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Saturday, December 03, 2011

“Filhos sem filhos” de Enrique Vila-Matas (Assírio & Alvim)



Tradução de José Agostinho Baptista


Seguindo a ideia do escritor checo Franz Kafka, a servir de epígrafe a esta colectânea de short stories e fio condutor entre elas. Filhos sem Filhos é a expressão máxima do individualismo e, ao mesmo tempo, da indiferença expressa pelo cidadão anónimo, preso ao seu quotidiano, face ao colectivo, ao problema global, ao facto histórico, mesmo que contemporâneo, que lhe entra em casa pelo écran da televisão:

A Alemanha declarou guerra à Rússia. À tarde, fui nadar.” (Franz Kafka in Diários)

Filhos sem Filhos pode ser lido como uma história breve e singular da Espanha dos últimos 41 anos, precisamente a idade de Kafka quando faleceu, em Kierling. Os protagonistas destes episódios são todos filhos sem filhos, isto é, pessoas que não desejam nenhuma descendência. São detentores de uma personalidade distante da sociedade e cujo ego se alimenta somente a si próprio e, perseguindo a sua verdade, única porque exclusiva do mesmo ego, inventor de uma espécie de indiferença distante. Estas personagens são verdadeiras “máquinas solteiras” (mesmo que se encontrem casadas), segundo o critério do próprio Vila-Matas, e estão ligadas à realidade apenas por intermédio de um fio invisível, como o da teia de aranha. Todos os protagonistas parecem, assim, estar em sintonia com aquilo que Kafka escreveu no seu diário, em Agosto de 1914, uma vez que todos eles colocam ao mesmo nível, tanto o plano histórico como o pessoal.

A crítica considerou o livro “audaz e surpreendente, uma antologia de fantasmas ambulantes, sombras checas, pessoas pobres e outros génios da natação”. Ou seja, uma tribo de indiferentes, preocupados apenas com a realidade imediata. Uma colectânea de contos invulgar, que utiliza a personalidade do narrador principal como contraponto: um escritor casado e pai de onze filhos, que vai relatando as suas digressões pelas cidades do país, rurais ou cosmopolitas de forma aleatória no tocante à questão espácio-temporal. Como se se retratasse num diário, os episódios de que se vai lembrando, sem atender à ordem cronológica mas antes à ordem pela qual se vão “desenterrando” das profundezas da memória abrangendo, todas elas, uma amplitude temporal que ultrapassa as quatro décadas.

O narrador é um homem solitário, mas não sozinho: cultiva o gosto pelo recolhimento, pela reflexão sobre a vida dos habitantes e a mudança que nelas vai operando o Tempo. Mais: é um solitário adaptado, de situação financeira estável, casamento aparentemente sólido e com mais de uma dezena de filhos. Ou seja, em tudo o oposto das suas personagens, como se percebe logo na primeira narrativa na frase constantemente repetida pelo papagaio: “Amo-te, Rita”. Torna-se assim evidente de que este narrador não é nem uma “máquina solteira” nem um filho sem filhos.

As micro-narrativas de Vila-Matas

Na primeira estória, o narrador preocupa-se em explicar as linhas orientadoras dos textos seguintes, deixando escapar um ou outro detalhe relativo ao próprio quotidiano, para se demarcar das restantes personagens. Preocupa-se sobretudo em explicar como funciona a interacção entre o plano pessoal e colectivo:

Quando, por exemplo, se produz uma notícia de primeiro plano os fantasmas ambulantes que protagonizam os meus episódios nacionais vêem-no como uma ingerência nas nossas vidas e ficam à espera – que chegue a tarde, e então vão nadar. Todos são filhos sem filhos e a sua conduta na maioria dos casos faz lembrar esses seres aos quais a sua própria natureza os afasta da sociedade (…)não precisam que ninguém os defenda pois, sendo obscuros, a incompreensão não os pode tomar como alvo.

Todas as restantes personagens, que protagonizam os episódios seguintes, vivem numa espécie de limbo social, perseguindo cada qual um objectivo específico no qual centram todo o seu modus vivendi, numa acção específica, para a qual canalizam a quase totalidade do seu tempo: o trabalho, o amor, um ideal, um hobby. Ao quebrar-se o fio que une esse mesmo objecto à realidade quotidiana, esvai-se também a vitalidade do sujeito, o próprio desejo de viver, já que a ligação à comunidade não existe de forma sólida ou nem sequer existe de todo. Estas personagens têm, em si, algo de espectral, pela forma como passam pelos outros como se fossem invisíveis. Vivem exclusivamente para si e para os seus pequenos prazeres num habitat frágil, o qual corre o risco de se desagregar a todo o instante.

É o que acontece ao casal sem filhos, a viver em Granada, que fica sem emprego. E a Benito, em Madon, obcecado de tal forma com a profissão que se sente completamente perdido sem saber o que fazer durante as festividades do 1º de Maio. Nesta micro-narrativa temos a particularidade de o narrador ser uma espécie de olho invisível, preso ao mosquiteiro -, ou o próprio mosquiteiro da cama do casal -, como se lá estivesse implementada uma câmara oculta à qual só o narrador principal tivesse acesso.

O conformismo das gentes na tranquila cidade de Saragoça chega-nos através da voz do narrador principal, originário de Sá Rapite. Desta vez, o alvo do olho indiscreto do patriarca marido de Rita, é uma família que brinca com um suposto segredo, um nome oculto para a cidade,tal como na Roma dos antigos, que, lida ao contrario, revelava a essência secreta do coração da cidade ou o móbil que impulsionava a acção das suas gentes: Amor. Os Romanos eram movidos pelas paixões. Pulsões positivas e negativas. A pulsão que move a cidade de Saragoça é inquietante, sobretudo a da família que protagoniza o conto: subterrânea e sub-reptícia. Um segredo sub-rosa que se revela uma mistificação, dentro de uma família cuja união assenta numa mentira.

Em Cáceres, temos um filho adulto e superprotegido, controlado a tal ponto pelos pais que a sua personalidade se atrofia. O desejo de ascensão social e de escapar à poderosa sucção do buraco negro que é a miséria é, da parte dos pais, tão esmagador que para o filho, ser o melhor não parece ser suficiente. Os pais tratam-no como um incapaz, obrigando-o a desistir dos próprios sonhos e ele reage transformando-se num eterno estudante.

Em Arive, na Floresta dos Pirenéus , vive Fermín, o mendigo-poeta, um dom Quixote do século XX, mestre das viagens imaginárias, refugia-se na escrita para ocultar um espírito infantilizado.

Em Lugo, encontramos Liriñas, que trm o hábito de interromper as tertúlias científicas num café da localidade sem observar o menor sentido das conveniências. Massacra os participantes com as suas obsessões e comentários despropositados. Liriñas é o resultado de uma família religiosamente desenraizada dentro de uma comunidade asfixiantemente católica da Espanha profunda.

Em Port de la Selva é traçado um quadro social, inspirado numa frase de Walter Benjamim, mas aplicado às eleições em Espanha, em 1977, em analogia com um episódio similar ocorrido nos Estados Unidos. WB referia-se às eleições do governo local como uma grande palhaçada no circo de Oklahoma.

Em Barcelona, no ano de 1981, a chamada “capita beata” do país, como a apelida o Autor, encontramos uma família com um filho já entrado nos quarenta, casado por conveniência com uma mulher que se julga o centro do mundo e superior aos resto da humanidade. Ele, por seu turno, não gosta de ser confundido com um dos empregados do próprio pai, apesar de trabalhar para ele. Vive uma relação doentia com a esposa, a qual norteia a própria existência pelas aparências, nutrindo uma secreta dependência face ao álcool. Ambos esperam pacientemente o falecimento do patriarca para se apoderarem do património. Demasiado egoístas para terem filhos, não contam com os imprevistos da vida que lhe estragam os planos. Esta estória abrange várias décadas, cheia de avanços e recuos. É composta por uma narrativa principal e uma narrativa secundária que, a dada altura, se interceptam, ficando a segunda contida na primeira, servindo-lhe de complemento. Uma estória dentro de outra estória, como sucede com as bonecas russas. Desta micro-narrativa que é quase uma novela, destaca-se a má-criação e a arrogância e, sobretudo, a falta de decoro dos dois protagonistas, absolutamente detestáveis, quando visitam um casal idoso, cujo elemento masculino é um antigo empregado do pai. Dois entes a quem não se recomenda de todo a ambição de procriar.

De Alkize, no ano de 1970, chega-nos mais uma estória de um solteiro sem vocação paternal, a quem um jovem vizinho deseja ardentemente imitar: um celibatário, com uma vida aparentemente de sonho que se transforma no ídolo da juventude. Mas na realidade, este homem solitário é um ser socialmente débil, que se refugia na esplêndida mansão onde vive, tal como uma larva, eternamente imatura, no casulo de onde nunca chega a sair.

Da cidade de Salamanca, em 1975, emerge uma sinistra criança que sobressai pelo seu inquietante mutismo. Usa o silêncio para magoar os pais. Trata-se de uma personalidade verdadeiramente sádica. Desta vez, a voz narrativa é a da mãe da criança e, possivelmente, o narrador principal é o ouvinte. A mãe conta ao interlocutor viajante a forma como assistiu impotente ao desenvolvimento da malignidade do filho. A criança demonstra invariavelmente um comportamento bizarro: “fala” apenas com uma galinha, evidenciando ostensivamente o poderoso ódio que nutre pelos humanos. O pai, de ascendência italiana, é invulgarmente culto, de uma erudição que contrasta de forma gritante com a simplicidade da mãe que, no entanto, é uma pessoa extremamente intuitiva. O principal indício revelador do desenvolvimento desta estória encontra-se nas entrelinhas desta frase:

do seu longo perorar sobre o facto de nós, seres humanos, sermos portadores de venenos e de diabos interiores que “escavavam” qualquer uma das nossas realizaçõpes maravilhosas.

A frase vem do avô de Tito, a criança em questão, um sujeito simpatizante do fascismo e de cuja personalidade o jovem diabrete parece ser o herdeiro directo. Tito é, assim, uma criança que se diverte a fazer o chamado “terrorismo doméstico”: maltrata a mãe, a empregada, estraga os brinquedos à irmã. O seu principal padrão de comportamento é revelador de uma distorção da personalidade, usado para exercer com os outros uma relação de domínio. Tito é uma criança que extrai prazer com o sofrimento alheio. A maior parte das crianças revela, em determinada fase da infância e de uma forma mais ou menos acentuada, esta tendência. Mas o que torna este caso preocupante o seu desenvolvimento patológico, é o facto de a mãe, sem querer, reforçar este comportamento ao tratá-lo como um pequeno rei deficiente, fazendo de tudo para lhe agradar. Esta atitude ajuda a desenvolver uma personalidade tirânica, em tudo semelhante à do avô. Trata-se de uma criança destinada a nunca gerar filhos porque a personalidade é impeditiva. O desfecho da história é surpreendente e imbuído de uma certa crueldade, fazendo lembrar um conto de Edgar Allan Poe.

Em Toledo, um jogador maníaco, assiste à passagem do Mundial de Futebol, na Tv.

A sua vida, não há espaço para nada a não ser para o jogo. Não existem quaisquer outros interesses. Muito menos a família. O futebol invade-lhe mente como uma erva daninha.

Em Sevilha, 1957, José é um homem tão feio como o vampiro do filme Nosferatu. Mas isso não é tudo. É detentor de uma personalidade que lembra um verso de Rimbaud: José odeia a beleza mas deseja-a. E deseja a beleza que é proibida, o que faz dele a incarnação do Mal. Pelo facto de ser feio, mais do que feio, horrível, e mal amado pela sociedade. Por isso, por ódio, José deseja converter a beleza em dor, por ser incapaz de seduzir ou de se fazer amar…

O último conto deste volume situa-se em Palma de Maiorca, em 1951. É, portanto, mais uma história insular que vem, por isso mesmo, fechar um ciclo. Trata-se da história de um amor incestuoso, o qual, pela sua natureza, jamais poderá dar fruto.

Conclusão: O denominador comum às estórias de Filhos sem Filhos tem a ver com a incidência das mesmas na temática dos excluídos da vida, que insistem em viver segundo as suas próprias regras num mundo que construíram sozinhos para si mesmos. Quase todos se vêem a si próprios como o centro do mundo, impedindo-os de olharem verdadeiramente o Outro e de a ele se dedicarem.

O estilo e o discurso em Vila-Matas

O Autor recorre muitas vezes a artifícios que são do apanágio dos surrealistas, como a perspectiva do mosquiteiro para observar o casal trabalhador, durante o 1º de Maio, recorrendo à personificação e ao animismo. O mosquiteiro é, assim, dotado de alma.

Mas se Vila-Matas utiliza o surrealismo no estilo, adopta, em contrapartida, o realismo absoluto quando se trata da caracterização da expressão das emoções por parte dos seres humanos. Emoções não raro violentas em extremo. Recorre ao artifício da utilização de um narrador principal omnisciente – o patriarca –, o qual se encarrega de compilar as estórias e coleccioná-las num largo catálogo de personagens atípicas.

Enrique Vila-Matas é um escritor cujo público é formado por leitores que não se contentam com estórias banais. Trata-se de um escritor que escreve não sobre personagens épicas, históricas ou símbolos arquetípicos da perfeição. Vila-Matas constrói as suas personagens a partir de esboços de seres comuns, fazendo a sua caricatura a partir dos respectivos pontos fracos: o seu objectivo é quase sempre chegar à personagem do anti-herói, na qual o leitor consegue, quase sempre, encontrar algo que lhe é familiar ou que espelha esta ou aquela faceta da sua realidade quotidiana, a qual pode observar quer dentro de si, quer naqueles que o rodeiam.



Cláudia de Sousa Dias

11.10-2011



4 Comments:

Blogger M. said...

É incrível como o mundo vive em ciclos que se repetem, o que torna o passado com um odor tão actual! Serei eu uma dessas personagens?...
Beijinhos,
Madalena

11:10 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Não me parece. Descarregas todo o teu instinto maternal nos teus gatinhos...


:-)


bjs

11:22 PM  
Blogger Hugo C said...

Estou a ler o livro e estou a gostar. Contudo não consigo concordar com o autor quando diz que tais personagens vivem só para elas, para os seus problemas imediatos. Não julgo que assim seja,se analisarmos bem é até o contrario elas vivem muitas vezes para questoes universais, esquecendo-se de si ao ponto de não contruirem relações sociais, por estas parecerem sem conteudo perante questões fundamentais. E esta é a essencia do artista, do filosofo, do pensador.

10:36 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

é uma questão de ponto de vista...

11:23 PM  

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