“O Retorno” de Dulce Maria Cardoso (Tinta-da-china)
Romance premiado pelo Ministério da
Cultura Francês, em 2012, que valeu à Autora o Título de Cavaleira
da Ordem das Ates e das Letras, em virtude do impacto da obra de
Dulce Maria Cardoso em França e, particularmente , junto das
Comunidades Portuguesas naquele País. Este Prémio concedido pelo
MCF constitui uma das mais elevadas distinções honoríficas
atribuídas em França com vista a homenagear figuras que se destacam
pela contribuição para a difusão da sua cultura em terras
gaulesas.
As suas obras anteriores Campo de
Sangue, Os meus sentimentos e Até nós tiveram em
Portugal uma boa recepção por parte da crítica, sendo
posteriormente traduzidas para o francês e outras línguas. A autora
escreve também argumentos para cinema.
O Retorno
” obtivera o Prémio Especial da
crítica, o Prémio da revista Ler e o Prémio
Blogtailors 2011.
A Autora havia já sido brindada com o
Grande Prémio Acontece pelo romance Campo de Sangue.
Dulce Maria Cardoso é
originária de Trás-os-Montes, mas passou a infância em Angola, tal
como os dois jovens protagonistas de O Retorno. De
regresso a Portugal, licenciou-se em Direito vivendo, actualmente,
em Lisboa.
“O Retorno” é um
romance que aborda o tema delicado e polémico que foi para Portugal
a descolonização, o fim do Império Ultramarino e o conturbado
regresso dos Portugueses que habitavam as colónias, após a
Revolução de Abril de 1974.
A trama do romance é desenvolvida pela
voz de Rui, narrador auto-diegético, cuja missão é a de relatar o
regresso da família de Angola, no período “quente” em que
ameaça explodir a Guerra Civil mediante a cisão política que
grassa em Angola, após o fim imediato da Guerra do Ultramar. No
discurso de Rui está patente sobretudo uma perigosa dose de
inconformismo, que ameaça transformá-lo um ser inadaptado, ao
chegar à capital portuguesa, mas que acaba por se sublimar num
implacável instinto de sobrevivência. Este inconformismo provém-lhe
sobretudo do facto de milhares de portugueses residentes em Angola
serem condenados ao exílio, para não morrerem às mãos dos locais,
destacando o sentimento de impotência do narrador face à
fragilidade física e psíquica da mãe, agravada ainda mais pela
sensação de desenraizamento e perda de todos os bens.
Outro problema vivido na época por
quem regressava das ex-colónias e equacionado pela Autora é o
violento choque cultural face à forma de viver na metrópole e que
se encontra patente no discurso de Rui ao qual está muitas vezes
implícito um certo desprezo pela forma de viver, de ser e estar dos
portugueses da metrópole – habituados a meio século de
austeridade, repressão e pobreza, preconizadas pela ditadura do
Estado Novo, forma de viver que contrastava fortemente com o estilo
de vida dos portugueses das colónias,pautado por padrões de
comportamento que implicavam uma maior liberalização de costumes,
que se reflectia até no vestuário, sobretudo das mulheres.
O romance inicia com a exaltação do
contraste resultante entre o diferencial de expectativas e realidade
com que se deparavam à chegada. O imaginário do Portugal bucólico
de Rui, polvilhado de belas jovens dríades com cerejas no lugar de
brincos dos postais ilustrados, dá lugar a um Portugal de gente
cinzenta de ar anódino e triste que opta quase sempre pela ausência
de cor no vestuário.
A dor de deixar uma vida e uma casa
para trás como os refugiados de Gomorra está alegoricamente
representada no pungente abandono de Pirata, a cadela que era como um
membro da família, dada a impossibilidade de transportá-la no avião
sobrelotado. A isto junta-se a incerteza quanto ao paradeiro do pai
com forte suspeita de este já não constar no mundo dos vivos.
O Retorno tem
o mérito de explorar as consequências psicológicas
da Guerra do Ultramar na mente dos jovens de então, dominados pelo
cenário de incerteza e precariedade que caracterizavam a situação
de anomia social, vivida durante os anos conturbados da
descolonização logo após o 25 de Abril.
Mal chegam a Portugal, Rui e a família
e milhares de refugiados vêem-se obrigados a habitar por tempo
indeterminado
um hotel de cinco estrelas no Estoril, disponibilizado
pelo Governo para receber os “retornados”.
Mas a desagregação mental da mãe de
Rui – resultante do agravamento de um quadro clínico de
esquizofrenia que não foi adequadamente diagnosticado ou, na melhor
das hipóteses, de uma perturbação delirante, que se traduz em
surtos psicóticos ocasionais e chega a ser confundido pelos
familiares, o marido inclusive, com possessão demoníaca –
agrava-se mediante o quadro de instabilidade social e do clima de
medo em relação ao futuro que se vive no país. Já não se trata
da ameaça das bombas, ou da tortura vividas em Angola. É antes a
lembrança da prisão e desaparecimento do pai e a sensação de
desenraizamento juntamente com a falta total de apoio dos parentes
que residem em Portugal.
As condições de vida no hotel
rapidamente se degradam devido à sobrelotação. Os hóspedes
“especiais” sentem-se a viver numa colmeia ou num formigueiro.
Surgem os conflitos com a direcção do hotel, que emite normas cada
vez mais apertadas. As chamadas de atenção tornam-se constantes.
Aumenta o sentimento de raiva, revolta
e desprezo social por parte de Rui, fruto de um sentimento íntimo de
espoliação, sem conseguir interiorizar os motivos que conduziram à
situação que está a viver.
O romance peca apenas pela
unilateralidade de ponto de vista, já que vemos a situação apenas
pelos olhos de Rui. A trama sairia talvez enriquecida em termos de
profundidade se houvesse outras personagens cujo ponto de vista
pudesse ser cruzado com o de Rui, por exemplo, o olhar da mãe de
Rui, antes, durante e depois dos anos vividos em Angola, ou mesmo o
ponto de vista da irmã. Nota-se, talvez a falta de um olhar ou uma
voz feminina no tocante à descolonização sobretudo por parte da
irmã, a boa aluna que rapidamente se integra no ambiente urbano da
capital portuguesa.
Assistimos no entanto a um
desdobramento enunciativo no romance onde a voz do eu narrador que se
propõe narrar a estória está a fazê-lo num tempo posterior aos
acontecimentos, diferindo da mentalidade mais imatura do eu empírico,
isto é do Rui adolescente. O enunciador que corresponde à voz do
narrador é alguém que amadureceu e olha o passado com distância e
despreendimento depois de assistir à reconstituição da família e
de conseguir resgatar.
A exposição do ponto de vista e da
génese do sentimentos algo anti-social do jovem adolescente é feita
de forma a explicar alguns comportamentos hostis por parte de alguns
emigrantes das antigas colónias, um tipo de comportamento
cuidadosamente explorado no romance pela Autora. Eu diria mesmo que
assunto é tratado com pinças. O Rui de quinze anos de idade opta
por exibir uma atitude bastante hostil em relação ao meio social
lisboeta. A mãe refugia-se num mundo só dela pelo que, a explicação
dada por Rui acerca do estado interno da própria mãe é conseguida
na quase totalidade por conjecturas.
A mãe de Rui só sai do estado
letárgico a partir do momento em que a estabilidade regressa e o
país assiste à lenta retoma económica nos anos que se seguem, já
no dealbar dos anos oitenta...
No epílogo, a voz do narrador
transmite uma certa nota de esperança embora sempre com a
perspectiva de que nada é garantido.
Dulce Maria Cardoso traça neste
romance o retrato de um tempo situado na história recente de
Portugal, onde se encontra presenta a doxal, sobretudo no tocante às
alcunhas de algumas figuras políticas da época, mas com o mérito
de não ceder a tentações ideológicas de nenhum quadrante
político.
11.09.2012-09-06-2013
Cláudia de Sousa Dias
8 Comments:
Uma crítica fenomenal, como sempre :)
Puxa, que até corei...!
:-)
Obrigada, querida folhasdepapel!
bj
Folhas, eu adorei o seu blogue mas nãp vi lá espaço para deixar comentário...
É um tema que abrange a vida de tanto Portugal, mas do qual ainda custa muito falar e escrever.
Belíssima resenha, como nos habituaste!
Beijinhos
Beijinhos, M.
;-)
O livro de Dulce Maria Cardoso foi agora traduzido em francês e apreciei-o bastante, fazendo um "billet" para o meu blog. Nesta ocasiao tive oportunidade de ler a sua critica, que me pareceu justa e pertinente. integro aqui o "lien" para o meu comentario : http://blogs.mediapart.fr/blog/arthur-porto/200214/les-pieds-noirs-la-portugaise.
Cordialement,
artur de oliveira
Obrigada, Artur e sobretudo pela partilha do "lien".
;-)
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