“O Sangue do Mundo” de Catherine Clément (ASA)
Tradução de Isabel St. Aubyn
Depois do êxito do sublime romance A
Viagem de Théo, Catherine Clément decidiu escrever uma
sequela. Assim, ficamos a saber em que espécie de jovem adulto se
transformou o sobrinho de Marthe, a criança que sobreviveu ao
cancro. Desta vez, dando largas ao temperamento cada vez mais vincado
de milionária excêntrica, Marthe consegue convencer Théo, a
acompanhá-la em mais uma viagem à volta do planeta. E Théo é
agora estudante de medicina, com o objectivo de concluir a tese sobre
as doenças características dos países do III Mundo, isto é,
associadas à ausência de infraestruturas, relacionadas com os
problemas de saúde pública.
Através do recurso a métodos pouco
ortodoxos – ou nem tanto – a manipuladora Marthe consegue
persuadir Théo ao convencê-lo de que está doente e a acompanhá-la
na viagem que pretende realizar, a pretexto de uma cura emocional. Em
troca, promete ajudar sobrinho, dando-lhe os meios para prosseguir a
sua investigação no terreno, em vários continentes afectados por
problemáticas diversas. Mas a tendência para Marthe assumir o
comando das operações cedo desencadeia um conflito ao chocar com o
forte sentido de autonomia de Théo, o qual tem bem definidos os
moldes em que deseja concretizar a viagem. Afinal não se trata de um
passeio de teor propriamente recreativo.
O desenvolvimento da narrativa é feito
com base na dicotomia entre duas formas de ver o mundo: o hedonismo
materialista de Marthe, para quem o dinheiro é a solução de todos
os problemas e o idealismo ou as preocupações relativamente a um
futuro sustentável e saudável para o planeta, postura que é
incarnada pelo jovem estudante de Medicina que, no romance se dedica
a avaliar o estado de saúde do planeta. No aspecto psicológico,
temos a propensão para o hiper-dramatismo e algo histriónico de
Marthe a contrastar com a bonomia e altruísmo do sobrinho, habituado
já a lidar com condições adversas.
Sangue do Mundo está
longe de ser o melhor romance de Catherine Clément, mas é em
contrapartida aquele que mais questões obriga o leitor a colocar no
sentido de pensar a forma como tratar do planeta e os obstáculos à
sua optimização, regra geral de natureza, política, cultural,
religiosa, etc. A temática dos amores impossíveis, rodeados da aura
trágica do sublime passa a ocupar o segundo plano neste romance. O
desgosto amoroso ou mesmo a desilusão e o vazio emocional não são
totalmente alheios à personagens de Sangue do Mundo,
mas aqui o lugar central da trama é ocupado pela Terra, enquanto ser
pulsante de vida. E a Terra encontra-se gravemente doente...
A primeira etapa da viagem é Delhi,
uma das cidades mais poluídas do planeta e onde a pobreza como que
agride os sentidos do visitante estrangeiro. Entretanto, no avião, a
caminho de Delhi, Théo apercebe-se de que a verdadeira causa da
“doença” de Marthe é emocional. Esta propõe então que o
sobrinho a acompanhe à volta do mundo e, em troca, fornece-lhe os
meios materiais para prosseguir com o seu projecto de investigação.
Théo cede, mas as coisas têm de ser feitas à sua maneira: terá de
ser ele a escolher os locais a visitar ao longo do itinerário.
Assim, Delhi é a primeira etapa.
Tratando-se de um dos lugares mais populosos e poluídos do mundo
aquela cidade indiana torna-se um excelente ponto de partida para os
planos do jovem. A cidade sofre as consequências directas do
aquecimento global e do efeito de estufa. Devido ao excesso de
poluição atmosférica, a água do rio que banha a cidade está
inquinada sendo este o grande foco de transmissão de doenças
infecto-contagiosas para aquela população. A partir daqui, o estilo
da prosa de Catherine Clément adquire um tom cáustico, onde
a voz narrativa vai descrevendo os locais e a sua devastação,
entrelaçando estes momentos descritivos com diálogos acalorados,
discussões e debates que misturam a Filosofia, a Ética, a
Antropologia Cultural e Biológica e ainda, claro está, a Ecologia.
O objectivo é identificar as ameaças mais prementes que põem em
perigo o planeta e todos os que nele vivem, propondo soluções que
só parecem frágeis devido à enorme cegueira humana, o verdadeiro e
maior vírus que contamina a Terra.
De Delhi passamos a Benaresh e ficamos
a saber que, à parte da água, o principal problema indiano reside
numa complexa estrutura social, cujos tabus e condicionalismos
culturais muitas vezes colocam em risco os que habitam aquele
continente. O problema da Índia passa não só pelo excesso de
poluição e de população, mas também pela estruturação da
economia. Mas não só: são ainda factores culturais e religiosos
que sublinham a urgência de as chefias políticas encontrarem um
compromisso urgente entre ecologia e tradição.
Da Índia passamos, assim, ao
Uzbequistão e ao drama ecológico do mar de Aral, associado à
desertificação, onde o mar desaparece a uma velocidade assustadora.
A narração fica alternadamente a
cargo de Marthe e Théo. Outras pessoas se juntam, no entanto, à
viagem. Prem, o psiquiatra hindú, amigo e confidente de Marthe, cuja
amizade contribui grandemente para o bem estar da temperamental anciã
(e para a paz de Théo); Renate Stern, a jovem e inteligente
estudante judia, amiga de Théo, por quem este se apaixona.
Ainda no Uzbequistão constata-se com
pesar e tristeza a irreversibilidade da destruição de todo um
ecossistema, devido a uma política agrícola tão mal planeada
quanto irresponsável levada a cabo durante décadas.
A etapa seguinte leva os viajantes à
República dos Camarões onde o principal problema é, mais uma vez,
a falta de água potável e o saneamento, a par de uma progressiva e
inexorável contaminação biológica, a que se junta a acumulação
de gigantescas montanhas de lixo. Tudo aponta para necessidade
gritante de reciclar o lixo acumulado e controlar o crescimento da
lixeira, a par da necessidade de implementação de uma politica
governamental de tratamento do mesmo. O périplo de Marthe e Théo
continua em África, pelo Chade e Senegal onde, mais uma vez, os
grandes lobbies económicos colidem com as reais necessidades de
desenvolvimento local que beneficiariam a população. A Autora
aproveita, neste ponto do romance, para lançar uma dura crítica ao
chauvinismo europeu, em pleno século XX, já nos anos 60 e 70, mais
preocupada em usar os recursos alheios para atender aos próprios
interesses do que propriamente ao bem-estar das populações locais.
Daqui, fazem um desvio a Paris com o
objectivo de visitar a central nuclear de La Hague. Ao optimismo da
técnica que acompanha os viajantes numa visita guiada como se de um
museu se tratasse, opõe-se algum cepticismo dos viajantes,
sobretudo da parte de Théo. Esta oposição seria talvez mais
veemente se o livro tivesse sido escrito depois do tsunami de
Fukhushima. Por outro lado, a Autora não perde a oportunidade de
lançar um virote crítico aos mecanismos de empréstimo e de ajuda
financeira do FMI:
Gente disposta a financiar os países
do Terceiro Mundo, mas com um desprezo sem Fundo. Na opinião da
Autora, o verdadeiro significado que comporta a expressão “a fundo
perdido”.
Paris tem a Central Nuclear de La
Hague, a partir de cuja descrição ficamos a saber de todo o
processo de tratamento do lixo nuclear. Théo não se mostra muito
convencido, ao passo que Marthe quase se deixa seduzir pelos
argumentos da guia e dos técnicos. A diferença de posicionamento de
ambas as personagens é o meio através do qual se serve a Autora
para expor os pontos a favor e contra desta rentável mas altamente
poluente forma de energia, sem deixar de chamar a atenção para a
irresponsabilidade dos Governos Francês e Americano nos anos 1960 e
1970 nesta questão.
A última etapa da viagem é no Canadá,
com o povo Inuït, em que ficamos a conhecer um pouco mais da cultura
esquimó, praticamente em vias de extinção, devido à aculturação
e à destruição do habitat – ao degelo, sobretudo – e aos
lobbies do governo canadiano.
A viagem termina de forma dramática
durante um voo com destino à Europa. O final trágico de uma
história de amor que, apesar de ocupar uma posição secundária na
trama, faz-nos regressar ao toque poético eivado de nostalgia ,
típico de Clément, a sublinhar o lado trágico da vida, onde a
acção das Fúrias se manifesta quando menos se espera, à maneira
das tragédias clássicas, reduzindo o homem à sua fragilidade,
alertando-o para que a sua arrogância não ofenda os deuses.
25.07.2011- 23.10.2012
Cláudia de Sousa Dias
5 Comments:
Fiquei com vontade de ler o livro anterior e este também ^-^
beijinhos
o anterior é muito bom. Este também, mas num género diferente. Abrange também o público juvenil. Penso que foi intencional por parte da autora. Actuar como agente formativo na mentalidade dos jovens. Isso vê-se pela postura do protagonista...
:-))
Un bacio
:-)
Un bacio
Roberto
un baccio anche per te Roberto!
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