"Cem anos de Solidão" de Gabriel García Márquez (Dom Quixote)
O tema do livro mais lido de Gabriel García Márquez é o isolamento a que são sujeitos os habitantes da cidade de Macondo, no início do séc. XIX, devido aos condicionamentos impostos pelo relevo. Um facto que dificulta em extremo o contacto com o mundo exterior, o que leva a que Macondo sofra um atraso de vários séculos, em termos de desenvolvimento, em relação ao resto do mundo nos domínios científico e tecnológico, conservando um primitivismo endémico, quase medieval.
Só com a visita da tribo de ciganos de Melquíades - um grupo, andarilho imbuído de uma grande dose de espírito de aventura - é que chegam à cidade alguns vislumbres (muito difusos) acerca daquilo que se passa do lado de lá da serra. A capacidade especial de encantar pela arte da palavra e cativar a atenção dos habitantes de Macondo com novidades extravagantes, faz com que Melquíades e os seus, rapidamente conquistem a simpatia de toda a gente, pela facilidade com que estimulam a vontade de sonhar e o imaginário dos macondenses.
A chegada dos americanos traz, por outro lado, a prosperidade e o desenvolvimento económico e tecnológico nos sectores agrícola e industrial. Afáveis mas dominadores, não se misturam muito com a população local, apesar de conviverem com alguns membros das famílias indígenas mais ilustres. Até ao dia em decidem partir, após os reveses do clima, que destroem as infraestruturas económicas da região - agricultura de plantação.
As personagens masculinas da família Buendía têm todas, já de si, uma acentuada tendência para o cultivo da solidão, da autocontemplação, do isolamento-ensimesmamento de cujo expoente máximo é o patriarca José Arcadio, alquimista e inventor de projectos mirabolantes e irrealizáveis. Da mesma forma os filhos, Aureliano - ourives por amor à arte e guerreiro por amor a um ideal - , e José Arcadio, um jovem extremamente arredio, que acaba por se afastar da família para casar com a irmã adoptiva Rebeca, bem como os restantes descendentes varões, todos, mostram ambos uma relativa dificuldade em exteriorizar os afectos, ao preservarem para si a parte fundamental da própria alma e imaginário.
Quanto às personagens femininas, encontramos dois tipos diferentes: em primeiro lugar temos aquelas que vêm de fora do clã e casam ou se enamoram dos varões Buendía como Ùrsula, a matriarca - esteio da família - e Fernanda del Carpio, casada com Aureliano Segundo- beata austera e preconceituosa, o oposto de Úrsula. E depois há aquelas que carregam o sangue ou são herdeiras dos Buendía, como Amaranta no primeiro caso e Rebeca (esta adoptada) ambas irmãs de Aureliano e Jose Arcadio -, Remédios, a Bela, - mulher angélica mas de uma beleza fatal, vive um amor proibido ao qual se opõe Fernanda, amor esse cujo fim trágico acentua ainda mais o lado solitário das jovem e a sua tendência para viver no "mundo da Lua", acabando por tornar-se um ser imaterial. Aliás a imagem relativa à transformação desta figura quase mitológica que é Remédios, a Bela, após o desaparecimento do amante, tem um significado ambíguo que se desdobra ou numa total alienação da mente ou numa forma assaz poética de deixar o mundo dos vivos. Temos ainda Amaranta Úrsula, a mais nova das herdeiras, a viver um amor incestuoso, com o último varão dos Buendía e da qual nascerá um ser aberrante, durante cuja vida se cumprirá a profecia do cigano Melquíades (após a qual serão decifrados os seus misteriosos manuscritos) e o destino do clã.
Nesta obra, o autor dota as personagens de características, de certa forma, sobrenaturais, como o apaixonado de Remedios, a Bela, sempre rodeado de uma nuvem de borboletas, ou José Arcadio Buendía cuja morte despoletou um chuva de pétalas amarelas. Na obra de García Márquez, a cor amarela, ao contrário do dourado, que significa maldade ou corrupção, está associada a algo de mágico ou maravilhoso.
A amoralidade no amor, sentimento que, para Márquez, está completamente alheio a esse género de condicionalismos, também está presente neste belíssimo romance, não só no que respeita à tendência de ignorar um tabu fortemente implantado na nossa sociedade como é o caso do incesto, mas também pela quantidade de relações extra-conjugais presentes no romance, com destaque para a impressionante força telúrica da paixão escaldante entre Aureliano Segundo e Petra Cotes.
O realismo em "Cem anos de Solidão" está patente quando observamos como se manifesta a evolução do alheamento progressivo das personagens (Jose Arcadio Buendía e Aureliano) à medida que se aproxima a velhice e a hora da morte, distanciando-se do mundo quotidiano e refugiando-se na nostalgia das histórias do passado. É com estas mesmas histórias que os anciãos conseguem deleitar a imaginação das crianças - como acontece com a avó Úrsula, que se torna uma autêntica boneca, com a qual os mais novos se divertem a brincar - em nítido contraste com a indiferença dos adultos, aborvidos com os problemas do dia-a-dia.
Uma obra de grande intensidade que mostra a qualidade suprema deste autor colombiano ao qual foi atribuído o Prémio Nobel da Literatura em 1982 e do qual há sempre algo de novo a dizer.
Cláudia de Sousa Dias
4 Comments:
Labels: Repostagem repescada do arquivo morto de Fevereiro de 2005
Uma maravilha.
Obrigada Cleópatra,pela visita e exploração do meu Blog!
CSd
Passei por aqui para retribuir a visita que fez ao nosso blog e confesso que fiquei positivamente surpreendido!
Adorei tudo o que vi até agora (e não foi muito que o tempo é pouco) mas prometo voltar mais vezes.
Quanto a este livro em particular há já uns anos que o li pela última vez (mas já o li uma duzia de vezes) mas continuo a considera-lo um dos melhores romances alguma vez escritos e de "leitura obrigatória" a qualquer amante de livros.
Mais uma vez parabens pelo excelente blog e boas festas
ainda bem que cá conseguiu chegar antes de este texto deixar de ficar visível no arquivo...
:-)
csd