“Nome de Toureiro” de Luís Sepúlveda (ASA)
Tradução de Pedro Tamen
Neste romance, o Autor mundialmente aclamado por títulos como “O Velho que lia Romances de Amor” e “História de uma Gaivota e do Gato que a ensinou a voar” mostra a sua versatilidade ao abraçar um género de narrativa que se distancia, de certa forma, do lirismo do primeiro e do humor e alegoria do segundo, abraçando o género do romance policial negro. Em “Nome de Toureiro” não falta, por isso, o sangue, a intriga, o mistério e as mudanças sociais decorrentes de um ponto de viragem na História da Europa no último quartel do século XX: a queda do Muro de Berlim, em Novembro de 1989 e posterior desmoronamento da “Cortina de Ferro” juntamente com o final da Guerra Fria entre as duas principais super-potências económicas e militares a nível Mundial: os Estados Unidos e a União Soviética sujeitando o Mundo a uma guerra de nervos que durou quase meio século.
A posição do narrador de “Nome de Toureiro” é a de um frio e algo distante cepticismo face à tentativa de as principais potências mundiais tentarem atribuir, a partir de então, um fim à História, após a vitória e domínio absoluto do capitalismo financeiro.
Luís Sepúlveda foi buscar a inspiração para o romance aos anos passados no exílio em Hamburgo, nos início dos anos 1990, altura em que o Chile ainda atravessava os últimos anos do regime da ditadura militar. O Autor traça-nos um relato, divertido e irónico, bastante realista, do quotidiano de um imigrante no território correspondente à ex- Alemanha Federal, ao pôr a nu as contradições da grande utopia do Ocidente que é a Igualdade de Oportunidades descrevendo as dificuldades de um cidadão que não fazendo parte da UE, busca asilo político naquele território, sendo forçado a adaptar-se aos novos tempos e, a bem dizer, às novas formas de discriminação existentes. Um dos principais problemas que enfrenta a Alemanha reunificada poderá ser representado numa das cenas mais divertidas do romance onde o narrador fala da “otomanização dos estrangeiros na Alemanha”, passando a explicar as contrariedades com a vizinha, a qual confunde um tango de Gardel com uma orientalíssima dança do ventre, fazendo queixa á polícia por causa do barulho de uma “festa turca”. Da mesma forma, a descrição da rixa numa casa de alterne onde o protagonista desempregado que arranja um emprego temporário exercendo as funções de porteiro do mesmo estabelecimento, se assemelha à luta de gatos de rua que observamos nas aventuras de Zorbas em “História de uma Gaivota e do Gato que a ensinou a voar”, exprime uma situação bastante concreta de conflitos sociais entre autóctones e imigrantes naquele país.
Em “Nome de Toureiro”, Luís Sepúlveda descreve ainda durante a parte da acção passada na Alemanha, uma sociedade onde as competências importam muito menos do que o sucesso, obtido seja de que forma for, descurando ética e os meios utilizados, e onde tudo vale para a obtenção do reconhecimento social, a cujo acesso só se pode concretizar através de uma via de sentido único: a aquisição de poder económico. Para tal, o Autor alude, às dificuldades de reconversão de funções, numa sociedade em profunda transformação, sobretudo dos funcionários do estado da ex República Democrática Alemã (RDA)e da necessária adaptação ao novo sistema político-económico, pressupondo um saneamento geral, sobretudo de todos os serviços ligados à espionagem, que passam a ser dispensáveis por carecerem de sentido.
O problema consiste sobretudo em o que fazer com aquelas pessoas, muitas delas ultra qualificadas, e onde recolocá-las.
Entretanto, nos Andes, o local da acção principal, somos esmagados por uma incomensurável beleza agreste de uma paisagem inóspita e algo selvagem como é a da Terra do Fogo. Nestas paragens, o fim da ditadura no Chile trouxe, também, alguma mudança. E, com ela, algum desencanto em relação àquela espécie de fervor ideológico, que antes era visto como uma espécie de dogma. O final do período de exílio do protagonista, outrora espião e agora convertido em detective privado, encarregue de uma missão reveladora de algumas das facetas mais negras do passado histórico Europeu do último século, onde se esbate, cada vez mais a fronteira entre “bons” e “maus”, marca a mudança de cenário, dando início à acção principal do romance.
Ao mergulharmos na leitura de “Nome de Toureiro” percebemos que os regimes totalitários foram substituídos, nas últimas décadas, por uma omnipotente ditadura financeira, a partir da qual o mercado de capitais controla a vida dos cidadãos e, ao mesmo tempo, tomamos também consciência do quanto as sociedades se encontram distantes da gigantesca utopia a que chamam “liberdade”.
O romance policial e de espionagem de Luís Sepúlveda converte-se, a partir do final da segunda parte, numa autêntica caça ao tesouro, que é o mesmo que dizer numa impiedosa luta pela posse do capital e na qual a perseguição aos antigos perseguidores, sejam eles “nazis” ou “comunistas”, todos eles com um extenso curriculum de crimes políticos e genocídios, não deixa margem para certezas quanto a saber se algum dos lados conseguiu realmente sair vencedor de tal contenda.
O livro é dedicado ao escritor argentino Haroldo Conti, utópico dos ideais de democracia, igualdade e liberdade, desaparecido em Buenos Aires em 1976.
Impressões sensoriais a partir da escrita de Sepúlveda em Nome de Toureiro
A sensação de desolação e ruralidade começam por estar presentes logo no prólogo, na deliciosa cena que contém o diálogo entre o condutor de um velhíssimo autocarro e um almocreve. Daqui sobressai divertido diálogo, cheio de humor e ironia, a contrastar com a impessoalidade da selva urbana de Hamburgo.
A paisagem dos Andes é hostil, mas há um inequívoco calor humano nos diálogos, ainda que casuais, dos seus habitantes, proporcionando um contraste irresistível com “o mar que murmura de ódio ao passar pelo Estreito de Magalhães”. Este mesmo contraste faz imediatamente intuir um indício de tragédia ou drama iminente, que se consumará no capítulo final. Pelo meio, sobressai, nas entrelinhas, o humor negro do Autor, com particular ênfase no discurso do motorista do Autocarro, de uma provocadora acutilância.
A trama
O núcleo central da história envolve dois polícias do III Reich e a respectiva actuação face ao desvio de um cobiçado tesouro, durante a Segunda Guerra Mundial, um dos quais foge com a fortuna para a Terra do Fogo. A narrativa é circular já que o local de acção no início, o Sul do Chile, coincide com o final após várias peripécias na Europa e nas Caraíbas. Assiste-se ao desfecho da história, decorrente do reencontro das personagens antagonistas; o protagonista viaja em missão com o nome de Juan Belmonte, nome de uma conhecida vedeta de tauromaquia, isto é, viaja sob Nome de Toureiro, incumbido pelos serviços secretos da nova Alemanha reunificada da tarefa de recuperar o tesouro para os cofres do estado.
Sob(re) Nome de Toureiro
O protagonista da missão, Juan Belmonte é um homem inteligente, culto e bem-humorado poliglota que vive no limbo social durante o exílio em Hamburgo. Em Berlim, conhece Franck Galinski, um assassino, a soldo da antiga Stasi (polícia política da antiga RDA), o cerne da intriga, cujas raízes se estendem até à América Latina. A despedida de Juan Belmonte da Alemanha dá-se em Berlim, lugar onde se desloca para ser informado da proposta para trabalhar para os Serviços Secretos e marca o final de uma temporada de desemprego e marasmo.
De volta à América do sul, o agente secreto Belmonte encontra Pedro de Valdívia, participante activo da revolta sandinista na Bolívia, estabelecendo-se de imediato uma empatia instantânea entre ambos, sobretudo após comentarem as atrocidades cometidas por Anastacio Somoza – ditador boliviano que mandou cortar a mão a vinte crianças que atiravam pedras, durante a insurreição de Marsuya, das quais só doze sobreviveram.
Do território chileno vêm, também, alguns fantasmas do passado à mente de Belmonte. O mais presente é o de Verónica, uma paixão da juventude, psiquicamente destruída após um prolongado período de tortura às mãos de algozes a mando de Pinochet.
O fio de Ariadne do desenvolvimento da narrativa é reatado, após algum período de dispersão, em Santiago do Chile a partir de um estranho objecto que traz ao presente memórias distantes, reunindo algumas peças que faltavam para compor o puzzle: um quebra-nozes. O faro de caçador de tesouros de Juan Belmonte é activado em todas as suas potencialidades de encontrar elementos de ligação, face a esta nova pista…
No epílogo, assistimos ao último adeus de Belmonte à Terra do Fogo, findo o trabalho de investigação e ao desvendar de uma complexa trama policial muito ao estilo de John Le Carré.
Um destaque especial vai para a magnífica descrição da extrema beleza da noite austral, triste e desoladora, a qual provavelmente terá inspirado o poeta Pablo Neruda na sua poesia tão cheia de lirismo telúrico e que Luís Sepúlveda tão bem soube representar nas imagens que transmite numa prosa tão rica quanto inflamada de poesia. Também a extrema simplicidade e bonomia das gentes locais desta região tão remota são aqui realçadas, assim como o pragmatismo de um povo ligado à terra e à natureza. Um povo cujas qualidades o colocam numa situação frágil, porque exposto aos abutres, sobretudo humanos, que sobrevoam o céu austral…
Cláudia de Sousa Dias
25.04.2011
2 Comments:
Parece muito bom! Tenho os dois primeiros títulos, mas ainda não os li (para variar...).
Beijinhos,
Madalena
Lêem-se muito bem...todos eles ;-)
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