance de que hoje aqui falamos, já não é propriamente uma
estreante nas lides da escrita. Na verdade, este livro desencadeou
tal impacto que arrecadou também o Prémio Deux-Océan
Grinzane-Cavours, outorgado
pela crítica francesa como o melhor romance latino-americano,
publicado nos últimos dois anos. Corria, então, o ano de 2003.
Por
todas estas razões e mais as que iremos ver a seguir, torna-se
difícil compreender a razão pela qual ter tido, em Portugal, esta
autora tão discreta – e tardia – projecção. Ena
Lucía Portela publicou ainda
uma colectânea de contos, em 2006, intitulada Alguna
enfermedad muy grave e
ainda o romance Djuna y
Daniel, em 2008.
As protagonistas
de Cem Garrafas numa Parede são duas personagens
antagónicas e nada convencionais: Zeta, cujo nome em castelhano
corresponde à última letra do alfabeto, é uma jovem gordinha,
simpática e pobre, a viver precariamente e de expedientes,
maltratada pelo companheiro, detentora de uma baixíssima
auto-estima, que sonha um dia tornar-se escritora como a sua melhor
amiga, Linda; esta, por sua vez, é uma jovem proveniente de uma
família abastada, descendente de refugiados judeus, vindos da
Alemanha nazi, bela, magra, homossexual e escritora de sucesso,
especializada em romances policiais, sendo alguns deles adaptados ao
cinema. Tem o espírito voltado para o amanhã, tal como a formiga de
La Fontaine. As duas são como a cigarra e a formiga da fábula, tão
diferentes na forma de pensar e estar na vida (e de escrever) como a
água do vinho e, contudo, inseparáveis.
Zeta
é a narradora principal e através de cujo olhar a história nos é
desvendada pelo recurso à modalização temporal. A história é
contada em tempos diferentes, sendo que a voz de Zeta começa por
referir-se a uma descrição de uma cena doméstica situada no
passado, a partir do qual irá relatar o seu percurso e
desenvolvimento da situação até ao momento presente. É a voz de
Zeta que nos dá as cores da vida quotidiana em Cuba, num prédio
degradado da cidade de Havana, onde tenta escrever uma espécie de
diário, o qual vai servir de base a um romance, elaborado debaixo do
barulho ensurdecedor das eternas obras levadas a cabo pelos vizinhos,
já de si pouco dados ao silêncio e à reflexão. Zeta chama-lhe “A
Casa do Martelo Alegre” ao prédio onde vivem dezenas de pessoas,
em condições de extrema pobreza. O contraste torna-se chocante
quando o cenário muda para o sofisticado apartamento de Linda, cujos
romances vendem como hamburguers,
dentro e fora do país, garantindo-lhe um padrão de vida muito acima
da média.
Há, no entanto,
outras personagens femininas secundárias que se cruzam na vida de
ambas as protagonistas e incarnam a exuberância do temperamento da
mulher cubana. Uma delas é Broínha-de-Mel, a extravagante amiga de
Linda que gosta de organizar, habitualmente, loucas e ruidosas
festas, exclusivamente destinadas ao sexo feminino – com excepção
de um ou outro inofensivo travesti. Trata-se de uma das personagens
mais carismáticas do romance pela sua exuberância, generosidade e
imoderação, uma personalidade inequivocamente dionisíaca.
A alternância dos
espaços interiores, domésticos, presente ao longo do romance – da
casa de Zeta, para a casa de Linda e, de lá, para a casa de
Broínha-de-Mel –, confere ao romance o dinamismo necessário de
forma a proporcionar ao leitor uma viagem pelo espaço doméstico
feminino de uma forma socialmente transversal. Esta visão do espaço
doméstico interior nos diferentes níveis socio-económicos permite
também comparar outro fenómeno social: o desenvolvimento das
relações amorosas que são cuidadosamente escrutinadas pela Autora
Ena Lucía Portela, tanto na vertente hetero como homossexual,
sendo que o foco da análise é colocado na questão da violência
doméstica, tanto física quanto psicológica, que afecta as relações
íntimas e que não se restringe aos meios sociais mais
desfavorecidos. E, neste aspecto, o que fica deste romance, é que a
mesma violência é também socialmente transversal, à medida que as
relações se desumanizam e as pessoas se fecham em si mesmas, até
mesmo num contexto em que se vêem rodeadas de gente, como na ruidosa
festa em casa de Broínha-de-mel, onde há ilhas de infelicidade no
meio da alegria que parece querer submergi-la, nascendo de um
desequilíbrio das relações de poder entre os parceiros.
A Patologia da Paixão
Zeta tem uma
paixão avassaladora e obsessiva por um homem bastante mais velho do
que ela, Moisés, o qual usa o relativo poder económico de que
dispõe, para além da força física, para a dominar e humilhar.
Moisés é um ex-juiz do Supremo Tribunal com alguns traços de
personalidade anti-social, até mesmo na forma de se vestir, de se
mostrar para a sociedade – Moisés tem o aspecto de um mendigo,
exibindo um ar andrajoso, apesar das roupas caras e do poder
económico de que dispõe, demonstrando com isso um profundo desprezo
pela sociedade. Esse desprezo pelo Outro é o motivo pelo qual foi
expulso das suas funções e obrigado a reformar-se. O seu
comportamento inadequado e violento faz dele uma personagem pouco
simpática, a que se junta a extrema agressividade para com Zeta, a
quem espanca ao mínimo pretexto. Esta aceita as humilhações do
amante, na altura em que se dão os acontecimentos, com aparente
resignação. Mas passa a encarar a situação com humor ácido e
corrosivo, num tempo posterior, depois de ultrapassada que a coloca
em situação de vulnerabilidade, com a voz da narradora actual e o
devido distanciamento crítico. A narrativa de Zeta não se traduz
numa mera conversão para o papel de uma experiência pessoal, mas
antes na descrição de vários quadros sociais que nos vão
proporcionando uma visão panorâmica do problema da violência
dentro das relações amorosas.
A descrição do
estado interno de Zeta e das razões que a levam a aceitar as
humilhações do amante, leva-nos a perceber que não se trata apenas
de uma questão de vulnerabilidade social, mas também muitas vezes,
fruto de uma personalidade romântica que leva a confundir com amor
um sentimento de posse e desejo de controlo que está, normalmente,
associado ao ciúme.
Outro exemplo de
violência nas relações íntimas tem a ver com a relação
desequilibrada em que se transforma o efémero romance entre Linda e
Alix, marcada sobretudo pela violência psicológica e ciúmes
doentios. Linda é uma jovem impiedosamente individualista que não
hesita em relegar Alix para a condição de serviçal, quando esta se
torna demasiado dependente. A pena e o medo da vingança da ex-amante
impedem-na, no entanto, cortar de maneira definitiva e radical, os
laços, cada vez mais ténues, que a prendem à jovem. Pode-se dizer
que, neste caso, a violência é proveniente de ambas as partes, é é
sobretudo psicológica, ao contrário do caso anterior, onde esta
assume uma forma unilateral e gratuita além de deixar marcas
bastante evidentes no corpo de Zeta.
A crítica
literária e também escritora Catherine Clément compara a
descrição de Cuba pela personagem de Ena Lucía Portela ao
cadáver do poema baudelairiano, vendo na decadência social patente
no romance um processo análogo à decomposição de um cadáver. Ou
seja, para esta Autora e investigadora francesa, a sociedade cubana
apresenta-se como um corpo social em desagregação e decadência, de
onde sobressai uma única relação saudável: a amizade
desinteressada entre Zeta e Linda, estabelecida desde os tempos do
liceu e consolidada durante décadas de auxílio mútuo. Catherine
Clément classifica este romance como autobiográfico, ao
sublinhar a forma como Ena Lucía Portela cria ficção a
partir da realidade circundante.
Um romance de duas escritoras
Zeta e Linda, as
duas protagonistas de Cem Garrafas numa Parede possuem
ambas discursos radicalmente opostos como opostas são também, as
suas vivências. Zeta torna-se insegura ao falar de si mesma, ao
considerar a própria forma de escrever como errática, caótica e
emocional, própria de uma amadora, pouco preocupada com as questões
de estilo ou género, em contraste com o tom profissional, narrativo
e cheio de autoconfiança de Linda, que se reflecte na estrutura
linear do típico romance policial, embora assente na tónica do humor
negro e ironia que lhe vai assegurando inúmeros prémios, sucesso
profissional e económico. Para Zeta, Linda é, por todas estas
razões, a “verdadeira escritora”.
Ao longo do
romance percebe-se que Zeta deseja viver da escrita e não dos
expedientes de que se socorre normalmente, mas está convencida de
que não dispõe de competências para tal, devido às notas medianas
que sempre obteve na faculdade. Zeta escreve sobre o quotidiano da
cidade de Havana e das suas vivências, relacionando a sua
experiência pessoal com as questões sociais, numa escrita
polvilhada de referências cinematográficas. Zeta consegue
visualizar nos seus escritos uma possível adaptação ao cinema
como acontece com Linda, mas não ao cinema comercial. As estórias
de Zeta enquadram-se noutro género de cinema, alternativo, talvez
mais próximo do cinema europeu, sobretudo francês ou italiano.
Personagens e desenvolvimento da
História
Mais do que a deterioração das condições sociais, o foco deste
romance é a deterioração das relações amorosas. Para além dos
dois casais já referidos – Zeta e Moisés; Linda e Alix – a
festa no apartamento de Broínha-de-mel é um palco privilegiado onde
assistimos ao apodrecimento dos afectos que vai progressivamente
invadindo o quotidiano das pessoas. As frequentadoras das loucas
festas da dançarina de cabaret possuem, muitas delas, marcas
do passado e profundas cicatrizes – o caso de Marita, presa no
passado – mas há entre elas , no plano da amizade, um sentimento
de coesão que dá a Zeta, apesar de assumidamente heterossexual, o
sentimento de segurança necessário face à amizade de Linda, para
não se deixar monopolizar totalmente pelo companheiro, que a trata
como uma prostituta.
O apoio de Linda e das outras amigas torna-se fundamental e é o
pequeno grande detalhe que lhe permite tomar a decisão de se colocar
a si mesma em primeiro lugar quando decide mudar o rumo ao próprio
destino e assegurar a própria vida. Curiosamente, será a silenciosa
e tresloucada Alix, que detonará em Zeta o impulso final que a leva
a agir, no sentido de assegurar a própria sobrevivência que corre
um forte risco enquanto vive com Moisés.
O discurso de Zeta, que ocupa a maior parte do romance é sobretudo
diarístico, com recurso a analepses, num tom essencialmente
memorialista. Curiosamente, não se vislumbra quaisquer sinais de
nostalgia, mas antes um corrosivo humor negro, em relação à
maneira de ser da “antiga Zeta”, ácido, pautado por um sarcasmo
violento, que se traduz num registo tragicómico, que os leitores
encontram logo no primeiro capítulo, no qual é descrita uma cena de
extrema violência no apartamento de Zeta, perpetrada por Moisés a
companheira como alvo. A descrição de uma violência atroz é
pautada por expressões carinhosas o que dá um ar tragicómico à
protagonista de um drama que desenvolveu a capacidade de rir de si
própria e das suas atitudes. É como se a voz do locutor no momento
presente, ou seja, não fosse já a mesma pessoa que é convocada ao
enunciar as frases que ilustram uma situação passada. A polifonia
existente no discurso narrativo é marcada pelo forte contraste entre
os dois tempos diferentes que correspondem ao Locutor (eu presente) e
ao Enunciador (eu empírico), dando-nos assim a modalização do
discurso narrativo evidenciada no sarcasmo da Zeta,, depois dos
acontecimentos terem ocorrido. Esta técnica permite que o leitor se
“cole” à voz do narrador, rindo-se com ele da situação
descrita. Este será, talvez, o aspecto que mais evidencia o talento
da Autora Ena Lucía Portela: a capacidade para convocar e
articular as diversas vozes presentes no discurso narrativo, como
mostra o seguinte excerto do primeiro capítulo intitulado “Pelo
menos um bofetão”
«Se havia alguma coisa que verdadeiramente o irritava, se algo o
predispunha à violência e ao homicídio era que quisessem fazê-lo
acreditar em coisas. Ah! O seu semblante tingia-se de vermelho,
vermelho-fogo, vermelho-ferro, labaredas brilhantes com Moisés no
centro, enlouquecido com cornos e cauda, uma serpente, um basilisco,
um dragão, o diabo no inferno. Espectáculo tremendo. A gente
chegava a recear que morresse, assim, subitamente, por combustão
espontânea. Não que ele desconhecesse o lado absurdo e, até,
ridículo, da sua cólera. Sabia que aqueles velhacos, (…) jamais
conseguiriam fazê-lo acreditar na mais pequena das suas
parlapatices. Faltava-lhes astúcia, chispa, mundo. Faltava-lhes
classe. Faltava-lhes tudo o que a ele sobrava, tudo o que ele tinha
para dar e vender.
(…) Mas
controlar-se, fosse em que situação fosse, custava-lhe imenso. Já
o tinham detido várias vezes por escândalo público, por esbofetear
um polícia de trânsito, por andar à porrada com três negros do
bairro de Los Muchos, por atirar um banco ao espelho de um bar, por
partir uma garrafa na tromba do campónio da farmácia, por incendiar
um hotelzeco.
(…)
Porque os outros, os desavergonhados não o deixavam
descansado. Eles insistiam, voltavam a insistir, porfiavam até ao
infinito com uma asquerosa calma. E, ainda por cima, os
grandessíssimos filhos da mãe atreviam-se muito ufanos, a olhá-lo
com velhacaria, com os seus olhos cínicos.
Como era um
homem extremamente sagaz, sabia que nem sequer eles, aqueles canalhas
predicadores, acreditavam no mais pequeno dos seus embustes.
(...)
Num aprazível
crepúsculo de Outono, no dia de equinócio com passarinhos cantores
e rãzinhas no charco, atrevi-me a sugerir-lhe que não lhes ligasse,
que encolhesse os ombros:
- Ignora-os,
bichano – sussurrei-lhe ao ouvido –, trata só do que te diz
respeito. Nada de combater o inimigo, nem de ficar nervoso, nem
sequer de aceitar qualquer desafio. Não dizes que eles nunca te
poderão convencer? Então, amorzinho – beijei-o no pescoço –
porquê sofrer por uma coisa que não vale a pena? De que te adiante
pores-te assim, meu querido? Se não te pões a pau, um dia destes
ainda te dá algum ataque fulminante, uma apoplexia, um desmaio.
Vais ficar todo teso, feito um vegetal. E olha que eu, experiência
para tratar de inválidos não tenho nenhuma. - Desapertei-lhe a
camisa com todo o vagar. - Tens de sair desse círculo vicioso,
querido, tens de sair...Estás muito tenso, muito rígido – e
estava mesmo –, olha como estás. Porque é que não tentas
relaxar-te? Exercícios de ioga, esse género de coisas. Ioga
significa tranquilidade, equanimidade, muita calma, nada de nervos,
paz de espírito ou coisa parecida, já nem me lembro... -
acariciei-lhe o peito. - Mas é que primeiro que tudo está a saúde.
Olha, quando eles virem que te são indiferentes, que as suas
opiniões não valem um peido, deixarão de te chatear. Uma pessoa
não lhes liga pêva e eles desandam e vão foder o juízo a outro
que os ature Faz-lhes ouvidos de mercador e vais ver o que acontece,
vais ver, vai...- beijei-o na boca.
Para falar a verdade, eu não tinha a mínima ideia quem podiam
ser «eles». Lembrei-me tão só que, numa situação tão
desesperada, o melhor talvez fosse estar de fora. Não fazer caso.
Laisser faire, laisser passer.
Ora bem, não
me ligou. Pior: olhou-me espantado.
- Sai de
cima de mim – gritou e sacudiu-me como se eu fosse uma aranha
peluda. E de seguida ferrou-me um soco na barriga e outro num olho
para não me armar em parva. - Ah, as
mulheres! Sempre instaladas na estultícia, na sandice, maquinando
frivolidades. As mulheres são o cúmulo do mongolismo, quem é que
as inventou? Nem sequer por acaso conseguem perceber a essência dos
fenómenos, o mundo como vontade de representação. »
Influências
Literárias e Culturais
Para além das várias referências no romance a figuras da
Literatura e Cinema Francês, como já foi aqui mencionado, há
também inúmeras referências explícitas a nomes da Literatura
anglo-saxónica, nomeadamente a Virginia Woolf - a quem Zeta
se refere, jocosamente, como “a lagartixa inglesa”, quando pensa
em escrever, no meio da ensurdecedora orquestra dos instrumentos da
construção civil de A Esquina do Martelo Alegre, um romance
de pendor reflexivo como o de Mrs. Dalloway, dada a
impossibilidade de obter “um espaço só seu” (A Room of her
Own).
A obra é bastante valorizada pela riqueza estilística e inúmeras
intertextualidades e alusões a autores relacionados com a escrita
jornalística como Hemingway, Puzo e Barnes, clássicos como
Shakespeare, autores fracturantes, à sua época, como Virginia Woolf
e cineastas como Scorcese e Zeffirelli, para além das inúmeras
referências ao cinema francês.
Cem Garrafas
numa Parede
O título atribuído ao romance tem a ver com uma canção popular
mexicana que fala da total destruição de uma adega , quebrando as
garrafas, uma a uma. A referência à canção prende-se com a
analogia do processo de violência que muitas vezes se desenvolve em
crescendum nas relações amorosas, quebrando sucessivos tabus
em direcção à desumanização que ocorre em progressão geométrica
e ao longo da qual o ser agredido se transforma em objecto
progressivamente desvalorizado, até à destruição final.
Este é também o título do romance policial escolhido por Linda, a
qual se propõe escrever no final e no qual participam também Zeta e
Moisés. O fim da relação entre Zeta e Moisés no romance imaginado
por Linda é dramático, embora ligeiramente divergente da que fica
publicada no romance autobiográfico de Zeta.
As personagens de Ena Lucía Portela neste romance são
complexas e fascinantes, não apenas as duas amigas protagonista e
também escritoras, mas também as personagens secundárias como
Marilú e Alix, pela tragicidade e dramatismo nelas contidas.
As personagens masculinas são estranhas, nenhuma delas atraente,
mais sapos do que príncipes. E talvez por essa razão surgem em
primeiro plano a tenacidade dos elos de ligação entre as mulheres –
sobretudo nas relações de amizade. É também por esse motivo que
elas que surgem como heroínas, ocupando constantemente o primeiro
plano na diegese.
Zeta e a escrita
A intenção da Autora, para além da de evidenciar os problemas
sociais da pobreza, da violência e da exclusão vividos pela
população de Havana, é também a de evidenciar as dificuldades
sentidas por uma escritora como Zeta em conseguir realizar-se e ser
reconhecida como tal. O seu percurso é bastante mais tortuoso que o
de Linda, mais íngreme, uma vez que ambas não partem do mesmo
patamar. Zeta possui, no entanto, a experiência de vida e uma forma
de apreender a realidade totalmente diversa da de Linda: ao invés de
converter a sua vivência num romance policial, Zeta escreve sobe
emoções, pessoas, dificuldades do quotidiano e problemas sociais
apresentando o retrato de uma cidade cuja população, apesar de
estar a ser esmagada pela pobreza, demonstra um inquebrantável apego
à vida que se manifesta no culto à alegria e ao prazer. Há vida em
Havana para lá da pobreza.
O acesso à educação é, apesar de tudo, universal a todas as
camadas sociais, mesmo o ensino superior, o que permite gerar uma
amizade tão pouco provável como a de Zeta e Linda, cujas origens
sociais não podiam ser mais divergentes. A cumplicidade entre ambas
é estabelecida fruto do de serem detentoras de personalidades
complementares e afinidades ideológicas, que se traduzem num sentido
de ética que se pauta pelos mesmos valores e ideais de justiça,
onde o temperamento voluntarioso de Linda se coaduna com a doçura e
reflexão de Zeta.
Num dos episódios de maior teor literário e humorístico,
intitulado de “Mangas e goiabas” a Autora serve-se de uma
metáfora que reporta à variedade de frutos e sabores existentes –
e maior variedade ainda de gostos e preferências entre os humanos –,
para colocar Linda a explicar a sua orientação sexual a Zeta, num
dos momentos mais hilariantes do romance.
Uma obra aliciante de uma autora que esperamos que, um dia, possa
visitar Portugal.
Para quem quiser, tem aqui o primeiro capítulo a língua original:
17.09.2012 – 30.06.2013
Cláudia de Sousa Dias
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