“Os Vendilhões do Templo” e “O Silêncio” de João Negreiros (Edições TUM- Teatro Universitário do Minho)
Os Vendilhões do Templo”
O actor, poeta e dramaturgo João Negreiros decidiu, nesta obra conjunta, apontar alguns pequenos cancros sociais que afectam a sociedade dos dias de hoje e parecem apontar para uma total inversão de valores, culminando com a sufocação total da ética em nome do lucro a qualquer preço e na qual os fins parecem – sempre – justificar os meios.
Em Os Vendilhões do Templo o alvo da das punhaladas verbais do Autor é o marketing e as mais agressivas estratégias de persuasão a que são sujeitos, diariamente, os cidadãos, sobretudo nos países mais industrializados: as vendas directas porta-a-porta e as vendas por telefone, vulgarmente conhecidas por telemarketing.
Construindo uma peça teatral que consiste numa alegoria que representa uma sátira João Negreiros pretende abalar as consciências ao expor – usando e abusando da ironia e do sarcasmo, recorre com frequência à caricatura, ao exagero e à hipérbole – a forma como são manipulados os desejos dos cidadãos comuns pelos estrategos do marketing e da publicidade, através da criação e estímulo cpermanente de falsas necessidades. O Autor faz uso de uma linguagem apelativa, normalmente utilizada pelos novos “vendilhões”, seguindo o esquema de desenvolvimento argumentativo dos chamados “vendedores da banha da cobra”: os sacerdotes do cada vez mais universal deus do Dinheiro.
Os vendilhões do Templo é uma obra que denuncia o eclipse da ética nos dias de hoje, onde o primado do individualismo é levado ao extremo. O discurso utilizado pelos vendilhões dos nossos dias é construído de forma a que os seus destinatários não pensem, ou sequer consigam elaborar um raciocínio de forma a abalar a estrutura de um edifício discursivo que é a ferramenta básica para o vendedor conseguir o seu objectivo: a compra pelo consumidor ingénuo.
A humanidade foi criada para usar este utensílio. Este utensílio foi usado para criar a humanidade. A humana idade de fazer agora, finalmente, aquilo para que fomos feitos. Feitos para engolir e chupar o mau e cuspir o bom.
Este é o utensílio utilitário fundamental para quem não quer fazer nada e gosta de fazer tudo pelos outros…só para que eles o comprem.
(…)
Aproximem-se, toquem, toquem no aspirador que vos vai levar a altos voos, mesmo aqueles que parecem toupeiras voarão alto como condores…não, com dores, não…voarão como águias ou falcões, ou o ratinho que eles levam no bico. E verão melhor porque vos supera a cegueira. E ouvirão melhor porque o seu barulho aniquilar-vos-á o silêncio.
A crítica implícita no sarcasmo que transpira das frases do Autor pretende mostrar o cinismo daqueles que manipulam os desejos dos consumidores por parte de quem cria um novo produto que não tem qualquer tipo de utilidade ou mais valia para o comprador. Trata-se de um objecto ou serviço de que aquele não necessita em absoluto mas que a avidez e a ganância sustentada cinismo dos génios do marketing, os novos vendilhões do “templo do dinheiro” , se empenha em criar, estimular e alimentar de forma a enriquecer à custa de uma dependência de efeito placebo.
Os génios do marketing são como deuses criadores do Desejo ou, na menor das hipóteses, cientistas que manipulam esses mesmo desejos nos ratinhos de laboratório que são os consumidores-alvo. A nova necessidade criada transforma-se em desejo e, por último, em compulsão, que se repercute até ao infinito e que João Negreiros tão bem soube retratar nos diálogos desta peça de teatro ao introduzir uma galeria de personagens-tipo, de onde sobressai o vampirismo do vendedor, o qual utiliza um discurso anestesiante, tornando a vítima passiva, como que submetida a um transe, numa espécie de hipnotismo auditivo. O autor utiliza o exagero caricatural para ilustrar o comportamento das personagens, uma vez que se trata de uma alegoria.
A – Mas você era infeliz?
B – Era.
A – Porquê?
B – Porque não tinha aspirador…ou melhor, tinha um mas não aquele.
A – Então…nunca foi feliz?
B – Não.
A – Nem por momentos?
B – Quer dizer, por momentos, já…
B é a vítima passiva da hipnose auditiva da serpente vendedora, um ser com características mefistofélicas, que ilude as vítimas ao tentar convencê-las que os momentos de felicidade passaram e que a mesma sensação de plenitude não voltará a não ser no momento em que compra um dado produto, isto é, nos instantes fugazes em que adquire um determinado bem de consumo, em pequenas doses infinitesimais de satisfação que têm de ser repetidas num espaço de tempo cada vez mais curto. A compulsão consumista acaba por ter efeitos viciantes que se assemelham, de certa forma, ao consumo de cocaína, obrigando o sujeito a esquecer tudo o que se situa fora do âmbito do universo de compra e venda.
O auge desta psicose está patente na cena onde se processa a venda do colchão que impede o sono e esgota o tempo de descanso para que o sujeito possa trabalhar mais e consumir mais recursos e assim adquirir mais bens de consumo. A necessidade de consumir usurpa o lugar das necessidades de prevenção de saúde, de relacionamento, de educação: os consumidores têm de trabalhar mais para pagarem o que compram, colocando em risco o bem-estar pessoal, as relações sentimentais e a satisfação obtida por meio do convívio social. A noção de “lazer” ou “tempo de lazer” passa a adquirir a conotação de luxo supérfluo, fruto de uma total inversão de valores.
A cena V, a reunião dos vendilhões, é o momento em que deixam cair a máscara.
G – mas…que surpresa tão agradável, meus irmãos de armas, mestres da arte de dominar o mundo pelo capitalismo selvagem.
(…)
A – Junto, formamos o neo-liberalismo galopante que consegue agradar a toda a gente, mesmo montado a trote num cavalo coxo!
A entrada em cena da personagem Fada do Bom Gosto, dá margem a dúvidas, uma vez que se trata de uma personagem ambígua. Inicialment,e parece alguém destinado a ser um travão ao capitalismo desenfreado mas depois parece mais um mecanismo de censura, fortemente repressor da liberdade de expressão. Começa por escarnecer dos vendilhões e levá-los quase ao suicídio, colocando, a seguir, todo um espartilho de normas sufocantes ao limitar todas as liberdades individuais sem permitir que se afastem um milímetro dos limites pré-definidos, transformando-se rapidamente numa fada exterminadora. A lucidez do Autor está patente na introdução desta personagem pois, é através dela que o Autor demonstra a necessidade de encontrar um ponto de equilíbrio entre a manutenção das liberdades individuais e a necessidade de um controle limitado por parte de uma entidade superior – o Estado, que é representado pela Fada do Bom-Gosto –, a qual tem o dever de zelar para que, em nome das liberdades individuais, não se atropele a liberdade individual do vizinho.
“O Silêncio”
A segunda parte deste livro que agrega duas peças de teatro da autoria de João Negreiros está, de certa forma, relacionada com a peça anterior já que mergulha no universo das relações de trabalho no âmbito das PME no Norte de Portugal, compostas, na sua maioria, por empresas familiares. João Negreiros toca numa chaga social da qual pouco se fala na Comunicação Social nos dias de hoje: a violação do dever de urbanidade por parte das entidades patronais face aos trabalhadores que lhes estão juridicamente subordinados. Trata-se normalmente de empresários que tiveram uma ascensão meteórica, vulgarmente chamados de “novos-ricos” ou de “pseudo-ricos”, normalmente incultos, de temperamento rude, que gostam de viver de aparências, de exibir roupas caras e carros topo-de-gama . São, também, assíduos frequentadores da Igreja as, normalmente, esquecem-se de dois deveres básicos da entidade patronal, consagrados na lei do trabalho: o dever de retribuição do trabalhador pelo trabalho prestado, inclusive ao fim de semana e horas extras, e o dever de tratar o trabalhador com urbanidade.
A cena abre com o discurso típico do patrão julga estar convencido de que vive na república das bananas, vigora ainda o sistema económico não do capitalismo selvagem de que falámos no texto anterior, mas do feudalismo:
“Alípio – Olha para esta merda, Artur! Não sabes que estes iogurtes já estão fora de validade? Foda-se, Artur! És mesmo um merdas, Artur. Ainda vou ser processado por tua causa. Isto parece uma pocilga. Não te disse que tinhas de varrer isto todos os dias? Não disse? Olha que esta merda não pode ficar assim; tens de te pôr fino, Achas que não te meto no olho da rua?
Noutro cenário, o mesmo sujeito que maltrata o empregado, que é também seu filho ilegítimo, maltrata com o mesmo grau de violência – com o detalhe de acrescentar a violência física à verbal – a amante.
Artur desempenha o papel de cavaleiro andante, à cabeça da classe dos dóceis, dos tímidos, que estão convencidos que ganham mais em ficarem calados. Em silêncio. Ao passar para o papel estes diálogos, que chocam o leitor pela extrema agressividade contida nas palavras, João Negreiros pretende fazer ver que a passividade e o silêncio favorecem o crime ou o infractor, convencendo-o de que este, afinal, compensa. O Autor é bastante eficaz pelo caudal de palavras agressivas com que ilustra uma realidade, em oposição à atitude silenciosa causada pelo medo. Medo de ficar sem trabalho. Ou medo de ficar sem o companheiro, sem o qual muitas mulheres se vêem à deriva, por não lhes ser incutida uma cultura de autonomia a que se junta a falta de igualdade de oportunidades real que se verifica sempre que analisamos a situação no terreno. João Negreiros mostra como quem cala, consente o mal que lhe fazem e que a recompensa pelo silêncio é uma quimera.
Artur, a namorada, Aline, e a amante do patrão, Aurora, pertencem à casta de pessoas que se deixa aniquilar pelo silêncio.
Já Alípio, pelo contrário pertence à casta dos predadores, daqueles que zurzem os mais frágeis com toda a espécie de sevícias e julgam estar protegidos pelo poder económico. Ao mesmo tempo, exibe um aviltante servilismo perante os que têm mais poder do que eles e de quem esperam obter favores.
Alípio é daqueles que só trata com alguém com docilidade quando está em apuros e necessita de obter ajuda dessa pessoa. No entanto, a partir do instante em que a crise é ultrapassada regressa ao comportamento habitual. Alípio representa o lado mais vil da Natureza humana, o verdadeiro lobo do Homem. Mais: uma hiena.
A jovem Aline encontra-se no extremo oposto, já que possui a fragilidade de uma gazela. A jovem delicada incarna aquele género de pessoas demasiado dóceis ou pacíficas para viverem num mundo saturado pelo ruído ensurdecedor dos rugidos das bestas humanas.
Daí preferirem a utopia do silêncio.
Até quando?
Cláudia de Sousa Dias
2 Comments:
Conheço alguns alípios... Mas o que é certo é que se mantêm nos seus poleiros!
Bjsss,
Madalena
Infelizmente, M...mas é algo de que ninguém fala. Só falam da dívida pública, da ausência de possibilidades de crescimento e ninguém se lembra que provavelmente a causa de estrangulamentos da economia se deve não só aos políticos corruptos mas também às pessoas que os elegem a começar por empresários como o Alípio.
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