“O Gato e o Escuro” de Mia Couto (Caminho)
O Gato e o Escuro é a estória do gatinho Pintalgato, contada por um narrador anónimo que se dirige a um grupo de crianças, reunidas à sua volta. Trata-se de um mini-conto, cuja temática gira à volta do medo do escuro ou do desconhecido: daquilo que está para lá da linha do horizonte ou do muro da nossa casa, da área circundante, até onde a vista dos nossos pais nos consegue alcançar ou até onde chega o braço protector da nossa infância…É uma pequena estória que fala também dos riscos de desobediência, factor que entra em conflito com a crescente necessidade de autonomia, a sede de descoberta e gosto pela aventura do pequeno Pintalgato. E, para incarnar este tipo de personagem, nada melhor do que a figura de um gatinho, traquinas e brincalhão, com aquele sentimento de irresistível curiosidade e intrepidez que normalmente se atribui aos gatos…
Mia Couto escreveu este delicioso conto, não exclusivamente para o público infanto-juvenil ou infantil, mas “para a criança que há em cada um de nós” (sic). Ou seja, para um público sem idade.
Ainda sobre esta obra, o Autor revelou em entrevista às Correntes d’Escritas – Encontro Internacional de Escritores de Expressão Ibérica – que teve lugar na Póvoa de Varzim, entre os dias 12 e 16 de Fevereiro de 2008, o seguinte:
- Aqui há tempos, dei um autógrafo a um menino que tinha lido esse livro. Conversámos um pouco, mas só quando lhe perguntei se ele tinha medo do escuro é que ele respondeu, é que ele falou realmente comigo: "Sim. E Tu?" e eu respondi "Também." Então aconteceu algo de extraordinário: Ele sentiu-se na obrigação de me consolar e, com isso, citou-me uma frase do livro como se fosse dele – Somos nós que enchemos o escuro com os nossos medos! - Para mim foi o melhor prémio literário que tive até hoje!
A pequena estória é contada num tom coloquial, como se fosse dirigida a crianças que estão a escutar atentamente uma narrativa, mas onde o encanto poético colocado nas frases e a cadência, o ritmo, a elas associado, tem o condão de seduzir, também, os adultos, enfeitiçando-os com a musicalidade das palavras e restituindo-lhes a infância e a voz dos avós, que antes nos contavam as estórias do “escuro”, ou melhor, dos nossos medos, à lareira…
Os neologismos de Mia Couto, sabiamente introduzidos em momentos-chave da narrativa, enriquecem o conto de forma substancial, através da aglutinação de, por exemplo, substantivos com verbos, como é o caso de pirilampiscavam, tiquetaqueavam ou despersianar os olhos – este último um substantivo transformado em verbo ao qual se juntou um prefixo, para dar a imagem de um abrir de olhos a custo, como se se puxasse uma persiana…ou então a transformação de adjectivos em verbos como, por exemplo, amarelar, ou um substantivo num advérbio, como noitidão.
Há, também, a construção frásica atípica em relação à norma existente em Portugal, fazendo lembrar a voz de um velho feiticeiro tribal a encantar os mais pequenos: Faz de conta o pôr-do-sol fosse um muro. Faz mais de conta ainda os pés felpudos pisassem o poente.
A fuga à norma no que toca à construção gramatical é, aqui, utilizada como um recurso estilístico, de forma a “vestir” a personagem do narrador, que adquire verosimilhança pelo tom poético que as imagens transportam imediatamente para o imaginário visual do leitor, as quais poderiam perfeitamente ser transportadas para um filme de animação de altíssimo nível. Um gato a pisar a linha do horizonte, quando o sol desaparece é uma cena visual descrita numa frase que perderia muito do seu encanto se fosse enquadrada na frieza da norma.
As ilustrações estão a cargo de Danuta Wojciechowska que recebeu o Prémio Nacional de Ilustração de 2003, tendo sido também distinguida com Menções Especiais do Júri em 1999, 2000, 2001 e 2002. A Ilustradora foi a candidata portuguesa ao Prémio Hans Christian Andersen em 2004. Tendo nascido no Quebec, em 1960, é licenciada em Design de Comunicação em Zurique, obtendo uma pós-graduação em Educação em Inglaterra. Actualmente vive e trabalha em Lisboa desde 1984. Em 1992, fundou o atelier Lupa Design, onde se dedica ao design, ilustração e cenografia (fonte, Editorial Caminho).
As ilustrações de Danuta traduzem com extraordinária precisão a expressividade do texto de Mia Couto, dotando as cenas desta pequena estória de grande beleza, as quais são exibidas numa paleta de cores ocre, índigo, azul noite, ajudando muito à visualização do próprio texto pelos leitores…e fazendo de um livro como O Gato e O Escuro uma obra de arte, com ilustrações ao nível de pintores como Marc Chagall ou Paul Gauguin…
Cláudia de Sousa Dias
Revisão: Gonçalo Mira
8 Comments:
Mia Couto sempre foi um escritor dos da lista "tenho que ler" sobre o qual ainda não concretizei o interesse. A ver se dou uma chance a este "O gato e o escuro".
este texto ficaria bem se reformulado...o livro apesar de infantil tem muito das questões existenciais do mundo adulto se visto como uma alegoria...
fujo constantemente de Mia Couto por ser tão frequentemente lido pela generalidade das pessoas, mas cada vez que o vejo comentado penso que tenho de ultrapassar a ignorância.
Esse medo do escuro é, de facto, algo que temos de continuar a enfrentar muito depois da infância!
Beijinhos, bom sábado!
Madalena
Pode ler à vontade Ramalhete. Vale a pena. Só não nos devemos é limitar aos autores sobre os quais a opinião pública é consensual. Devemos ler também os "OUTROS", sempre que possível...;-)
Abraço
CSD
Obrigada, M! tive um sábado fabuloso, sim...! depois conto-te os detalhes.
Um grande beijinho.
Não sei onde deixar esta sugestão de leitura.
Deixo-a aqui:
http://blogscraps.blogspot.com/2009/10/e-ainda-para-o-lado-mistico-nao.html
vou lá espreitar, F.
;-)
um beijinho
csd
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