“Grandes Esperanças” de Charles Dickens (publicações Europa-América)
Tradução de Carmen Gonzalez
Charles Dickens foi o mais popular dos romancistas no período vitoriano, fazendo-se notar pelo impressionante talento literário e pela escrita de pendor humanista, inspirado nos ideais de Jean-Jacques Rousseau e influenciado, em larga medida, pelo seu contemporâneo, o escritor Victor Hugo. No entanto, Charles Dickens apresenta-se muito mais realista na construção das suas personagens, deixando de lado a idealização em que cai, muitas vezes o seu colega, em terras de França. No entanto, ambos partilham da ideia de que o homem nasce ”puro” de ideias – a teoria do “bom selvagem” de JJR – e de que é a sociedade que o corrompe, ideia que pode ser encontrada no na força motriz que impele o desenvolvimento da trama do romance de que aqui tratamos, sobretudo na cena em que Pip e Miss Havisham discutem o carácter de Estella, onde Pip defende que “mais valia deixar evoluir o carácter da jovem ao invés de moldá-la de forma a torná-la num monstro de frieza”. Trata-se de uma concepção do Homem que se opõe à ideia do “criminoso nato” defendida na altura pela escola de criminologia e pelos seguidores das teses do médico italiano Césare Lombroso, salientando a ênfase do contexto social como agente modulador da personalidade.
A obra tem em si muito de
autobiográfico já que Dickens, tal como Pip, foi durante parte da
sua adolescência obrigado a trabalhar duramente – dos doze aos
quinze anos – facto que influenciou largamente a sua concepção do
mundo e da sociedade. Dickens teceu fortes críticas à forma como
era, então, explorado o trabalho infantil, durante a segunda fase da
Revolução Industrial na Inglaterra do sec. XIX, tornando-se um
profundo conhecedor da realidade operária do seu tempo e no seu país.
Aos quinze anos, torna-se ajudante de notário e aprende estenografia.
Aposta fortemente na própria educação, antes de se tornar escritor,
em 1834, aos vinte e dois anos, precisamente a idade da emancipação
de Philip Pirrip – Pip.
Do autor, dizem-no herdeiro do pensamento
idealista e do romance sentimental, mas o teor do texto é
marcadamente psicológico, ou melhor, psicanalítico. O narrador –
Pip adulto – tenta recriar a visão do mundo e da pessoas com os
olhos da criança que foi, embora temperada pela capacidade de
distanciamento e discernimento de um homem adulto. Grandes Esperanças é, simultaneamente, um livro de denuncia de inquitações sociais, primando pela exposição crua de
situações de desumanidade, desigualdade ou falta de ética.
A beleza do romance está contida na
forma pungente como Pip perde a inocência, mas sem se deixar
contaminar pela maldade. Dickens acreditava que “uma natureza
tendencialmente boa se desenvolve quando é amada”. É por esse
motivo que Pip, apesar dos maus tratos de Georgiana, do desprezo de
Estella e da perfídia de Miss Havisham, não deixa de irradiar uma
persistente bondade natural, uma vez que é amado incondicionalmente
por Joe e por Biddy, a preceptora e enfermeira da irmã, que mais,
tarde, se torna sua madrasta. É, também, estimado pelos amigos,
Wemmick e Pocket.
Violência Doméstica
Georgiana foi uma mulher que, até à
altura do ataque de que foi alvo, sempre se
deixava levar, ao contrário de Joe e Pip, pelo rancor e pela frustração devido às circunstâncias de viver em permanente situação de pobreza, aproveitando
o ensejo de educar Pip com “mão firme” e colocar o marido “na
linha” e, assim, descarregar a própria raiva nos seres mais frágeis:
precisamente Pip e Joe. Ironicamente, é através da voz de Pip, que
o Autor descreve com bonomia e sentido de humor, o ambiente doméstico
e familiar que marca a infância do protagonista, caracterizado pelo
acentuado clima de violência exercida sobre os elementos
masculinos do agregado, por parte de uma matriarca dependente do
álcool que usa de chantagem emocional de forma a manipular os habitantes
da casa, para além de recorrer a constantes ameaças de agressão física.
A figura do condenado
Tal como em Os Miseráveis de
Victor Hugo, uma das figuras centrais deste livro é um condenado às
galés. Mas será só na terceira parte do romance que saberemos a
real posição que este ocupa na trama. Magwitch faz uma breve e
terrífica aparição no início do romance, no cemitério, surgindo
envolto em névoa, como uma alma do outro mundo, num cenário onde
dominam as sombras e as cores sombrias e os contornos da realidade
não aparecem definidos.
Na primeira
parte do romance temos várias personagens a frequentar a casa
de Joe, como o Sr. Woopsle, o sacristão que deseja ser actor, o qual
é responsável por alguns dos momentos mais cómicos da narrativa;
Hubble, o carpinteiro; o já mencionado Mr. Pumblechook, um untuoso
negociante de cereais, dono de um armazém de secos e molhados, que
introduz Pip na casa Satis, apenas com o objectivo de agradar a Miss
Havisham e não exactamente por se preocupar com o futuro de Pip como
quer dar a entender.
A Casa Satis
Pip só começa a frequentar a casa de
Miss Havisham porque esta deseja um criado que brinque com a filha
adoptiva e lhe sirva, ao mesmo tempo de cobaia. Miss Havisham,
magoada com o abandono do noivo, deseja criar uma filha que lhe sirva
o propósito de se vingar do género masculino, transformando-a numa
harpia, treinada para maltratar todos os homens que se apaixonarem por
ela. Ao criar esta espécie de louva-a-deus em forma de mulher, Miss
Havisham está a prolongar a própria vingança para a posteridade, prolongando-a para além da própria morte. Trata-se de uma personagem movida
pelo ódio, apesar da aparente amabilidade para com Pip, o pequeno
pássaro que pretende lançar à serpente. Em casa de Miss Havisham
todos os relógios pararam na hora exacta em que devia ter ocorrido o
seu casamento: uma tentativa de estancar o fluxo do tempo e da
memória, conservando, também, intacto, o mesmo ódio, mumificando a
própria vida.
Logo no primeiro encontro com Estella,
Pip descobre uma criatura de desmedida beleza, mas insuportável de
tanto orgulho e altivez, que se empenha em ostentar o desprezo em
relação à condição social de Pip. Este encontro é de extrema
importância para o crescimento do jovem, uma vez que é precisamente a
altura em que Pip toma consciência da desigualdade social e da
barreira intransponível que o impede de conseguir o amor da
mulher-menina a quem pretende cativar. O sofrimento causado por esta
desigualdade não o faz, no entanto desistir do que deseja.
Secretamente, alimentará …grandes esperanças.
O clima emocional deprimente na casa
Havisham e o constante desprezo de Estella desenvolvem em Pip uma
ansiedade permanente sem contudo ser totalmente destituída de
esperança. Pip nunca chega a ser completamente feliz na casa Satis.
Mas será ali que conhece aquele que será, mais tarde, o seu grande
amigo, Herbert Pocket.
Miss Havisham é uma dama sinistra que
destila maldade, indiferente ao facto de causar ou não sofrimento
nos outros. Está apenas interessada em expulsar o tédio da casa, na qual a luz do sol está impedida de entrar e obcecada pelo prazer de manietar
ambas as crianças. A luz solar adquire, aqui, a simbologia da
bondade, pelas propriedades anti-depressivas e causadoras do bem-estar, em oposição ao gelo do Inverno e em associação à vitalidade
estival. A luz solar está, também, conotada com a lucidez, simbolizando uma personalidade saudável e optimista.
Através de nova intervenção de
Pumblechoock, que um dia decide levar Pip ao advogado Jaggers,o mesmo Pip é informado de que existe uma avultada herança de alguém de
identidade desconhecida, em favor de Pip. Todos julgam tratar-se de
Miss Havisham a identidade do misterioso benfeitor, uma suspeita
alimentada pelo facto de Jaggers ser também advogado da terrível senhora de Satis... Trata-se de mais uma mudança que se reflecte no
quotidiano da família e um ponto de viragem na trama: Pip muda-se
para Londres para estudar e, a partir daí, começa a abrir-se um
fosso, um inexorável abismo social entre Pip e os seus parentes...
Na segunda
parte, o cenário muda. A acção passa-se em
Londres entre o escritório, onde trabalha Pip, o quarto onde vive e
o relacionamento com os colegas de trabalho e estudos, fora do local de trabalho. A tomada de
consciência de Pip, tocante à perspectiva de receber uma herança,
marca o primeiro volte-face no curso do romance. A ascensão social
já não é impossível e a mão de Estella parece, no entender de
Pip, já não estar tão longe.
Pip trava conhecimento com os colegas
de escritório de Mr. Jaggers, conhecido advogado criminalista. Ali, é
estabelecida em pouco tempo toda uma rede de simpatias e antipatias
entre os aprendizes de Jaggers.
Não deixa de ser irónico e
intencional por parte do autor que o elemento com o qual todos
antipatizam, o carácter mais duvidoso, seja precisamente aquele com
quem Estella acaba por casar.
Herbert Pocket, a quem Pip teria
conhecido em casa de Miss havisham, é um jovem ingénuo, porém
bastante inteligente, gerador de consensos, honesto mas com pouca
autoconfiança. Dá lições de etiqueta a Pip com grande sentido de
diplomacia. É em casa da família de Pocket que assistimos a um dos
episódios de maior tensão no romance, apesar de narrado com uma
intensa tonalidade discursiva de humor negro: em casa dos pais de
Pocket, durante um piquenique ocorre um perfeito filme de terror
durante o qual as crianças mais pequenas estão permanentemente
expostas a uma situação de perigo, fruto da superficialidade e negligência maternas e alguma permissividade por parte do pai.
Em casa de Wemmick , onde Pip vai
passar um fim-de-semana, passa-se algo completamente diferente: a
dedicação do jovem ao pai, inválido, chega a ser comovente e a
discrição do jovem face aos bens de raiz da família torna-o
simpático aos olhos do leitor, assim como o facto de disfarçar uma
profunda sensibilidade, oculta pelo profissionalismo exibido no
escritório, denuncia uma forte necessidade de manter as emoções
sob controlo de forma a proteger a própria privacidade: afinal, Jaggers
exerce o poder à custa dos segredos e da vida pessoal daqueles que
com ele trabalham, sejam eles clientes ou funcionários. Jaggers é
alguém habituado a manipular os outros. Tem todos os conhecidos na
mão, pois conhece-lhes os segredos.
Ainda durante um convívio em casa de
Wemmick , Pip observa a noiva do amigo, reparando numa certa
cumplicidade discreta, também, entre ambos. O noivo, sem dar a
entender o teor do relacionamento entre os dois, trata-a algo
possessivamente, colocando-lhe a mão no ombro ou rodeando-lhe a
cintura. Pip só se apercebe da intimidade de ambos quando repara que
bebem pelo mesmo copo. A apreciação do detalhe comportamental em
termos de atitudes não verbais é outro dos aspectos com que o Autor
nos delicia neste romance, a começar a sair do Romantismo e a entrar
no Realismo.
Ainda nesta segunda parte, percebemos
que o Amor não é imune ao Tempo. A meio do romance, já se percebe
que, no momento em que o narrador está a contar a estória, Estella
já faz parte do passado. Pip é um narrador omnisciente, porque está
para além do tempo em que se passa a acção e está, já, na posse
de todos os detalhes que compõem a trama, permitindo-lhe uma
interpretação lúcida da realidade. Do Romantismo, vêm ainda os
ambientes e cenários macabros como o cemitério, o ar fúnebre da
casa Satis, o vento de aspecto fantasmal que envolve o cenário do
reencontro entre Pip e o condenado da primeira parte, assinalando o
fecho da segunda parte do romance.
Na terceira
parte, iremos descobrir as ligações mais insuspeitas
entre diversas personagens. Isto apesar de o Autor nos ter já fornecido
alguns indícios, para nós insuspeitos, em episódios anteriores,
como o pormenor das mãos de Molly, durante um jantar em casa de
Jaggers, a forma como Magwitch trata Pip na taberna; o pormenor mais
curioso é a ligação entre o desvendar da identidade do benfeitor
de Pip e as origens de Estella. Os grandes vilões são
desmascarados e tudo perece contribuir para um desenlace feliz…
A personagem Estella revela-se uma
personagem modelada, cheia de cmbiantes, que se vai modificando à
medida que os acontecimentos se processam, sobretudo na recta
final do romance. Estella é uma jovem inteligente para além de bela,
mas a falta de afecto na infância e a manipulação de Miss
Havisham, tornaram a Estella adulta incapaz de empatia com o sofrimento alheio.
O romance acaba na verdade com dois
casamentos ou dois finais felizes para os pares românticos secundários: o de Wemmick e Miss Shiffrin e o de Herbert com a bela e
frágil Clara. É notório que o autor valoriza as personagens que
cuidam de pais enfermos ou envelhecidos, reflectindo a preocupação
social com a assistência à velhice, que a Revolução Industrial trouxe a lume.
Há também o casamento, mais do que
esperado entre Joe e Biddy, consolidado pelo aumento da família e
pela reaproximação de Pip e aqueles que o amam.
Estella e Pip ultrapassam divergências
mas ficam sós, arrastando uma sólida amizade que se prolonga no
tempo.
A estória de Pip é a da conquista do
amor-próprio, em cujo espelho invertido se observa o depojamento do
orgulho de Estella que a prejudicava socialmente impelindo-a para
dois casamentos infelizes…
Miss Havisham tem o mesmo destino das
bruxas dos contos de fadas, isto é, morre, vítima da própria
maldade e do remorso, depois de tomar consciência da crueldade a que
submeteu os dois jovens.
O autor serve-se, ainda, da personagem
dúbia que é Jaggers para chamar a atenção para o destino das
crianças excluídas, expostas a um elevado nível de risco social e à
criminalidade para justificar o ter colocado Estella sob a alçada
de Miss Havisham.
Já nas últimas páginas do romance, somos surpreendidos por uma cena de maldade aterradora protagonizada
por um dos piores vilões do romance.
Grandes esperanças foi
publicado pela primeira vez em 1860-1861, tratando-se de uma das
melhores obras de sempre deste Autor. Foi aclamada pela crítica como
“uma obra poderosa e violenta” e classificada como “um drama do
qual não está ausente a sátira e o humor.
Grandes esperanças acaba também
por ser um pouco um romance policial, onde só na recta final do
desenvolvimento da trama, conseguimos descobrir a verdadeira
identidade do benfeitor de PIP e, também a do assassino da irmã do
protagonista, Georgiana.
O leitor é habilmente conduzido pela
memória de um Philip Pirrip adulto, o qual evoca com uma nitidez impressionante
as emoções da infância, antes de ser introduzido na mansão de
Miss Havisham pela mão do “tio” Pumblechoock.
É através do
fio de Ariadne da memória de Pip adulto, filtrada pela lucidez da passagem das
areias do Tempo, que o leitor assiste ao devanear das “grandes
esperanças” do jovem Pip, ao processo de construção da própria identidade e ao
amadurecimento, pela forma como se coloca diante das relações de
amor e de amizade.
Uma obra-prima de um grande Autor da
Literatura Universal.
Cláudia de Sousa dias
(28.05.2011)
6 Comments:
Gostei do livro quando o li, e gostei de o relembrar agora enquanto lia esta crítica :)
E eu gostei muito de o reler, o ano passado, para a sessão do cineliterário de Abril...
csd
De Charles Dikens li 'Tempos Difíceis' há muito, muito tempo... :)
Encontrá-lo aqui, nesta excelente análise de 'Grandes Esperanças', faz-me querer voltar a ele. E agora com as preciosas informações que nos oferece nesta sua crítica, terei a oportunidade de o compreender melhor.
Obrigada
Olinda
"Tempos difíceis! nunca li. "Oliver Twist" vi séries e filmes e preparava-me para conseguir o livro para futuros cineliterários. "História de duas cidades" comecei a ler em inglês, mas não cheguei a terminar...Este é o meu preferido.
Ai, Dickens... tu e as tuas histórias intemporais e irritantemente humanas e cheias de tragédias :P
sim, este é um Autor consensual, ao que sei.
talento inequívoco e intemporal.
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