“Oresteia” - “Agamémnon”, “Coéforas,” “Euménides” de Ésquilo (Edições 70)
Tradução, notas e prefácio de Manuel
Oliveira Pulquério (Faculdade de Letras de Coimbra)
Parte I – Agamémnon
Ao analisarmos os padrões de cultura
greco-latina, um dos principais pilares que sustentam a mentalidade
europeia e moldam a civilização ocidental, seja no que diz respeito
às artes, ao pensamento filosófico ou até mesmo ao modelo de
construção do Estado e funcionamento das respectivas instituições,
verificamos que a actual cultura europeia continua a ser o
prolongamento da cultura grega clássica e do antigo Império Romano.
Deste ponto de vista, torna-se impossível conhecer em profundidade o
mundo em que vivemos sem também olharmos criticamente e com detalhe
a civilização que lhe deu origem, isto é, sem mergulharmos, como
diz o Autor do prefácio, “nas suas raízes ancestrais”. É
desta perspectiva que Ésquilo é visto com o criador da
tragédia (G. Murray). Nasceu em Elêusis (525/524 A.C.), mas a sua
vida como homem de letras desenvolve-se entrelaçada com a história
da Grécia, especialmente no século V A.C., tendo assistido à
passagem da tirania para a democracia e participado com consciência
cívica nas jornadas da Maratona (490 A.C.) e Salamina (480). Na sua
lápide, consta apenas a referência às campanhas militares, nada
relacionado com a sua obra escrita. Houve, no entanto outros
dramaturgos que, antes dele, se aventuram na composição de peças
trágicas, como Téspis, Frínico, Cérilo ou Pratinas, mas cuja obra
se perdeu no tempo pelas vicissitudes da História (invasões,
destruição, pilhagem, incêndios...). Mesmo em relação a Ésquilo
apenas uma pequena parte daquilo que escreveu sobrevive até aos dias
de hoje. Isto apesar de o dramaturgo ter dedicado a maior parte da
sua vida à escrita, com especial incidência no tocante à arte
dramática. Participou e venceu várias competições literárias,
nomeadamente, o concurso dramático Dionísias Urbanas dirigido
àqueles que, em idades muito jovens, iniciavam a carreira dedicada à
escrita literária.
Em 472, é representado um drama
histórico da sua autoria – Persas – a mais antiga das
tragédias de Ésquilo, que chegaram intactas aos dias de
hoje. Outros trabalhos como Prometeu Agrilhoado ou As
Suplicantes são de difícil
datação. Os Sete contra Tebas
são já de 467 e a
Oresteia
de 458, cerca de dois anos antes da sua morte. Manuel Oliveira
Pulquério, da Universidade de Coimbra, sublinha que, das tragédias
esquilianas que sobreviveram até à actualidade, é destacada a
importância da Orésteia,
pela mudança de paradigma social, ético e religioso, bem como de
modelo de Estado que lhe está subjacente.
Os poetas trágicos – categoria em
que Ésquilo se encontra incluído – concorriam na
Antiguidade aos concursos dramáticos, organizados no âmbito das
festividades dionisíacas, com conjuntos de quatro peças ou
tetralogias, as quais correspondiam a uma trilogia trágica e a um
drama satírico, sem que estas estivessem necessariamente ligadas
entre si.
A Ésquilo deve-se a criação
da figura da “grande trilogia temática de que a Oresteia é
o maior e o mas perfeito exemplar que nos chega às mãos no século
XXI” (Pulquério). Durante a acção dramática homens e deuses
(Zeus, Apolo e Atena) são mobilizados para encontrar uma solução
que quebre a cadeia de culpa e expiação que liga fatalmente as
personagens. Uma culpa que é simultaneamente pessoal e hereditária:
«Mas Apolo e Orestes, o deus e o
homem, hão-de superar este conflito de deveres, quando os deuses
antigos (as Erínias, Fúrias ou Euménides) cederem à realidade dos
novos tempos , representada pelos novos deuses olímpicos, que com a
vitória sobre os outros deuses e sobre si próprios irão inaugurar
uma nova era de paz, tanto para os mortais como para os imortais.
Estes deixarão (…) por força de um direito de instituição
divina (Atena é fundadora do Areópago) de ser árbitros da vida e
da morte vinculados a um destino, a que não têm hipótese de
libertação...» (MOP, 2010)
A principal
consequência desta mudança de paradigma é a impossibilidade de,
daí em diante, ser definitivamente revogado o paradigma de uma
sociedade matriarcal, onde vigorava o primado do paradigma feminino,
maternal, onde a Mãe teria toda a responsabilidade na geração dos
filhos. Nesta sociedade matriarcal, seria um crime absolutamente
hediondo e sem expiação possível a perpetração de um matricídio,
ou já agora o assassínio, mesmo que sob a capa de sacrifício aos
deuses, da filha de uma rainha. Mas no novo modelo emergente de
sociedade, a sociedade patriarcal, o papel da mulher é
desvalorizado, passando esta a ser olhada como uma mera incubadora
da semente masculina, responsável pela geração de novos seres.
Neste contexto, muitos estudiosos da literatura clássica defendem
que Orestes se sentiria obrigado a praticar o assassínio da própria
mãe para vingar o pai. A Oresteia representaria,
deste ponto de vista, um momento de viragem na formação da
consciência da cultura grega e na relação do homem grego com a
divindade a qual se repercutiria, mais tarde, por todo o mundo grego.
Assim, em Agamémnon, a primeira parte desta trilogia
dramática, o tema principal será a vingança. Os deuses que dominam
as Fúrias, sedentas de sangue, pretendem encontrar uma forma de
conter a emoção dominante que estas inspiram nas personagens que
protagonizam o drama, nas quais o ódio, o furor, que leva sempre a
uma espiral de violência e morte: Clitemnestra e Orestes.
O drama
No regresso de
Tróia, o general Agamémnon obtém uma recepção de pompa e
circunstância, preparada pela mulher, Clitemnestra, a qual tem vindo
a urdir um plano secreto. A Rainha faz com que o marido peque por
soberba e incorra na ira dos deuses, estendendo-lhe um tapete
púrpura, a cor destinada apenas aos imortais. Mas esta honraria que
enche o monarca de vaidade, é muito superior ao seu bom senso
sentido de moderação. Perante o sucumbir do marido à soberba,
incorrendo em hybris, Clitemnestra julga estar desculpada,
perante os seres divinos pelo que vai fazer a seguir: matar o marido
em privado, enquanto este está no banho, à machadada. Fá-lo, diz
ela, não para punir o marido pelo seu acto de soberba para com os
deuses, mas antes para vingar a morte de Ifigénia, sua filha e de
Agamémnon, sacrificada no altar de Artemísia pelo pai, em Áulida,
antes de a armada partir para Tróia, cerca de dez anos antes.
Clitemnestra ataca
o corpo do marido usando um machado, no preciso momento em que este
se encontra mais vulnerável: durante o banho.
Portanto, temos
aqui o motivo para o crime: um castigo exemplar ditado pelas Fúrias
e ao mesmo tempo a punição sem contemplações por parte dos deuses
de uma ambição desmedida num homem que não olha a meios para
atingi os seus fins, pois além de ser capaz de matar uma filha pelo
poder e pela glória, ainda ousa pisar um tecido destinado somente
aos deuses por vaidade.
A guerra de Tróia
fez-se com os exércitos dos reis das várias cidades gregas, dizem
estes, por vontade de Zeus, que estaria ofendido pelo rapto de
Helena, se se acreditar realmente nos deuses. E Clitemnestra acredita
que, por detrás desta “vontade dos deuses”, está o interesse do
homem político isto é, a vingança de Menelau, o marido traído e,
claro está, os interesses económicos das várias cidades-estado
gregas: o controlo do Ponto Euxino, que une o Mediterrâneo ao Mar
Negro e permite o controlo do comércio marítimo e do metal que
compõe a liga de que é feito o bronze, material de qual eram
feitas, na altura, as armas de guerra.
Artemísia,
sobretudo, não queria a guerra de Tróia, nem o sacrifício de
Ifigénia. Por isso, exigiu um sacrifício a que nenhum pai se
submeteria, uma vez que, todo o progenitor tende normalmente a
proteger as suas crias. Mas Agamémnon, cego pela ambição, ignora
os verdadeiros motivos do pedido da deusa. Agamémnon, confunde, na
verdade, os seus próprios desejos pessoais e egoístas com a vontade
dos deuses.
O Coro, nesta
primeira parte, representa “a voz colectiva que se pronuncia sem
hesitações sobre o sentido dos acontecimentos” (Pulquério).
Mas outro aspecto
importante, eu diria mesmo fundamental, na peça é o carácter
ardiloso de Clitemnestra. Há todo um conjunto de elementos, desde o
estender do tapete tingido de púrpura, até aos elogios com que vai
cumulando o marido, passando pelas honrarias, são tudo indicadores
de premeditação do crime que irá cometer.
Agamémnon, por
seu, lado, torna-se odioso aos deuses. Ao pisar o tapete incorre em
hybris. Clitemnestra, que o conhece demasiado bem, tenta-o com
a vaidade e o orgulhoso monarca cai na armadilha.
Agamémnon – «Os
deuses é que devem ser honrados dessa maneira: eu, mortal que sou,
não posso caminhar sem medo, sobre estas belezas bordadas. Entendo
que devo ser honrado como um homem e não como um deus.»
E, no entanto,
fá-lo, cede à tentação. A vaidade prova a sua hipocrisia.
Agamémnon, o rei de Argos, ofende os deuses e marca de forma
indelével, o seu destino, ao entrar em casa sem remover as
tapeçarias sumptuosas. Mas já anteriormente tinha recorrido a um
estratagema semelhante: ao sacrificar a filha, fingiu obedecer à
vontade da Deusa enquanto ocultava o verdadeiro motivo para o
infanticídio: a ambição.
No momento em que
Agamémnon chega a casa, o Povo está revoltado e os deuses também.
Daí a atitude de Clitemnestra, que se sente apoiada pelo povo, pelos
deuses e pelo amante, Egisto. Além disso, os deuses estão irritados
pelo facto deste rei Átrida ter arrasado, em Tróia, os altares dos
mesmos deuses. E sendo Agamémnon, o último rei da dinastia Átrida,
este ainda carrega em si uma culpa hereditária, pelos crimes dos
seus antepassados, já que o pai de Agamémnon, teria servido ao
irmão, Tiestes, a carne dos próprios filhos num banquete de
“reconciliação”. Agamémnon por sua vez demonstra a mesma
impiedade em relação à própria filha, a qual se torna um génio
vingador – daimon –, activando a Fúria, cúmplice e
instigadora de Clitemnestra.
«Deste modo, as
personagens centrais da tragédia, Agamémnon e Clitemnestra,
aparecem iluminadas por uma luz de trágica responsabilidade que lhes
agiganta a estatura e, ao mesmo tempo, projecta uma sombra em que se
ocultam sombras divinas e humanos perfis, prenunciadores do futuro.
Deste mundo de sombras, sairá Orestes para, a seu tempo, vir
desempenhar o seu papel» (Pulquério).
Clitemnestra, por
sua vez, é uma figura que irá atingir proporções demoníacas, ao
contrário de Egisto, que se apresenta sempre como um ser fraco, sem
carácter, cobarde.
Na primeira cena de
Agamémnon, a rainha
Clitemnestra aguarda ansiosamente notícias de Tróia, inquirindo o
vigia, que procura indícios e presságios. A comunicação é feita
através de sinais de luzes, sinais de fogo, de um posto de vigia
para o outro, formando um corredor de fogo que percorre toda a
distância que separa Tróia da Hélade. Ao mesmo tempo, a voz do
povo, personificada pelo Coro alude ao facto de o lugar do rei estar
já tomado no coração da Rainha. O observatório, situado no
telhado do Palácio Real, funciona como lugar captador de notícias
e, simultaneamente, de interpretação dos astros como se vê pelo
comentário:
«Envia aos culpados
a Erínia.»
Para os punir.
O Coro comenta a partida do Átrida, ao som dos gritos da multidão
que ecoam como os gritos dos abutres.
«Envia contra Alexandre
os filhos de Atreu.»
Alexandre é Páris e os filhos de Atreu são Menelau e Agamémnon.
Referem-se ainda a Helena, com desprezo, pois tomam-na como
responsável pela deflagração da guerra.
«tudo por causa de
uma mulher que
foi
de muitos
maridos.»
Este corredor de fogo de notícias é uma espécie de Código Morse
que chega durante a noite percorrendo caminho desde o Ílio a Argos.
A invasão de Tróia foi justificada com presságios e oráculos,
interpretados subjectivamente por servidores das respectivas casas
reais e, neste caso, pelo vigia, o qual acredita que Artemísia não
queria realmente a invasão de Tróia. Como tal, receia que as Fúrias
se abatam sobre Agamémnon, para vingar Ifigénia, usando
Clitemnestra como instrumento. Além do mais, a ira popular está ao
rubro, devido à perda dos filhos da Tróade, durante aquela guerra
interminável que destruiu uma geração inteira.
«Pois não há defesa para o homem que
na embriaguez
da riqueza faz desaparecer
a pontapés o fundo altar da justiça.»
A longo de toda este drama trágico há sempre referência a
episódios anteriores, pelo recurso à alusão, ao tempo da história,
uma vez que os acontecimentos se sucedem rapidamente e em poucas
horas tendo como cenário o Palácio Real, havendo durante toda a
acção unidade de espaço (a acção passa-se sempre no palácio
real, à entrada, com excepção do assassínio, nos aposentos do
rei, mas a que o público não presencia, limitando-se a ouvir o que
se passa) e de tempo (os acontecimentos sucedem-se no espaço de
poucas horas). A obra é escrita para um público conhecedor, leitor
e sobretudo espectador, que aprecia o espectáculo do drama.
O
Coro não acredita nas notícias de Clitemnestra, não confia nos
seus motivos. Já o Arauto está persuadido de que a falta cometida
por Tróia foi muito inferior ao castigo sofrido, pois Agamémnon
excedeu-se na crueldade, nos saques e nas pilhagens.
Por outro lado, Clitemnestra não consegue cativar a simpatia dos
leitores ou espectadores porque não se comporta com a abnegação de
uma heroína. Pelo contrário, recorre à dissimulação e à
mentira, pois ao saudar Agamémnon, diz-lhe exactamente o contrário
daquilo que toda a gente sabe.
Na Antiguidade, os Gregos temiam a inveja dos menos favorecidos pela
fortuna ou dos menos capazes, mas temiam mais ainda a ira dos deuses,
face aos homens orgulhosos que pretendiam equiparar-se a eles ou
ultrapassá-los.
«Pois não há muitos homens capazes
de respeitar
sem inveja um amigo
afortunado.»
Clitemnestra saúda o marido com manifestações de fidelidade, amor,
zelo, mascarando os verdadeiros sentimentos pois, na verdade,
odeia-o. Prova disso é a armadilha que lhe tece com o tapete, de que
já falámos. Mas, ao mesmo tempo, torna-e ela própria, pelos
estratagemas que utiliza, odiosa tanto aos homens como aos próprios
deuses.
Agamémnon repara no exagero das atitudes da esposa mas mesmo assim
decide ignorar a própria intuição.
«não me estragues com luxos como
se eu fosse uma
mulher, não me recebas,
como a um
bárbaro, de boca aberta, aos
gritos,
prostrada no solo a adorá-lo,
nem faças com
que o meu caminho
desperte a
inveja, pintando-o de púrpura.»
No entanto, Agamémnon aceita facilmente a lisonja, após a persuasão
de Clitemnestra. Esta apercebe-se daquilo que se vai passar. Odeia a
cegueira de espírito que domina os Átridas, cuja selvajaria se
assemelha à de Chronos, que devorava o próprio sangue.
Mas quando o Leão de Argos regressa à casa real, é a figura de
Egisto que se esconde por debaixo da máscara de esposa amorosa.
Clitemnestra esconde dentro de si um monstro sedento de vingança.
Disto se apercebe Cassandra, que acompanha Agamémnon como
prisioneira. Por fim, a Rainha usa a princesa troiana como mais um
pretexto para matar o marido. Cassandra prevê, ainda, que o filho de
Agamémnon exerça o seu direito de vingança, perpetuando o ciclo de
mortes sangrentas dentro da família. Egisto, por sua vez, é
equiparado a um lobo, enquanto Clitemnestra é equiparada a uma Leoa
que se deita com um Lobo na ausência do Leão. Acossada pela
população, a rainha confessa o motivo do crime, tentando
justificá-lo: vingar a morte de Ifigénia, chamando a atenção para
a injustiça do facto de o povo atribuir um maior valor à perda de
uma vida masculina do que a uma vida feminina, de um rei tirano em
detrimento de uma criança inocente. Mas na verdade, o que
descredibiliza a rainha perante o povo é a presença de Egisto na
casa real, um homem que está longe de ser amado pelo mesmo povo.
Sobretudo porque este tentara já submeter a ira popular pela
repressão e pela fome, levantando o perigo de uma guerra civil. E
este foi o verdadeiro crime de Clitemnestra.
Parte II -
“Coéforas”
A segunda parte da Oresteia inicia-se logo após o
clímax da tragédia que é a cena do crime, perpetrado por
Clitemnestra. Por esta razão, a cena inicial de Coéforas
decorre num ambiente tranquilo de forma a criar um forte
contraste com a última cena da primeira parte. Neste momento do
drama, estão a decorrer as exéquias de Agamémnon, acompanhadas
pelo coro das carpideiras – as Coéforas, as portadoras de libações
destinadas a aplacar o espírito do morto “que os intérpretes de
sonhos dizem irritado contra os seus matadores”.
É durante o funeral que se dá o reconhecimento dos dois irmãos –
Electra e Orestes, separados nos primeiros anos da infância. Orestes
surge junto ao túmulo do pai, com Pílades, o sacerdote, cruzando-se
com Electra. Em segundo plano, está o Coro, a acompanhar o cortejo
fúnebre.
Segundo Manuel Oliveira Pulquério, em Coéforas
existem duas forças em oposição muito fortes, duas ordens de poder
que impulsionam a acção: Clitemnestra, por um lado, e o espírito
de Agamémnon, projectado na voz do Coro, pelo outro.
Clitemnestra representa as forças ou divindades ctónicas, as quais
também exercem forte influência na história familiar dos Átridas,
sobretudo as Erínias, autênticos monstros que clamam pela vingança
de sangue. Ao passo que Orestes, apesar de impelido por estas –
para vingar a morte do pai – representa os deuses Olímpicos, menos
primitivos e que, nesta peça, se fazem representar pelo deus Apolo,
a partir de Delfos, onde se situa o Oráculo.
A raiva das Erínias é despoletada pelo espírito do morto o qual
segundo o vaticínio dos sacerdotes, não estaria em paz:
Consumada a vingança
os dois mundos
assumirão as
suas
características próprias e Apolo
defrontará um
novo poder
as Erínias,
num combate onde
o coro de
Orestes sairá
vivo, sim, mas dilacerado.
Assim, o primeiro encontro dos dois irmãos junto ao túmulo é, na
perspectiva de MOP é a cena do reconhecimento, onde ambos se
identificam como irmãos, separados na infância por questões de
segurança – ao que parece, Clitemnestra não confiava totalmente
em Egisto – e que, já adultos, se identificam como irmãos,
através da descodificação de elementos identificativos conhecidos
por ambos.
Assim a anagnórise parece ser, de acordo com a opinião de
vários estudiosos esquilianos, o principal elemento da Coéforas,
através do dialogo entre os irmãos e o Coro. Este último tem como
missão a de descrever a situação política da casa dos Átridas
,de tal forma que tornará menos surpreendente o matricídio, a que é
impelido Orestes. Este identifica a voz do oráculo com o próprio
impulso vingativo. No entanto, Orestes poderia sempre desobedecer ao
Oráculo e arcar com as consequências da desobediência à voz do
deus, uma vez que as Fúrias também não perdoam um crime de sangue.
Daí o dilema entre a dor do remorso, instilada pela Erínias e a
necessidade de justificar o seu acto como uma ordem directa do deus.
Para Manel Oliveira Pulquério será o conflito interior entre a
tomada de decisão de Orestes e a própria personalidade que vai
conferir à obra a dimensão de tragédia. A decisão que Orestes
toma a respeito do matricídio só se torna dramática por estar
ligada à dimensão da sua responsabilidade individual. Seja qual
for a decisão que tome, Orestes sofrerá consequências. E é por
esse motivo que o seu caminho é cheio de espinhos, hesitações e
dúvidas. É encorajado por Pílades, o sacerdote. Aliás a classe
sacerdotal na antiga Grécia e noutras civilizações está,
normalmente, por detrás das decisões governamentais, instituindo-se
como um autêntico governo sombra. Neste caso, a classe sacerdotal de
Argos não quer nitidamente a chefia da cidade-estado por uma mulher
que, além de tudo, é influenciada por um homem sem escrúpulos que
usa a paixão feminina para se apoderar do trono.
Segundo o investigador Wilanowitz, citado por MOP, Ésquilo
decidiu colocar o matricídio como fonte de conflito entre o
sentimento filial de Orestes em relação à mãe e o sentido do
dever para com a ordem dada pelo Deus Apolo. Mas claro, podemos
sempre optar por uma interpretação psicanalítica, afim de
completar a explicação antropológica: poderíamos dizer que Freud
não hesitaria em afirmar tratar-se este conflito de uma oposição
entre o ID, o inconsciente – o amor cego pela mãe – e o seu
Superego, ou seja a sociedade, que exigiria a punição do crime. A
voz dessa mesma sociedade exprimir-se-ia através do oráculo,
proferido por um sacerdote ou sacerdotisa. Assim, o conflito interno
de Orestes, que é precisamente aquilo que o torna humano, atribui ao
mesmo tempo a culpa ao deus Apolo, desresponsabilizando a sua própria
pessoa. Mesmo assim, Orestes passa a ser assolado pelas Erínias,
logo após a morte de Clitemnestra. É atormentado pelo remorso,
perseguido pelas Fúrias, por ter assassinado em consanguinidade.
Orestes é julgado no tribunal da própria consciência, junto ao
oráculo de Apolo, em Delfos.
Na segunda parte de a Oresteia, Ésquilo cria
as condições para o conflito que opõe as duas principais forças
sobrenaturais adversárias: de um lado Apolo, a defender que qualquer
crime deve ser punido pela mão do parente mais próximo da vítima
(Orestes, neste caso); e as Fúrias/Erínias, encarregues de punir os
crimes contra o próprio sangue. A esta oposição, está subjacente
duas concepções diferentes de Justiça: de um lado, um sentido de
justiça mais lato, que transcende os limites estreitos do Direito;
do outro, representado pelas Erínias, está a concepção do velho
Direito, baseado nas relações consanguíneas. Começa, no entanto a
prevalecer a primeira, representada pelos novos deuses como Apolo,
Artemísia e Atena.
O povo respeita a rainha Clitemnestra, mas no entanto teme-a, não a
ama. E teme, sobretudo, Egisto. E é sobretudo em Egisto que os
filhos de Clitemnestra não confiam. Egisto é, realmente, o
verdadeiro motivo de matricídio de Orestes, assim como foi o
verdadeiro, ou pelo menos principal motivo do assassínio de
Agamémnon, perpetrado por Clitemnestra.
Ao longo da acção dramática, as Parcas e as Moiras vão cooperar
com Zeus e Dike (Justiça) e, também, com as próprias Erínias na
aplicação da justiça, com vista à manutenção do equilíbrio
entre culpa e expiação. A corroborar esta ideia encontramos, o
primeiro estásimo da primeira antístrofe, onde se assiste a à
crítica das paixões cegas e desenfreadas nas mulheres. A visada é
a rainha, a qual descura a família, para se associar a Egisto,
afastando os filhos do lar materno.
Um amor que não é amor apodera-se das
fêmeas,
destruindo a união dos casais, tanto
nas feras como
nos homens.
Na verdade aqui, também se alude a Helena, cuja louca paixão por
Páris despoletou uma guerra que durou mais de dez anos. Mas está
também, aqui, expresso o temor pela vida dos príncipes e,
sobretudo, o receio pela qualidade de vida dos cidadãos. Só esta
hipótese poderá explicar em pleno a contradição vivida por
Orestes. O matricídio nunca poderia ter sido perpetrado
exclusivamente por amor paternal, uma vez que a ligação dos filhos
ao pai é ténue, não só em virtude dos longos anos de separação,
mas principalmente porque o próprio Agamémnon é capaz de
assassinar o próprio sangue, se for do seu interesse, como vimos na
primeira parte, e sem dar quaisquer mostras de arrependimento. Logo,
o verdadeiro motivo para o assassínio de Clitemnestra só pode ser
pelo facto de os príncipes temerem pela própria vida. Por outro
lado, Orestes ao cometer matricídio em Coéforas, não
o faz friamente. Na verdade, custa-lhe fazê-lo, pois desvia os olhos
do rosto da mãe ao desferir o golpe. Os remorsos já o assolam ainda
antes de cometer o crime. Mas ao matar Egisto, olha-o de frente. O
ódio que lhe nutre, mantém-no ciente de que, ao matá-lo, defende a
própria vida.
O remorso, desferido pelo impiedoso ataque da Erínia, expulsa-o da
terra, obrigando-o a expiar a culpa no exílio, durante o qual irá
quase sucumbir à loucura, à cegueira moral e à ruína.
Parte III -
Euménides
O final de Coéforas foi marcado por um intenso clima
emocional. E, no início de Euménides, encontramos,
mais uma vez, um forte contraste com o final da peça anterior. A a
chamada “paz délfica” (Pulquério, 2010) cria o cenário onde se
irá debater não só o futuro de Orestes nas também o rumo e o teor
dos assuntos jurídicos do tocante ao Direito Penal na Hélade.
Em Coéforas, havíamos já falado de duas diferentes
concepções de justiça, associadas a duas classes diferentes de
forças sobrenaturais ou duas classes diferentes de divindades: os
deuses Olímpicos, representados por Apolo e Atena – Apolo fala em
nome de Zeus, pai dos restantes deuses Olímpicos, com excepção de
Hera – e as divindades ctónicas ou infernais representadas pelas
Erínias. Neste julgamento está em causa, como antes já foi também
mencionado, a passagem de uma sociedade matriarcal para uma sociedade
patriarcal onde domina o princípio masculino. Em Euménides o
tribunal dos deuses decide discutir se é mais grave matar um marido
ou uma mãe Trata-se, na verdade, de uma questão insolúvel, que se
torna evidente perante a fraqueza dos argumentos de ambas as partes.
Apolo, por seu lado, desvaloriza o papel da mãe, na defesa doa
filhos – aqui temos o primado do masculino, na visão Olímpica da
sociedade. Já as Erínias, irão defender o ponto de vista oposto.
Ésquilo demonstra, com desenlace das Euménides, a necessidade de
justificar a personalidade de Orestes, sem deixar de enfatizar a
relevância do direito de Clitemnestra como mãe, que tem um valor
máximo aos olhos das Erínias, permitindo a estas tomar a defesa
incondicional da rainha de Argos. O julgamento é presidido por
Atena, que pertence ao grupo dos jovens deuses, a qual parece tomar o
partido de Apolo. Atena assume o papel de árbitro do destino. O
julgamento termina com a igualdade de votos, tornando o conflito
irresolúvel, mas implicando a absolvição do réu, pela aplicação
do princípio in dubio pro reo (em caso de dúvida, decide-se
a favor do réu). Nesta última parte da trilogia, ao contrário do
sucedido em Coéforas,a problemática incide no
conhecimento e não nas emoções - “Do plano frio e exigente do
conhecimento”.
Ésquilo apresenta a decisão dos deuses como incontestável,
algo que está patente na postura digna e irrepreensível de Atena.
Por outro lado, a metamorfose das Erínias em Euménides, implica a
superação do impasse e a diluição do conflito. O que acontece, na
verdade, nesta última parte da trilogia, é a requalificação das
competências destas três deusas, até agora infernais. Outra
curiosidade é a de que o julgamento é feito por homens, mas
presidido por uma deusa.
O princípio dominante é o de que todo o culpado deve ser punido. E
aqui temos dois culpados de crimes graves: Orestes e Clitemnestra,
onde cada qual tenta justificar o seu crime à sua maneira. Mas a
partir de agora, o crivo será mais fino. A Morte significa sempre o
fim do disfarce com que todos mascaram as verdadeiras motivações..
A máscara caiu para Agamémnon e Clitemnestra. Mas o acto de Orestes
é ordenado por um deus (Será? Ou pelos interesses dos
sacerdote? Ou do povo? Ou do seu próprio instinto de sobrevivência?
Ou da sua ambição, da qual provavelmente, se envergonha?). Mas seja
qual for o motivo que tenha levado Orestes a matar a própria mãe,
este não partiu da hybris, havendo, ao invés disso, uma
evolução acerca da natureza do crime que se liga ao sofrimento que
o perpetrador experimenta e obriga à purificação e não à
destruição, em nome da fama e da glória como é o caso de
Agamémnon, ou do apego ao poder como é o caso de Clitemnestra.
No final, Zeus, o pai dos novos deuses, juntamente com a Moira vão
decidir e deliberar quanto à passagem de homens e deuses a um
estágio mais elevado, relativamente ao próprio destino. A Erínia é
vencida, no tribunal cuja autoridade reconhece. Mas ao mesmo tempo, a
sua natureza é tocada por um anseio de harmonia e paz que aproxima
homens e deuses. E o instrumento desta transformação é a Palavra.
As Erínias habitavam antes o Tártaro, a parte mais profunda e
terrível dos Infernos, mas agora o seu domínio será o solo da
Ática. São convertidas de perseguidoras cegas e furiosas em
defensoras da verdade e da justiça, como garante do bem-estar
espiritual e material. Este é um importante ponto de inflexão não
só na História, mas também na forma de conceber o Direito, a
Religião e as relações humanas para os Gregos. A vitória dos
deuses olímpicos face aos deuses ctónicos dá origem a uma nova
era: a era da Razão, representada pelas instituições que definem
um estado de Direito. O Direito que vem responsabilizar o indivíduo
pelos seus actos, sob o olhar benigno dos deuses.
O Drama
Em Delfos, a Pitonisa encarrega-se de contextualizar as personagens,
ao mesmo tempo que representa o papel de porta-voz de Lóxias ou
Apolo, profeta e deus. Pela voz da Pitonisa, Apolo repreende as
Erínias, acusando-as de serem perpetuadoras da Vingança. Por outro
lado, o Corifeu, representante da voz colectiva, acusa Apolo de ser o
Autor do crime.
A entrada de Atena e a sua postura digna frisa o valor supremo da
equidade, enquanto mecanismo regulador da justiça.
Apolo defende, conforme se pensava na época, que o matricídio não
é crime de sangue, (hoje o argumento nunca seria válido), devido à
crença de que a mulher não teria parte na concepção, apenas uma
incubadora de novos seres.
O Final:
Face ao resultado, Atena dirige a sua acção no sentido de acalmar a
fúria das Erínias ao proceder à requalificação das suas funções.
Trata-as com o máximo respeito, de forma a que não se sintam
humilhadas assim como Némesis, a deusa que garante o equilíbrio de
poderes na administração da justiça, ao eliminar a Phtonos ou a
Inveja, tida entre os Gregos como a causadora das maiores desgraças
e infortúnios entre os homens.
Conclusão: Apesar da perda do primado do masculino e da
desvalorização do papel da mulher na sociedade, com as
consequências negativas que se verificaram para a população
feminina das civilizações ocidentais, nos quase dois milénios e
meio que se seguiram, a administração do Direito sofre uma evolução
lançando, a partir dos séculos imediatamente a seguir à publicação
desta obra, uma nítida salto qualitativo para o lançamento das
bases para a fundação do Direito Romano, durante o período da
República, que são as bases do Direito na Europa mesmo nos dias de
hoje.
Fev 2012 –
8-03-2013
Cláudia de
Sousa Dias
2 Comments:
Excelente incursão nesta esfera!
bj
eu também achei...
:D
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