"Despojos de Berlim" de Michael Pye (ASA)
Após ter dedicado grande parte da vida profissional ao jornalismo, Michael Pye optou pela dedicação, a tempo integral, à actividade de escritor, dividindo o tempo entre Londres e Portugal.
A carreira anterior e a formação académica – é licenciado em História – contribuíram largamente para a compilação do romance de que aqui tratamos, cuja trama é inspirada em personagens reais e factos históricos.
O tema escolhido é o comércio ilegal de obras de arte, roubadas na Europa durante a Segunda Grande Guerra do século XX a um número avultado de famílias judias, pertencentes às classes abastadas nos vários países europeus, anexados ao Terceiro Reich.
A narração é feita por várias personagens, sendo explorado o respectivo ponto de vista, em duas épocas diferentes. O jogo do tempo é um recurso estilístico que o Autor utiliza com mestria, adaptando a forma de olhar, consoante a época e a personagem. Assim temos a vilã da história enquanto criança e, depois, idosa; o protagonista, na infância e na meia-idade; uma filha, que funciona como observadora exterior, sem participar directamente nos acontecimentos que fazem parte da trama principal. A alternância dos narradores permite mudar a perspectiva dos factos, como se filmássemos a mesma cena a partir de ângulos diferentes.
Uma das cenas que mais impacto causam no leitor é a descrição feita por Helen, a filha de Nicholas Müller-Rossi, que vigia a caminhada do pai em direcção à estação de caminho de ferro para apanhar o comboio que o levará à cidade onde decorre o funeral do próprio pai, avô de Helen. A extrema solidão que envolve o sexagenário é enfatizada pela descrição detalhada do ambiente desolador em pleno Inverno Suíço. O estilho é cinematográfico, mas a exaltação de certos detalhes faz lembrar um filme de animação de Tim Burton.
A característica que mais chama a tenção em Nicholas é o desalento que o envolve e a impenetrável muralha de solidão que constrói à sua volta e o abraça como um pesado sobretudo submergindo-o como um nevão nos Alpes, o que o torna invisível aos olhos dos poucos transeuntes que circulam na rua àquela hora. A mesma invisibilidade e aparente conformismo criam, no entanto, uma empatia instantânea no leitor.
A personalidade da mãe de Nicholas é usada como contraponto no desenvolvimento da trama. Frívola, Lucia Müller-Rossi demonstra um gosto excessivo pelo luxo e pela ostentação. É a incarnação da avidez, dissimulada sob uma capa de falso altruísmo e falsa dedicação maternal. O gosto pelo exibicionismo é destacado logo a partir da infância, no seio de uma família privilegiada de banqueiros italianos. Neste ponto haverá, talvez, algo a dizer a respeito da escolha do narrador: o autor optou por um narrador não participante, que relata a atitude da jovem Lucia, a partir da observação externa. No entanto seria, talvez, mais enriquecedor se a narração deste capítulo fosse feita a partir da memória da própria personagem de forma a que o leitor pudesse entrar no fio condutor do pensamento, do raciocínio e das motivações da mesma, ao invés de o fazer de forma indirecta ou melhor, conduzida pelo narrador externo.
Mesmo assim, percebemos apenas que Lucia não soube lidar com o empobrecimento ao atingir a idade adulta, o que lhe começa a criar sérias dificuldades sobretudo quando pretende continuar a usufruir de um padrão de vida semelhante ao de outrora. As dificuldades quotidianas tornam impossível o desejo de manutenção do mesmo nível de qualidade de vida em tempo de guerra e as fortes privações fazem com que desfira sucessivas punhaladas na ética, atirando ao mesmo tempo a responsabilidade dos seus actos para os ombros do filho pequeno que era, então, Nicholas de forma a justificar os seus actos.
Dicotomia entre passado e presente na estrutura do romance
Uma das características principais do romance é, como já foi dito, a ênfase no jogo entre os “tempos” da narrativa. A trama prossegue o seu curso através de um vaivém de cronológico, de forma a desvendar progressivamente o mistério sob o qual se ocultam as atitudes das personagens. Desta forma, o Autor consegue adiar a descoberta de um passado embaraçoso numa família de classe média alta, a viver tranquilamente na Suíça em plena década de 1990. O mesmo passado incómodo irrompe abruptamente como que pela mão de uma Némesis nonagenária, incarnada na figura de uma jornalista judia, descendente de uma das famílias espoliadas a viver em Inglaterra, Sarah Freeman.
O contraste entre o presente mostra uma Suíça onde reina a ordem e o progresso. Já a caótica Alemanha do final dos anos 1930 e 1940 confere à história o movimento necessário para dotar o romance de dinamismo.
O elo de ligação entre as várias épocas continua a ser o interesse da mãe de Nicholas por obras de arte e o desejo de posse de Lucia ou, pelo menos a vontade de fazer girar a vida à volta do luxo, seja este desejo operado de forma lícita ou não. Lucia justifica todas as suas atitudes em nome da sua sobrevivência e do filho: ao mudar-se para a Alemanha no período mais “quente” do conflito, Lucia conseguirá sempre, graças aos seus contactos e encanto pessoal, um emprego considerado na altura invejável - num estúdio de cinema e na produção de filmes de animação. No entanto, Lucia quer sempre o melhor e está disposta a tudo para obtê-lo.
As consequências e o impacto das atitudes desta mulher só são conhecidas meio século depois, pela mão de Sarah Lindemann, Freeman após o casamento, na altura em que esta identifica um dos objectos roubados à própria família, exposto precisamente na montra da loja de Lucia.
A personagem Lucia e os factos que são construídos à sua volta são extraídos a partir de acontecimentos veríodicos, que vieram a público nos anos 1990, envolvendo actividades ilícitas e criminosas de uma comerciante de arte Andreina Schwegler-Torré e através do relato de Thomas Bluomberger sobre o comércio ilícito de arte na Suíça. É daqui que nasce Lucia Müller-Rossi, mãe do protagonista Nicholas.
A Luz sobre os “despojos” de Berlim
A luz fria que incide na paisagem helvética, dias cinzentos ou a beleza gélida da natureza alpina como que mantém congelado um passado que perece encontrar eco na paisagem e na memória dos habitantes no tempo presente. No passado, em plena Berlim dos anos 1940, a paisagem é também cinzenta e fria, mas urbana, desumanizada e inquietante, onde os habitantes se esgueiram por entre os escombros, resultantes dos bombardeamentos. Quase respiramos de alívio de cada vez que regressamos ao presente e à límpida claridade dos Alpes, onde são evocadas as memórias de Nicholas a partir das quais nos apercebemos das verdadeiras cores do passado. À medida que Nicholas se afasta do contacto social para se reencontrar, a sós, com a própria consciência e a magnitude da responsabilidade com que lhe carregaram os frágeis ombros, hoje vergados pelo cansaço o drama vai-se condensando como o gelo antes de deflagrar a tempestade de neve. Ou a avalanche.
Só no final do livro nos percebemos que afinal é realidade de que se trata no romance é feita de cores intermédias, após a leitura do ultimo capítulo. Até lá, o Autor brinda-nos apenas com alguns vislumbres parciais, flashes, quer através do olhar atento e inocente de Nicholas enquanto jovem, no tempo de solidão e afastamento na Berlim em guerra, enquanto a mãe trabalhava. Nicholas é suficientemente inteligente para reparar em alguns aspectos incoerentes da vida da própria mãe, sem no entanto conseguir descodificá-los: uma vida cheia de ausências e mistérios, onde se adivinha uma intensa actividade social, mas uma vida da qual ele, Nicholas, não faz parte.
O mergulho no passado ajuda à compreensão de que a solidão é uma constante ao longo da vida dedo jovem, interrompida somente durante o casamento com “Marthe”.
A carência de víveres ,sofrida na pele pela população durante o período de guerra e de qual Lucia se serve para justificar um passado do qual no fundo se envergonha, nunca chega a ser absoluta em casa dos Müller-Rossi, devido à facilidade com que a mãe utiliza os seus contactos sociais para conseguir géneros ou senhas de racionamento.
A Ética e a moral
As personagens Sarah e Péter servem de bitola para as atitudes de Lucia, mas nada podem fazer para inflectir o destino de Nicholas de forma que a vingança Nemésica de Sarah deixa de ter sentido a não ser para recuperar os objectos materiais.
Outro aspecto curioso no romance é a referência de A Peter, ex-piloto da RAF à situação social Alemã. Ao piloto reformado confunde-o o facto de não haver variação na paisagem urbana, a diferença entre as casas dos ricos e as dos pobres é quase nula. O excesso de ordem na cultura germânica e o facto de a pobreza existir mas não ser visível causam-lhe desconforto. A Alemanha e a cultura germânica é talvez, demasiado higiénica para os padrões britânicos. Ou, talvez demasiado hipócrita.
Aos acontecimentos de Despojos de Berlim, está subjacente a ética observada nos nossos dias, na Europa da actualidade onde se acentua de dia para dia uma tendência para a desculpabilização e relativização das responsabilidades individuais por, via da psicologia social que tudo parece explicar e compreender.
Uma forma de olhar o mundo que, levada ao extremo, poderá reforçar atitudes pouco éticas e muito pouco responsáveis por parte de certas pessoas, no entender do Autor. Em relação a Lúcia, esta não será a harpia que se pensa no início do romance, mas alguém que sacode, sem ponta de remorso, toda e qualquer responsabilidade ou sombra de culpa dos próprios ombros no tocante às consequências dos seus actos.
Sarah Lindemann actua no romance como uma espécie de juiz empenhado em colocar as coisas no seu devido lugar, papel que é confirmado pela afirmação de quepodemos ser absolvidos nos tribunais pelos crimes mais abomináveis, mas nunca nos perdoamos a nós mesmos. Por isso se finge, se representa o papel de mãe amorosa e sacrificada.
Mas a verdadeira Némesis na história não é uma pessoa física mas o Tempo. A humanidade não abala a consciência mas a passagem do Tempo deixa marcas. A passagem do Tempo e a velhice, a degradação da mente desempenham o papel das Fúrias, num final digno de um conto de fadas no tocante ao destino dos vilões, onde estas Erínias se abatem impiedosamente sobre a protagonista feminina, ao aprisioná-la num passado do qual nunca consegue sair, dando vazão á Lei do Pêndulo ou do Eterno Retorno.
...como romance essencialmente apostado em vender muito e depressa, não deixa de ter, para além do interesse com que se lê, uns laivos de psicologia das personagens e uma criação, embora leve, de atmosferas, a de Berlim durante o período nazi, a do acolhimento dos exilados no estrangeiro, a do pequeno mundo dos antiquários, compradores, traficantes.
A intriga vai-se desvelando pouco a pouco: quem era verdadeiramente, ou como iludia e manobrava os judeus e os funcionários, essa tão digna Lúcia Muller-Rossi que um dia vê aparecer-lhe o autêntico proprietário de um pequeno tesouro que ela expunha na montra da sua loja.
Michael Pye, o autor, é um jornalista hábil, formado em História por Oxford, de escrita muito directa, que sabe proporcionar aos leitores um entretenimento agradável.
Cláudia de Sousa Dias
6 Comments:
Já o li mas não gostei nada deste livro, lembro-me que o comprei com alguma expectativa mas foi uma sêca de todo o tamanho, penei para chegar à última página. Às vezes acontece e também poderá ter a ver com a época em que acontece.
No que me diz respeito houve outros aspectos de que não gostei tanto. Não achei o livro, digamos, "secante", mas vou mais ao encontro da opinião de Urbano Tavares Rodrigues, onde há alguns aspectos que falham. Este quanto a mim é um livro de qualidade mediana. Nem todas as obras que lemos nos enchem totalmente as medidas. No entanto, há aspectos positivos, tal como refiro no texto. Quanto aos livros realmente maus, prefiro nem comentá-los.
csd
Buona Pasqua Claudia :-)
Roberto
Fiquei com vontade de ler o livro!
Beijinhos,
Madalena
Grazie, Roberto. Auguri e buona pascua, anche per te.
beijo M. e uma Páscoa feliz....
csd
Post a Comment
<< Home