“Silêncio Inquieto” de Manuela Monteiro (Ausência)
Manuela Monteiro é natural da Beira, Penedono mais precisamente, embora tenha crescido no Porto. Licenciou-se em Filologia Românica pela Universidade de Coimbra. A maior parte das suas publicações literárias destinam-se ao público infanto-juvenil, tais como a colectânea de contos Histórias da Avó Manela”- uma edição da responsabilidade da Câmara Municipal de Famalicão com ilustrações de Manuela Bacelar -, A Montanha da Lua ou A Casa da Romãzeira.
“Nasci no Porto, mas a minha primeira infância foi passada numa pequena aldeia da Beira Alta – terra de pais e avós. Fiz o Liceu no Porto. Aos dezassete anos, rumei a Coimbra e licenciei-me em Filologia Românica na Faculdade de Letras da sua Universidade. A par das aulas, devorei “todos” os livros de “todas” as estantes do Instituto de Francês. Aí, a Literatura Francesa e as pessoas que esse tempo pôs no meu caminho deram-me um sentido de vida que ainda hoje é o meu. Leccionei Português e Francês nas muitas e diversas Escolas por onde fui passando. Aos quarenta anos, vim parar a Famalicão, cidade a vinte quilómetros do Porto – meu porto de abrigo e meu cais. Com o meu neto João e com os meninos do Infantário, onde ia semanalmente fazer a hora do conto, redescobri a infância. E comecei a escrever pequenas histórias. Por imposição dos meus alunos - comecei a escrever para jovens. E, escrita atrás de escrita, os livros começaram a aparecer (...) Aposentada há cerca de uma dúzia de anos, tenho vindo a partilhar com os alunos o meu amor ao livro e à leitura - em todas as escolas onde me chamam. É a minha maneira de agradecer à Literatura tudo aquilo que ela me deu" - revela a Autora em entrevista durante uma animação na Biblioteca do Freixo.
A obra Silêncio Inquieto revela-nos, no entanto, uma outra Manuela Monteiro – a Poetisa, mulher de inquietude permanente, passional, sensual,emocional e esteta. A estética das emoções é revelada, aqui, na sua plenitude, contida um volume que é um guia pelo qual entramos numa alma de um ser adulto e completo, cuja sensibilidade vai buscar inspiração à poesia ática e mediterrânica de Sophia de Melo Breyner, à sensualidade de Maria Teresa Horta e à rebeldia de Natália Correia. Tal como estas três musas que inspiram a Autora de que aqui tratamos, a veia poética de Manuela Monteiro não sofre a erosão do tempo por se tratar de uma mulher que está para além do seu tempo ao ultrapassar convenções sociais, apodrecidas pela obsolescência.
A poesia deste “silêncio”, que apenas se torna “inquieto” porque a liberdade de expressão se
encontra condicionada por um poderoso espartilho que são as
convenções de uma sociedade a debater-se com uma grande
dificuldade em encaixar duas facetas tão díspares como a da “avó” - a quel, do alto da sua sabedoria escreve para todas as crianças do
mundo -, e a da Mulher, que trata questões tão profundas e
subterrâneas como a temática do Desejo ou os diferentes tipos de
amor que podem caber no coração feminino.
A poesia de Manuela Monteiro é,
assim, uma poesia feita de água, sol, marés e maresia – o mar
para onde caminham todos os rios, o mar como símbolo do útero
feminino, o ventre da terra, o mar como o lugar último onde desaguam
todas as vidas, um símbolo ambivalente de nascimento e morte. A
proficuidade na utilização do vocabulário marítimo ou portuário
é disto exemplo, podendo significar uma partida, o encerramento de
um ciclo ou, ainda, o renascimento, o início de uma nova etapa ou
novas rotas a percorrer. Afinal estamos a falar de um livro de perdas e de um eterno recomeçar. Tudo isto como o resultado de uma inquietude
interior que impele à ânsia de partida iminente, no incontrolável impulso de soltar amarras, romper grilhetas e partir à descoberta.
Neste Silêncio Inquieto
estão contidas nas entrelinhas, logo após os primeiros poemas que
falam da partida da ânsia de partir, de impressões recolhidas de
viagens, de caminhos traçados e calcorreados. A Autora, tal como Paul
Gauguin ou Gabriel García Márquez parece encontrar em terras dos
Mares do Sul a terapia para os chamados males da civilização ou da
“civilidade” europeia, dos seus constrangimentos, contradições
e hipocrisias, tal como as aves que migram para os trópicos quando
se anuncia a chegada do Inverno, perseguindo o Sol, como fonte
primordial da felicidade.
Silêncio Inquieto é o
lugar onde moram emoções turbulentas, ocultas sob uma camada de
aparente solidez, quietude e estabilidade, a qual mantém submerso, um eterno inconformismo, face a uma sociedade que cristalizou no tempo.
A introdução à obra é feita
através do excerto de um poema de Sophia, cujas palavras marcam a
tonalidade emocional e temática, orientando a poesia da Autora, assumindo a posição de paradigma dominante, sobretudo no primeiro conjunto de
poemas, onde se exalta o espírito em ebulição de Manuela Monteiro:
Não se perdeu nenhuma coisa em mim
Continuam as noites e os poentes
Que escorreram na casa e no jardim,
Continuam as vozes diferentes
Que intactas no meu ser estão
suspensas.
Trago terror e trago claridade,
E através de todas as presenças
Caminho para a única unidade.
Sophia de Mello Breyner Andresen in
Obra Poética I
De acordo com o professor Vasco
Moreira, Autor do prefácio desta edição de Silêncio
Inquieto
«O mar é lugar de afectos e sítio
privilegiado para o amor, onde o tempo acontece e o ser se afirma».
Este “ser” que se afirma não é
mais do que a pulsão interior e inquieta da infinita ânsia de
liberdade, no tocante à expressão verbal e não verbal da Vontade em
todas as suas dimensões: afectiva, sexual, estilística, sempre na
contracorrente do “socialmente correcto” quando em conflito com
as próprias convicções.
A linguagem de Manuela Monteiro
compõe um quadro paradisíaco, em tudo semelhante às latitudes
Caribe onde, tal como no romance de Gabriel García Márquez O Amor
nos Tempos de Cólera se refugiam os amantes para viver a
felicidade até ao fim dos tempos. Mais: toda a linguagem utilizada
na poética de Silêncio Inquieto aponta para a ausência
de restrições ou limites. O Verão é a estação que reina ao
longo de toda a obra até ao início do Outono, ideia que é, também
ela, confirmada por Vasco Moreira:
«O mar parece confundir-se, por
vezes, com a própria natureza da mulher que o celebra. Lugar de
silêncios inquietos, é também a morada dos afectos e da expressão
de todo o amor genesíaco».
A ideia está patente em toda a sua
força no poema seguinte escrito sob o sol de Mallorca:
II
Na deserta mediterrânea praia
Na deserta mediterrânea praia
de areia branca e fina
adivinhei a tua presença
Amei-te no líquido leito
salgado e marinho
e esqueci a tua ausência
No poema que se segue temos, mais uma vez, o
sol de Palma de Mallorca a convidar à introspecção solitária da
Poeta:
III
Havia
um rebrilhar de nácar
sobre as águas
e um líquido e breve roçagar
de sedas
de sedas
tudo era nítido e real
Sobre um rochedo
esculpido pelo mar e pelo
vento
um pescador cumpria o seu
ritual
de paciência
e sal
Longe, uma ilha
e planando sua deserta lonjura
uma gaivota de asas
quietas
E tu eras a gaivota
E eu era a ilha
E, no poema que se segue, está
presente sobretudo o processo doloroso da cura do luto, onde a
saudade é pungente, curtida pelo sol impiedoso, ardente de um
verão sem tréguas:
V
Dói-me o céu
galgando em atlânticas
e azulinas vagas
as janelas subitamente
grandes demais
Dói-me o sol
cravando os seus mil punhais
em meus olhos secos
subitamente
cegos
Dói-me o voo dos pássaros
sobre a magnólia em flor
e dói-me o roxo magoado
da flor
da magnólia.
Dói-me a imperfeita beleza
deste amanhecer
dói-me tudo o que
a teu lado
me fazia ser
- perfeita
- perfeita
Os poemas I a VII incidem
no desejo incomensurável de liberdade, associada ao impulso da fuga
e a uma ânsia premente de renovação; em contraponto, a
tendência omnipresente para evocar, por via da memória, dominando a
nostalgia. Este conflito entre o desejo de ter presente o passado e a
necessidade de desconstruí-lo, ou melhor, reposicioná-lo, para
edificar um novo futuro agudiza-se nos poemas seguintes onde a dor toma a
dianteira. Dos poemas VIII até ao XII encontramos poemas nos quais a
dor pulsa, vivente e excruciante, resultando de um amor que já não
tem lugar na Terra e no Tempo presente:
VIII
Havemos de nos encontrar na luz de
Sírio
Em meus dedos hão-de florir lírios
e nardos
ávidos um para o outro caminharemos
correremos para o encontro marcado
desde o princípio dos tempos
em Sírio
E quando os nossos olhos se puderem
olhar
sem medo, em Sírio
Quando as nossas mãos se puderem
tocar
sem medo, em Sírio
Quando as nossas bocas de puderem
beijar
sem medo, em Sírio
a ave azul há-de partir
para lá da madrugada
Mas nós permaneceremos
nós pertencer-nos-emos
até ao fim dos tempos
em Sírio.
Os poemas seguintes descrevem o
paroxismo da dor, o esmagamento, face à inexorabilidade da perda,
apesar de a “ave azul” (a vida, o impulso da busca da felicidade)
continuar a sobrevoar a terra.
Há, aqui, duas forças opostas que puxam
a alma da Poeta em duas direcções diferentes: o vivenciar da dor e
o desejo intenso de fruição das coisas belas (ainda que
temporariamente em segundo plano), num corpo e alma que pulsam de
vida. A prostração face à implacabilidade da morte é temporária,
aparecendo na sua máxima pungência no final dos poemas XI e XII:
XI
(…)
Gestos mais perfeitos porque à
beira
do fim
Palavras mais belas porque
derradeiras
Mãos que nas minhas se fizeram
azuis
O último beijo
XII
O corpo dobrou-se
como um feto
na paz líquida
e quente
da placenta
O tempo parou
lento
e o pensamento
E eu quedei-me
assim
como num limbo
A segunda parte de Silêncio
Inquieto abrange os poemas de XIII a XVII. Trata-se de um
conjunto totalmente diverso do anterior, como se de um segundo tomo
da vida da Poeta de tratasse. São estes o âmago de Silêncio
Inquieto que exploram as profundezas subterrâneas da mente
numa alma onde se movimentam os sentimentos mais turbulentos, numa
tectónica emocional à qual está subjacente a lava líquida de
emoções vulcanizadas mas secretas e, no entanto, cobertas por uma
crusta lisa de basalto, terra, vegetação, lagos e aparente
serenidade. Em relação à primeira parte, permanecem ainda as
sensações de nostalgia e solidão como estado de alma.
Uma palavra para os belíssimos
desenhos da artista plástica Ana Ilhão, executados a tinta
violeta, que ilustram o início de cada conjunto de poemas deste
volume: a primeira parte está alegoricamente representada por um pássaro desenhado a notas musicais, que formam o corpo da ave
em lugar das penas. Trata-se de um desenho que é
metáfora-personificação e visa caracterizar a personalidade da voz
poética cuja alma é ave e para a qual o mundo não tem limites nem
fronteiras, sejam elas políticas, geográficas ou sociais. Trata-se
de uma alma que pretende levar o cântico do amor pelo mundo fora, em
todas as suas formas de expressão. Mesmo que seja a do sofrimento.
Na segunda parte, a voz poética
convida-nos a entrar no quarto secreto da sua alma, seja ela do
domínio do consciente ou não. A “voz” do "Eu" abre-nos a porta para o
compartimento mais secreto do seu mundo interior. A alma que sofre a
dor da perda na primeira parte desdobra-se noutra mulher – a Outra,
a sua dupla, um outro lado do “Eu”, como o outro lado do espelho
na Alice de Carroll.
Ana Ilhão representa esta
faceta dupla do Ego da Poeta , mulher-fêmea, incorporando o seu lado
carnal, uma mulher com o corpo físico, ligado à terra, ao impulso
telúrico do Desejo, mas cujas asas de pássaro canoro, cujas penas
são notas musicais e cantam por si, insistindo na necessidade da
manutenção de um espírito livre e andarilho e sem restrições à
Palavra. Uma alma cigana, errante, nas distâncias geográficas, na
liberdade de expressão, verbal e corporal, no amor. Como a Carmen de
Bizet, a Poeta é um pássaro livre, rebelde, que não se pode
capturar. Os poemas associados a esta figura têm como dominante a
temática que trata, ainda, da situação de conflito originada pela
dualidade da alma que se fragmenta em dois desejos opostos mas de
igual intensidade: o desejo de pertença, de entrega total a uma
emoção, que é como o caudal de um rio, mas de correntes perigosas
cheias de rápidos, onde o mínimo movimento e falso pode ser fatal, e
o desejo de liberdade absoluta e paz. Aqui está-se perante uma outra
forma de viver o amor. O amor-eros, a paixão encarada como o sal da
vida. No poema XVIII, somos convidados a entrar na corrente
subterrânea, tão profunda e misteriosa quanto imprevisível, deste
rio de emoções violentas:
XIII
Há no por dentro de mim
Há no por dentro de mim
uma porta cerrada
selada
e tão secreta
que a mim mesma
recusa
a entrada.
Os poemas seguintes são aqueles que
melhor representam o desejo que é ferido pelo desamor. O desejo
puro, sem tabus, onde não cabe qualquer tipo de condicionalismos de
carácter social ou cultural, amoral. Avesso, portanto, à mores, ao
costume, ditado pela sociedade. O desejo ilimitado de liberdade a
isso obriga. Libérté oblige à vivência
da paixão no fio da navalha – um amor que se afirma e confirma
maldito, porque colado, decalcado e tatuado na carne. Sucedem-se o
prazer, o júbilo e a ausência, após o que se verifica a
alternância da paixão e da distância física e emocional. À
paixão que surge como hybris
a desafiar os deuses – a sua inveja - segue-se o páthos,
a vingança decretada pelos Imortais. A felicidade convive com o
sofrimento ou, por vezes, estes elementos caminham lado a lado,
passando a dada altura a ser impossível destrinçá-los. À
felicidade mais perfeita sucede, sem qualquer espécie de pré-aviso,
o caos: a plenitude traz em si o gérmen da destruição:
XX
Queria ser
a que desperta a teu lado em cada
dia
te beija os olhos e segreda a
coragem
que em cada madrugada principia
a que põe na tua mesa o pão e o
vinho
Queria ser
a que está sempre contigo sem que o
saibas
te afaga o rosto e poisa as mãos nos
teus joelhos
te refresca no calor e te aquece no
frio
a que põe na tua mesa o pão e o
vinho
Queria ser
a que te abre a porta quando
regressas a casa
e apaga as tuas rugas de fraqueza e
cansaço
a que põe na tua mesa o pão e o
vinho
e a última rosa colhida no jardim.
O páthos,
está implícito na expressão anafórica “Queria ser”(o que, na
realidade não é possível ser), num cântico de louvor ao amor
conjugal. A Poeta quer ser o arquétipo de Eva, nesta fase, a
companheira perfeita de todas as horas, mas neste momento é Lillith
a mulher-demónio, feita de ar e fogo, mulher-chama. Há neste
“queria ser” uma lucidez inequívoca da realidade que irrompe o
sonho , a consciência do desfasamento entre a situação ideal e o
quotidiano, isto é, entre o paraíso imaginado cujo limiar estão
prestes a atravessar os amantes e a crueza da aridez de um deserto
depois de tudo acabar, ideia que é desenvolvida no poema seguinte:
XXI
Aceitaremos
o último raio do sol
no dobrar do verão
o ultimo turbilhão do vento
na despedida do inverno
o último voo do pássaro
à beira da noite
a derradeira pétala
caída
da rosa da madrugada
E beberemos em doirada taça
- amantes do poente – gota
a gota
o licor da vida que nos sobra.
A eminência do fim
está nas entrelinhas do poema. Há no entanto aqui, duas leituras
possíveis. A mais optimista, a da aceitação da velhice por parte
dos amantes. A outra, já mencionada, a da eminência do fim de um
amor que já aflora ao horizonte e é, já, pressentido.
O poema seguinte
marca o fim da fase idílica de um amor cuja forma predominante é
o Eros, de mão dada com a Volúpia. É a morte mais uma vez que
aflora o sentir da Poeta. Desta vez, uma morte virtual. A influência
de Natália, a segunda das três musas de MM espreita nas
entrelinhas:
XXII
Olhei meus olhos renascidos
no espelho intocado da manhã
Céus nocturnos e líquidos
derramando-se
no finito infinito do olhar
Tímido desabrochar de lírios
Desflorar trémulo de nardos
ocultando-se
na lua fendida das pálpebras
na inquieta sombra dos cílios
E a ave azul debruçada
no terceiro vértice
de Sírio
de Sírio
voou para lá da madrugada.
Nos poemas
seguintes nota-se um crescendum do desejo de libertação que
se vai sobrepondo, de forma gradual, ao passado recente, habitado
pela ave azul – a ave do paraíso-azul – onde tudo parecia
perfeito. Comecemos com o poema da rebelião:
XXIII
Recuso o beijo o abraço o sexo
Recuso as carícias sábias de mais
Recuso as mentiras em que fingi
acreditar
acreditar
para te não perder
Recuso ver violada a clara claridade
e a verdade
que ainda resta em mim
Recuso permanecer no cais à espera
de um navio que não virá jamais
Recuso os dias e as noites
em que, por teus silêncios, morri
Recuso-te.
De salientar a
poderosa energia que emana deste poema quando declamado pela
aliteração em R. Cada frase começada com esta letra é uma
afirmação veemente, a qual contém o R de Revolta, de Rebelião, ou na telúrica onomatopeia (Rrrrr...) que se assemelha ao ribombar do
trovão. Também a aliteração em V acentua a mesma veemência,
associada à tempestade emocional presente no poema: a do vento
disposto a varrer tudo o que encontra no caminho, antes de estalar a
tempestade.
Após a tempestade,
a mulher de asas de pássaro que encontrávamos no conjunto anterior
de poemas é transformada novamente em ave, colocando de lado, temporariamente,
o eu-fêmea. Põe de lado a mulher fêmea, mas é livre. É
mulher-pássaro. O desejo de assumir totalmente esta faceta está
patente no dístico:
Na clara
imensidão da maré vaza
me farei sopro brisa vento asa
O retrato do
inferno emocional, as sequelas do amor que devastam o Eu é ilustrado
no poema XXVI, com as marcas metafórica de destruição da alma, projectadas num corpo destruído. Trata-se do mais violento poema de
toda a colectânea, cujas metáforas são verdadeiras feridas de
guerra:
XXVI
O gume
a faca
o fel
o látego
a lâmina,
o ácido das palavras
queimaram em meus olhos
as lágrimas
silenciaram em meus lábios
o grito
rebentaram em meus ouvidos
granadas
deceparam meu corpo caule quebrado
mutilaram meus dedos pétalas caídas
apunhalaram meus seios pérolas e
sedas
violaram meu ventre concha
adormecida
rasgaram meu sexo magnólia roxa
O gume
a faca
o fel
o látego
a lâmina
o ácido
as balas das palavras
viraram-se contra ti certeiras
E eu ressurgi inteira
lavada
Da fonte primordial
ressuscitei perfeita.
O poema seguinte
lembra um pouco o o final do conto A Pequena Sereia de Hans
Christian Andersen, Ariel morrendo à beira-mar e cuja alma se
volatiliza, ganhando “asas”passando a fazer parte das “filhas
do ar” ou do céu. É mais um poema a tratar do problema do
isolamento.
XXVII
Meu corpo morrendo na areia doirada
o vento mordendo o basalto negro
no mar uma ilha desnudando na
bruma
bruma
sua plenitude redonda de mulher
O pulsar do meu sangue no pulsar das
vagas
E pássaros poisaram na febre dos
meus ombros
e cintilaram estrelas no crepitar dos
meus dedos
- alada e luminosa foi a paz.
- alada e luminosa foi a paz.
Neste conjunto de
poemas em que a voz da Poeta é representada por uma ave-do-paraíso,
a alma é novamente livre, mas está imersa em solidão. As asas
expandem-se, a alma voa errante por terras longínquas, cruzando a
imensidão líquida da massa azul, a Sul, aquecida pelo sol no final
do Estio. É, contudo, rodeada pela solidão que a cobre como o manto de
penas, uma solidão omnipresente como nas personagens de García Márquez. Esta solidão projectada-se na paisagem. As impressões são colhidas nos poemas que se seguem, respectivamente
na marina de Vilamoura e em Palma de Maiorca:
XXVIII
Não há nada mais vão
e mais só
que os mastros despidos
dos barcos perdidos
em portos desertos
chorando a ausência do mar
e das brumas
sonhando o sol o sal e o vento
quilhas cantando a imanência
das águas
cavalgando potros em asas de espuma
E no fino frio de um dia cinzento
voa sobre o cais o grito das
gaivotas
XXX
Há neste mar do sul
a ausência do ressoar das vagas
dos búzios das conchas e das algas
sobre a areia branca e fina
a ausência do cardo e da chorina
no coração das dunas
E a permanência
do mesmo impossível beijo azul
A alma recupera das
feridas pelo ampliar continuo do conhecimento – o fruto proibido de
Eva – e pelo contacto humano com outras gentes que se torna
revigorante e reconstrói o tecido das memórias em permanente
transformação. As impressões que inspiraram os dois poemas que se
seguem foram retiradas de lugares de Famalicão, terra onde vive a
Autora:
XXXI
Subitamente
uma alada brancura
sobre os telhados ocres
e as árvores nuas
da cidade a sul
Urgente
é erguer o olhar
e adivinhar
a verdade escondida
das gentes dos bichos das ruas
a beleza cativa
neste inverno azul
Os termos “azul”
e “a sul”, quase homófonos, são permutáveis, aumentando ainda
a significação polissémica do poema.
O poema XXXII é
inspirado numa árvore de especial beleza e significado para a
Autora, uma pereira, situada na cidade onde vive, junto de um
supermercado. Uma árvore que, pela magnificência e doçura dos
seus frutos se assemelha a uma mulher na sua plenitude. Aqui a Poeta
aproxima-se da sua musa, Maria Teresa Horta, pelo erotismo implícito
nas suas metáforas:
XXXII
Não há nada mais belo
e mais inteiro
que uma árvore madura de fruto
Há no ofertar aberto
dos seus ramos
um ar materno e grave
E o seu tronco torna-se
subitamente
humano
Os três poemas
seguintes são de especial beleza, transmissores de um sentimento
geral de temperança e cura, do resgate da identidade da alma,
finalmente liberta e assumidamente mulher.
XXXIII
Pétalas líquidas
desfolham-se em mil pérolas
sobre o lago quieto
Um arco-íris
sobe as paredes da matriz
o silencio dos sinos
o catavento inquieto
ao vento sul
E uma ave-do-paraíso
alonga o seu voo
azul roxo púrpura oiro
sobre o cimento cinzento
que mutila
a harmonia da cidade
O cinzentismo de
que fala o poema são as convenções, o super-ego freudiano, os
comentários que obrigam ao comportamento “socialmente correcto,
discreto” e inibem a livre expressão doo pensamento, do sentir e
sobretudo, do eros, da sensualidade. A ave-do-paraíso é o amor,
rebelde, irreverente, cujo colorido ofusca e incomoda as almas
cinzentas, que se ofendem com as cores do esplendor e da vida. A beleza
e exuberância da ave cria um violento contraste com a esterilidade
do betão, das cores mortiças, das mulheres que morrem para o
erotismo. Uma sociedade cinzenta, com almas cimentadas, mata o Amor,
amputa o seu voo, agarra-se a convenções obsoletas, que já perderam
o sentido, às aparências, a uma máscara pegajosa e gelada de hipocrisia. A ave azul,
roxa púrpura e oiro ou a árvore da magnólia, carregada de fores
esplendorosas são a alma da Poeta Manuela Monteiro a pairar desafiadoramente sobre uma mentalidade fechada, afecta a
amores clandestinos, numa sociedade hipocritamente assexuada. A ave
incendeia a cidade como quem toca uma trombeta do Apocalipse, ao
espelhar os seus falsos pudores.
XXXIV
Sobre os farrapos brancos
de um céu de março
a beleza opulenta
da magnólia em flor
incendeia o jardim
Trepadora
uma hera enleia
seu tronco seu corpo seus braços
chão caule raiz abraço
e no ar de março
súbita uma explosão
fúcsia violento
pálido cetim
Por fim a ave paira nas
searas loiras no final do Verão da vida, inspirada nos violinos de
Verlaine. Há algo de báquico, de opulento neste esplendor do ocaso
estival:
XXXV
Asas planando quietas
as searas loiras
Dedos do vento ondulando
searas inquietas
Ceres trazendo nas mãos
promessas de trigo
Baco coroado de parras
e bebendo o vinho
Flautas e faunos despertando
as fontes e os pomos
Cigarras cantando claras
cantigas do estio
Silêncio...
que dentro de mim já choram
os violinos do Outono
O regresso aos
rituais de todos os dias, aos objectos de sempre leva também ao
encontro com os referenciais de toda uma vida: Tolstoi e Natasha, a
heroína romântica de Guerra e Paz, a musa dos poemas
marinhos, Sophia, o ícone da liberdade do 25 de Abril nas cantigas
de José Afonso. Na casa surge o cofre que guarda o lugar dos
afectos físicos, fraternais, filiais, amorosos e literários. Os
poemas da última parte são os que revelam a mulher total, com as
notas musicais no lugar das penas que cobrem os braços abertos em
atitude de voo e de quem deseja abraçar o mundo. A mulher da última
parte de Silêncio Inquieto é alma de pássaro com a forma de
mulher na sua plenitude. A poesia, aqui, é a apologia do amor
universal e da utopia, também. Canta-se o amor que é corpo, mas
também pleno de espiritualidade, por brotar de um entendimento
perfeito, despojado de possessividade mas sem, contudo, excluir o
desejo físico.
XL
Dentro de nós corria o mesmo rio
tu eras a nascente e eu era a foz
São poemas em que
a Poesia se faz gazela como na célebre metáfora do Cântico dos
cânticos poema bíblico, onde a Vontade e o Desejo são a voz da
Liberdade. Aqui invocam-se também os poetas de Abril, Sophia , mais
uma vez, e também José Afonso, uma voz que se fez cravo/e se fez
poema ao denunciar a prepotência de povos arrogantes e regimes
totalitários que esmagam (ainda hoje) os mais fracos, numa homenagem
a uma Grândola voz morena (poema LXII).
XLIII
Contigo trouxeste a estrela do sul
e uma rosa roubada do jardim
Não falámos de Treblinka e
Hiroshima
da infâmia do horror da ignomínia
do terror escondido na neblina
do amigo algemado em cada esquina
pois quisemos impoluto o silêncio
impoluta a madrugada
impoluto o mar
onde os nossos corpos
mergulharam
O último poema é
dedicado à musa suprema, Sophia de
Mello Breyner, em homenagem ao amor mítico, ideal e que, à
semelhança do mito e da esperança sebastiânica, está ainda para
vir, emergindo do mar e dentre as brumas, ressuscitado como o V império
pessoano. Desta vez o império da deusa do Afrodite, em todo o seu
esplendor...
XLIV
Do meio da multidão ele surgiu
belo e grave como um deus antigo
(…)
e nele todo o mar se fez presente
Uma poeta de Abril,
do século passado e de todos os Abris que hão-de vir...aguardamos a reedição da obra com a mesma ansiedade com que esperamos o Prémio Nobel de 2012 de volta às prateleiras das livrarias.
23.12.2011
Cláudia de Sousa
Dias
9 Comments:
Bom blog este sim senhor.
Obrigada.
Um abraço.
CSD
A tua dedicação à divulgação de boa leitura é inspirador. Obrigada pelo cuidado com fazes os teus posts.
[Andava para dizer isto há séculos] ^-^
beijinhos
Obrigada, querida Maria!
EXCELENTE Blog! E falta tanta poesia ao mundo de hoje! E tão belos alguns dos poemas de Manuela Monteiro!
EXCELENTE Blog! E falta tanta poesia ao mundo de hoje! E tão belos alguns dos poemas de Manuela Monteiro!
Obrigada.
Que delicia ler novamente os seus poemas. Ainda hoje li para o meu filho o livro que me entregou com uma deliciosa dedicatoria. Era tao bom quando ouviamos a "Avó Manela", a contar nos as suas historias que ia escrevendo e nos pedia a nossa opinião, aceitava as nossas criticas... que epoca deliciosa de relembrar.
Professora, estou de regresso a Portugal e gostaria muito de voltar a encontra-la.
Meu contacto- 92 535 0080
Muitos beijinhos de uma aluna que nunca a esqueceu...
Renata
Cara Renata, boa noite.
Eu sou a autora do blogue e do texto que acabou de ler, que é algo entre a crítica e um quase-ensaio ao único livro de poesia que a escritora Manuela Monteiro publicou em vida. Infelizmente, ela deixou-nos em 2017.
Um abraço,
Cláudia de Sousa Dias
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