“A Confissão de Uma Jovem” de Marcel Proust (Teorema)
Filho de Adrien Proust, célebre patologista, e Jeanne Weil, uma jovem alsaciana de origem judia, Marcel Proust nasce numa família rica que lhe assegura uma vida desafogada, permitindo-lhe frequentar os salões da alta sociedade da época.
Estuda Ciência Política na Sorbonne, mas em 1900, efectua uma viagem a Veneza, durante a qual se dedica às questões de estética. Em 1904, publica várias traduções do crítico de arte John Ruskin (1819-1900).
Paralelamente à actividade de cronista social para o Le Figaro, ao desenvolver a carreira de escritor, escreve Jean Santeuil, romance deixado incompleto, publicou Os Prazeres e os Dias (Les Plaisirs et les Jours), onde reúne uma série de contos e poemas de onde foram retiradas as estórias contos presentes no volume de que aqui tratamos.
Após a morte dos pais, a saúde de Marcel Proust, já frágil, deteriora-se mais. A morte da mãe, em 1905, fez dele herdeiro de uma fortuna razoável. Com a saúde cada vez mais debilitada, Proust acaba por se isolar dos meios sociaisdedicamdo-se exclusivamente à criação de Em Busca do Tempo Perdido, publicado entre 1913 e 1927, em oito volumes: No Caminho de Swann, À Sombra das Raparigas em Flor, O Caminho de Guermantes (1 e 2), Sodoma e Gomorra, A Prisioneira, A Fugitiva e O Tempo Redescoberto.
Esta série de oito volumes é consideradas umas das maiores obras da Literatura, não apenas do século XX, tendo inclusive o volume À Sombra das raparigas em Flor, recebido, em 1919, o Prémio Goncourt, mas de toda a História da Literatura.
A homossexualidade é tema recorrente em sua obra, principalmente em Sodoma e Gomorra e volumes subsequentes. O Autor arabalhou incansavelmente até falecer, em 1922, esgotado, vítima de uma bronquite mal curada, agravada pelos efeitos da asma crónica de que já sofria desde tenra infância.
As narrativas das estória de “A Confissão de uma Jovem” contém episódios que, à luz da época, constituíam um verdadeiro escândalo social, deitando por terra todo um conjunto de tabus sociais relativos à sexualidade das jovens casadoiras da alta e média burguesia e denunciando a hipocrisia da moral preconizada pela alta burguesia da Europa do início do século XX.
A “confissão” tem a ver com o fim da vida da jovem Françoise que no primeiro dos contos deste volume conta a sua iniciação sexual na adolescência. O último dos contos “Ao anoitecer” é uma viagem pelo íntimo da mesma Françoise, depois de enviuvar. Ambos são construídos sobre o impulso de narrar da mesma pessoa que, após a tentativa de suicídio mal calculada – uma vez que a morte não é imediata, mas se prolonga numa lenta agonia que dura vários dias – decide confiar a um amigo o conflito vivido entre o impulso da procura do prazer e as restrições impostas por uma moralidade judaico-cristã, que reprime a sensualidade e a sexualidade, sobretudo feminina, fora do casamento e a homossexualidade.
O discurso é melancólico e predominantemente depressivo. A melancolia prolonga-se no tempo, ora fazendo arrastar toda uma existência agarrada à memória de um passado, marcado pela vertigem de uma paixão reprimida pelas convenções, ora pela procura obsessiva do prazer que permita esquecer a felicidade perdida, buscando refúgio nas “falsas alegrias” de uma vida social – e sexualmente – trepidante.
A descoberta do prazer sexual na adolescência deve-se à atitude audaz e transgressora de um jovem mais velho “mundano” – um dândi – que a rejeita em seguida. A jovem sente-se obrigada a esconder da mãe os encontros secretos com o amante, devido à valorização que, na época, se atribuía à virgindade, até à data do casamento. Mas a rejeição do primeiro amante impele-a a procurar o prazer de forma compulsiva, de forma a encontrar um sucedâneo de uma paixão da qual se torna dependente como de uma droga. A protagonista precipita-se, então, num torvelinho de festas e reuniões sociais onde sempre se torna o centro das atenções:
Sempre dominada pelo desejo de ser admirada dentro de uma jaula elegante, nunca senti menos profundamente a música.
Com a morte da mãe, vê-se a braços com a necessidade de efectuar um casamento motivado mais pela necessidade de sobrevivência que pela paixão. No relacionamento conjugal predominam, sobretudo, sentimentos como o dever e a gratidão. No entanto, o desejo pelo proibido continua a ensombrar-lhe o pensamento.
No conto Um Jantar na Cidade o convidado de honra é Honoré, tido como um solitário árbitro das elegâncias. Durante a reunião, fala-se de frivolidades e relações paralelas ou clandestinas entre alguns convivas, que se tornam notórias em alguns comportamentos não verbais:
A dona da casa lançava-lhe a todo o momento olhares flamejantes que explicavam muito bem porque o concedia e como dentro em breve faria parte da sua sociedade.
O alvo dessas mesmas atenções é o elegante convidado sentado ao lado de Honoré.
Nos diálogos á mesa da casa de jantar sobressai, nas entrelinhas dos diálogos, alguma malevolência e muito elitismo desdenhoso, típico de classes privilegiadas, com particular incidência na alta burguesia que pretende equiparar-se à classe aristocrática.
O snobismo de Madame Trennes impunha-se às suas amigas e o das suas amigas era uma espécie de garantia contra o emburguesamento.
Já a verdadeira aristocrata, Madame Lenoir, era “uma prostituta da nobreza”, a quem os demais tratavam com deferência, por causa da idade avançada - e pela sua ligação à família real -, pela sua grande fortuna e constante esterilidade dos seus três casamentos…
O narrador faz ainda um minucioso trabalho de tipificação dos diferentes níveis de snobismo.
Só Madame Lenoir parece constituir um caso à parte: tratada como uma rainha-mãe, sente-se, paradoxalmente, exilada da sociedade mais jovem, falando sempre com ternura e nostalgia dos “velhos fidalgos de outrora”. De acordo com o ponto de vista pessoal do narrador, este tipo de snobismo trata-se de exibicionismo puro e simples, denotando uma imaginação vívida e fértil.
Os olhos cintilavam de desejo. O seu aspecto sorridente era nobre, mas tinha uma expressão excessiva e insignificante.
(…)
Algumas rosas, já velhas, cingiam a sua fronte estreita.
A este tipo simples de snobismo opõe-se o snobismo de teor humanista, a conter uma boa dose de hipocrisia. A este género de snobes o narrador considera-os igualmente superficiais em relação aos da outra espécie, embora lutem contra o que chamam de “embrutecimento profundo”, a verdadeira causa da emergência deste sentimento (o snobismo), mas sem se empenharem a fundo na luta contra a pobreza propriamente dita. No entender do mesmo narrador, estes snobes literatos discutem literatura e falam de desigualdades sociais, apesar dos elevados rendimentos de que desfrutam. A pobreza é abordada como um assunto trivial, preocupante, sem dúvida, mas que não lhes diz respeito.
Com a descrição deste jantar, a intenção do Autor é a de denunciar a hipocrisia que se esconde atrás de uma falsa caridade a mascarar apenas um forte desejo de projecção social e reconhecimento. Trata-se de pessoas cujos actos altruístas são apenas motivados pela própria vaidade pessoal.
A ironia fina e o sarcasmo presentes nos comentários dos convivas durante o jantar e todo o serão despoletam cínicas gargalhadas, para embaraço do convidado elegante que se senta ao lado de Honoré, ao qual a mesma autora dos comentários desdenhosos parece devorar com o olhar.
O tema da pobreza vem, mais uma vez, à baila com diplomática indiferença, denunciando a verdadeira posição das classes privilegiadas face ao abismo social criados pelo liberalismo económico, causador do incomensurável abismo entre ricos e pobres.
Na segunda parte da narrativa - Depois do jantar – ainda em casa de Madame Trennes, Honoré sai em busca de prazer para os Campos Elísios. Enquanto passeia da rua, descreve com requinte a oferta de sexo disponível, de todos os géneros.
Marcel Proust recorre, no entanto, ao uso do eufemismo, para não ser alvo de atitudes censóreas quer por uma questão de requinte estilístico.
Entregava-se, assim, à admiração de quem passava, com essa ternura de travar com as outras pessoas um voluptuoso comércio.
A passagem à estória seguinte – O Fim do Ciúme – sublinha a principal do uso frequente do possessivo entre os amantes, a que se soma o desejo de protecção e domínio, a que se alia um certo paternalismo no emprego do diminutivo entre o protagonista e a amante, o que dá uma certa puerilidade aos diálogos. Como este é perfeitamente capaz de ser infiel convence-se de que a mulher também o trai, manietando-a de forma a tentar obter a confissão da própria infidelidade, marcando o fim do relacionamento, que se torna impossível, devido ao complexo de Otello, por ele desenvolvido. Devido a este transtorno de ordem afectiva, este otello proustiano acaba por sofrer um acidente que o torna incapacitado e objecto da piedade feminina. Piedade não é amor e muito menos desejo. Um deficiente físico que não tem, no entanto, ciúme do amor que possam dedicar ao objecto que amado, mas sim do prazer que lhe possam proporcionar. A vida torna-se, para ele, uma verdadeira agonia.
Outra situação paradigmática, descrita no conto seguinte, é aquela narrada no capítulo O Indiferente tem como protagonista o talentoso maestro Lepré, um homem extremamente reservado em sociedade, indiferente à atenção que lhe dedicam as beldades, por ter consciência da sua condição económica não muito desafogada e físico um tanto apagado. O maestro Lepré detém, a par de um indiscutível talento, uma aparentemente inexplicável baixa auto-estima. Mesmo o “encontro primitivo” com Madame Lawrence, conhecida pelo hábito peculiar de se enfeitar somente com flores no lugar de jóias, uma das mais bonitas mulheres de Paris, deixa-o na defensiva. Lepré, apesar de sensível e inteligente, nunca tem sucesso com as mulheres. Até ao momento em que é do conhecimento público que está de partida…sendo então tratado com toda a amabilidade e deferência. É somente nessa altura que se permite baixar as próprias defesas, apaixonando-se quando se sabe na eminência de perder o objecto do próprio desejo. Lepré personifica o tipo de homem que não deseja efectivamente apaixonar-se por temer a vida em comum. Trata-se de um solitário convicto. Por outro lado, tem uma faceta oculta e ultra-secreta: as mulheres da dita “boa sociedade” não lhe interessam porque aprecia a imoderação das chamadas “mulheres da vida”. É por isso que se esforça por convencer a cobiçada beldade que o admira a resignar-se a uma intimidade puramente amigável. Esta acaba por casar com alguém que lhe dá a atenção de que necessita, compensando o desprezo do maestro.
O final – Ao anoitecer
Voltamos a Françoise, a amante suicida.
A descrição do ambiente e a própria caracterização física da protagonista apelam simultaneamente ao romantismo e ao simbolismo: a presença envolvente da noite e a melancolia, são sublinhadas pelo predomínio de tons lunares e azulados como o azul-violeta dos olhos e os miosótis contemplados por Leslie, o amigo confessor e confidente. O pôr-do-sol e o cair da noite estão em sintonia com a despedida da vida de Françoise, num cenário onde a volúpia decadente se mistura à nostalgia.
Leslie escuta a jovem, algo desolado, face à admiração platónica que lhe dedica. Françoise está viúva há mais de vinte anos. Há uma curiosa referência à homossexualidade feminina, em determinada altura da viuvez, num extraordinário golpe da ousadia dado por Proust na literatura daquela época.
Este último conto publicado na Revue Blanche vem confirmar um facto já presente no conto inicial onde já se deixava entrever a homossexualidade do Autor projectado na adolescente que o protagoniza, ainda solteira, a adoptar atitudes que indiciam a prática da sodomia.
Neste estágio, em conversa com Leslie, vinte anos depois, Proust debita, pela voz de Françoise, a defesa do direito individual à escolha da orientação sexual e da possibilidade de esta mudar conforme a fase da vida e devir do próprio Desejo.
Leslie é um ouvinte empático. Françoise admite terem existido ao longo da própria vida demasiadas “sombras”ou situações que sempre preferiu guardar para si mesma para não se expor à críticas da sociedade:
Se o amor fecundo, destinado a perpetuar a raça, nobre coo um dever familiar, social e humano, é superior ao amor puramente voluptuoso, em contrapartida não há contrapartida entre os amores estéreis e não é menos moral, ou pelo menos não é, antes, mais imoral que uma mulher tenha prazer com outras mulheres do que com outras pessoas do esmo sexo. A causa desse amor está numa alteração nervosa que se revela muito exclusiva, para ter um sentido moral.
Após esgotar os argumentos para a dissertação sobre as diferentes manifestações do desejo, da livre expressão dos sentimentos e das diversas formas que assumem as relações pessoais, assim como o acondicionar destes impulsos com os constrangimentos impostos pela sociedade patriarcal, a vida de Françoise parece esvair-se, evaporar-se, esgotar-se à medida que o dia fenece…
Apesar de não ser a obra mais importante de Proust esta é uma obra que realça a reacção ao conservadorismo materialista do início do XX. Uma obra de refinado estilo literário, sublinhada pelas emoções complexas e subtileza de sentimentos nela descritos.
Cláudia de Sousa Dias
8 Comments:
Excelente o livro e o texto.
abraço
Abraço, também, Bau.
Parabéns por seres o primeiro a comentar este texto em particular!
um beijinho.
csd
Deixei-te mais elementos para inserires no GPS:
«Pantera, é edição numerada e assinada pelo autor até ao 80... depois, se houver, será em «branco»
Só irei ao Porto lá para Setembro; deixa contacto no e-mail ou aqui e modero»
está bem, Fallorca...!
;-)
csd
Uma confissão vergonhosa: nunca li Proust!
e eu nunca li James Joyce...e, maior vergonha ainda, nunca li Dostoievsky...
csd
Eu apenas comecei o "Dubliners", que jaz por aqui... Dostoiévski é mesmo obrigatório, tal como Proust ;)
Já tenho pilhas deles à minha espera...na minha estante!
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