“A Narrativa de Arthur Gordon Pym de Nantucket” de Edgar Allan Poe (Assírio & Alvim)
Tradução de Jorge Pereirinha Pires
Sendo filho de actores e tendo ficado órfão muito cedo, Edgar Allan Poe foi adoptado por um casal com quem tinha laços de sangue. No entanto, a forte inclinação demonstrada pelas letras não era propriamente sedutora para um pai adoptivo, que idealizava para o filho uma carreira tradicional ligada às forças armadas.
O clima de conflito, motivado pelas dissidências com a
família, impeliram Poe a usar a
escrita para sobreviver, uma necessidade de onde nasceria a presente obra, que
reunia a projecção da vida interior e a imaginação do Autor. Imaginação e
criatividade essas que foram adaptadas ao desejo de agradar ao grande público,
fazendo-se publicar, periodicamente, na revista “Southern Literary Messenger”.
A trama de A Narrativa de Arthur Gordon Pym de Nantucket consiste numa viagem mítica ou imaginária ao Pólo Sul, numa altura em que a Antárctida era um continente do qual se sabia muito pouco.
A vivência do protagonista do romance, junto de uma comunidade
situada numa zona remota daquele gélido continente, faz lembrar um pouco a ilha
perdida de Camões no Canto IX de Os
Lusíadas, pelas características ligadas ao sonho e ao imaginário, como
veremos mais adiante.
As inúmeras intertextualidades contidas na obra abrem-nos
caminhos quase infinitos no que respeita à interpretação e ao imaginário dos
leitores de Poe no século XIX e
décadas seguintes. As afinidades literárias deste texto encontram-se
reflectidas, por exemplo, em Jules Verne,
em alguns dos seus romances de aventuras e, particularmente, no conto “A Esfinge de Gelo”. Ambos, aliás, são
precursores do género a que hoje se chama de “ficção científica”.
O progresso nos vários domínios da Ciência, ocorrido na
época em que o romance foi publicado e nos anos que se lhe seguiram, permite
avaliar, em primeiro lugar, o elevado grau de conhecimento de vanguarda para a
época, demonstrado pelo Autor, no que respeita ao conhecimento de técnicas de
navegação. O preciosismo e rigor impressos na linguagem, na gíria normalmente
utilizada a bordo de um navio de longo curso, a par do detalhado conhecimento
geográfico e técnicas de navegação, é verdadeiramente notável, conferindo à
obra um toque de realismo nos capítulos que relatam as condições em que se
processa a viagem e a rotina a bordo.
A intertextualidade com Hermann Melville está patente na descrição do contacto com a tribo
perdida na Antárctida, lembrando a adversidade da geografia e do clima com que
se debate o protagonista de “Taipi”,
assim como o romance náutico “Moby Dick”.
Para muitos as influências literárias desta obra manifestam-se ainda em em Coleridge, que numa das suas obras
fala, também, numa comunidade supostamente a residir no Pólo Sul que se pode
observar no conto “A Descida ao Maëstrom”,
e a Daniel Defoe em “Robinson Crusoe”. E, mais tarde, em H.P.
Lovecraft que recupera a presente obra para o conto “Nas Montanhas da Loucura” .
Allan
Poe,
além de projectar a vivência pessoal no imaginário e no discurso do
protagonista, transmite-nos, também, através do olhar deste, o progresso do conhecimento
científico da época, particularmente na área da química e da engenharia,
sobretudo com a descoberta da electricidade, colorido pelo imaginário popular
recheado de mitos e superstições.
A existência da Antárctida só tinha sido constatada em 1820,
pouco mais de dez anos antes da publicação deste livro. Este (des)conhecimento
incluía tanto os contornos geográficos
como a fauna, a flora, os pormenores das condições climáticas, em todo o
território do referido continente, assim como o grau de desenvolvimento das
populações que, supostamente, ali viveriam.
Trata-se de uma estória Atlântica que se assemelha um pouco à busca da mítica Atlântida.
Na edição portuguesa, a adaptação do vocabulário usado na
marinha foi retirado do glossário da obra
“Como se fala a bordo” de Francisco Penteado (1912).
Para o tradutor,
trata-se de um livro “misterioso”, “inconclusivo”, “que aparenta estar
inacabado na medida em que se sai dele ainda com mais incógnitas do que quando
se entrou”, sendo essa mesma característica uma das grandes mais-valias da obra. Um aspecto
curioso são as referências ao Brasil e a Cabo Verde, aos vinhos do Porto e da Madeira
durante o trajecto da atribulada viagem.
Estilo e Personagens
O estilo utilizado pelo narrador é, predominantemente,
narrativo, assemelhando-se à escrita de um diário de bordo, com a vantagem
de colocar o leitor a dentro do quotidiano da tripulação de um navio de longo
curso e, simultaneamente, dar-lhes a visão particular do protagonista que
acumula a função de narrador participante, emitindo juízos de valor e morais.
Este narrador, Arthur Gordon Pym, é um jovem estudante
que, juntamente com um colega e companheiro de quarto, decide embarcar num
navio, rumo ao Sul, em busca de aventuras, após afastar o tédio da rotina das
aulas com uma bebedeira. Escondido no porão do navio, depara-se, então, com um
conjunto de dificuldades logísticas que não havia previsto.
À alegria proporcionada pelo encontro inesperado com um
“amigo” canino segue-se o terror, quando se apercebe de um súbito ataque de loucura
ou raiva do mesmo, no meio da fome, da sede e da escuridão. Sem saber que no
convés está a decorrer um motim que transforma o navio num mar de sangue, onde
a carnificina atinge um paroxismo quase que infernal, Arthur suspeita que algo
de horrível se passa na parte superior do navio, mas não consegue ler a
mensagem do colega.
O naufrágio sofrido, mais tarde, pelo navio onde viajam, obriga-os
a mudarem-se para uma jangada onde aumentam, ainda mais, as dificuldades. A
passagem de um navio fantasma, onde tripulação e passageiros apodrecem
dizimados pela peste, acentua-lhes o desespero, dando-se neste momento da
narrativa mais um surto de loucura temporária entre os náufragos, onde um breve
episódio de canibalismo ilustra o desespero e a incerteza face ao futuro, inibindo
os tabus socialmente instituídos e passando a imperar uma ética utilizada em
situações limite, norteada pela lei da sobrevivência do mais forte ou mais
apto. Este trecho permite colocar em evidência a importância das ideias do
darwinismo social, que começavam a ganhar impacto na época em que a obra foi
escrita.
Com a recolha dos náufragos e o embarque num navio rumo ao Pólo Sul, o rumo da história inflecte, passando a descrever a viagem com um itinerário definido e percorrendo várias fases: uma objectiva e realista, baseada na cartografia da época, e outra imaginária, a partir do paralelo 84º sul. Este seria o ponto mais longínquo, explorado até à data da publicação da obra. Ao atingir o Oceano Glacial Antárctico, a tripulação encontra dificuldades acrescidas pelo gelo, que impede um abastecimento eficaz, ao que se soma a ameaça do escorbuto.
Com a recolha dos náufragos e o embarque num navio rumo ao Pólo Sul, o rumo da história inflecte, passando a descrever a viagem com um itinerário definido e percorrendo várias fases: uma objectiva e realista, baseada na cartografia da época, e outra imaginária, a partir do paralelo 84º sul. Este seria o ponto mais longínquo, explorado até à data da publicação da obra. Ao atingir o Oceano Glacial Antárctico, a tripulação encontra dificuldades acrescidas pelo gelo, que impede um abastecimento eficaz, ao que se soma a ameaça do escorbuto.
A passagem do paralelo 84º sul marca a entrada num
território desconhecido no qual o autor constrói uma estória ou narrativa
secundária, envolvendo uns poucos exploradores aventureiros que dão de caras
com um micro-clima quase tropical, onde habita uma comunidade de aborígenes.
A partir daqui, o
autor constrói uma alegoria onde estão presentes o choque de culturas e
civilizações, traduzido numa luta pelo poder marcada pelo etnocentrismo,
aludindo ao domínio colonial a partir da Europa. Ali, os sobreviventes do
primeiro navio deambulam por um labirinto subterrâneo no sentido de escaparem à
dizimação feita pela comunidade autóctone.
O Autor introduz, também, uma estranha fauna
mítica-imaginária que delicia o imaginário dos leitores, como o urso gigantesco,
maior do que o do Árctico, uma estranha doninha ou musaranho da cor da neve,
“com o pêlo cor de gelo de um branco sedoso”, dentes e garras escarlates.
Os habitantes locais caracterizam-se por “mulheres tímidas
mas solícitas” e por homens desconfiados, com medo dos forasteiros, que acabam
por tornar-se agressivos, sugerindo um conflito, muito darwinista, pela posse
das fêmeas, onde a animalidade se sobrepõe à sociabilidade.
A ameaça da fome e o medo de um ataque canibal, por parte
dos dois aventureiros que restaram da tripulação inicial, acabam por precipitar
a fuga do local.
Ao longo da narrativa, praticamente todos os companheiros
do naufrágio do primeiro navio vão morrendo
de forma atroz, sobrando apenas dois e sendo um deles o narrador, Arthur,
e Peters, o outro, que recolhe os apontamentos do companheiro para publicação.
A fuga para sul, o ponto para onde todas as águas parecem
convergir, parece-se com um inferno branco onde o gelo e o calor se
(con)fundem, proporcionando um final onde está presente um onirismo delirante, febril – inspiração vinda , talvez,
do láudano, do qual Poe era
dependente - um inferno de gelo
escaldante sobrevoados pelos Tekeli-li, os sinistros pássaros cor de gelo,
temidos pelos locais e que parecem ser os guardiões das portas do inferno. Ou
do paraíso, estando, de uma forma ou de outra, conotados com a morte.
As portas para o centro da terra (ou para o céu) parecem
ali estar recobertas por uma descomunal camada de gelo até então nunca vista,
sob a qual se regista intensa actividade vulcânica, numa zona assolada por uma
chuva de cinzas esbranquiçadas (semelhantes às de um forno crematório?)
O avistar, pelo protagonista, de uma gigantesca figura
amortalhada marca o sucumbir deste à loucura e ao delírio, perdendo-se no
inferno (ou paraíso) branco. A sobrevivência do companheiro Peters serve de
justificação para a preservação do caderno de apontamentos de Arthur, que Peters
decide publicar e, desta forma, explicar o início da trama. Esta, do ponto de
vista da estória de Arthur Gordon Pym será uma narrativa aberta, mas circular, do
ponto de vista global da narrativa, por englobar o período após o
desaparecimento do protagonista.
O final da estória deixa muitos aspectos por explicar…remetendo
para as epopeias clássicas, com viagens marítimas recheadas monstros, perigos e
peripécias.
Um marco importantíssimo na História da Literatura de ficção científica.
Cláudia de Sousa Dias
Publicado originalmente no site orgialiteraria em Julho de 2009.
Publicado originalmente no site orgialiteraria em Julho de 2009.
3 Comments:
Gosto muito de Allan Poe, daquela tensão sempre patente na escrita.
Beijinhos, bom weekend!
Madalena
É mesmo!
Dá uma adrenalina...
CSD
Recomendo a leitura de A Esfinge dos Gelos, de julio Verne, que é uma espécie de continuação das aventuras de Pym.
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