“Escalas do Levante” de Amin Maalouf (Difel)
Tradução de António Pescada
De origem libanesa, Amin Maalouf reside actualmente em Paris, tendo-se tornado membro da Academia Francesa desde 2011. Escritor e jornalista foi, primeiramente, chefe de redacção e depois, editor, do Jeune Afrique. Foi, ainda, repórter durante doze anos, tendo realizado missões em mais de sessenta países, tornando-se um importante difusor da cultura árabe no Ocidente.
Filho de Ruchdi Maalouf, conhecido escritor, professor e jornalista no Líbano, Amin frequentou os colégios jesuítas de Beirute e, após a conclusão dos seus estudos em Economia e Sociologia, continuou a longa tradição familiar no Jornalismo.
Como escritor, obteve já o prémio Prix des Maison de la Press, com a com o ensaio As Cruzadas vistas pelos Árabes; o Prémio Goncurt, pelo romance O Rochedo de Tamnios em 1993; e o Prémio Príncipe de las Asturias, na categoria de letras em 2010.
Amin Maalouf é o resultado da fusão cultural entre Oriente e Ocidente, já que Paris é a sua cidade de eleição, quando não percorre as “escalas do levante”. A sua obra pretende ser uma lufada de ar fresco, um sopro de esperança na dissolução das fronteiras erguidas pelo ódio racial e pela intolerância entre os homens.
Escalas do Levante é desenvolvido em dois planos narrativos, num dos quais o narrador começa por relatar, na primeira pessoa, durante uma das suas deambulações pela Cidade Luz, na companhia de uma estranha personagem, um pouco perdida no bulício da cidade e suas encruzilhadas. O narrador, participante, descobre o tema para uma história empolgante ao constatar que o estranho sujeito que o acompanha é, ao que tudo indica, descendente da longa linhagem de imperadores otomanos. Trata-se de Ossyane, uma figura algo alienada, perdida no labirinto do Tempo e do espaço Urbano, em cuja memória está contida a trepidante e conturbada história da Turquia e do mundo mediterrânico do Próximo Oriente, nos dois séculos que precederam o actual.
Ossyane, o protagonista, assim como o narrador, cuja missão começa numa conversa casual e que termina numa entrevista, com o propósito de extrair uma história singular, são o eixo à volta do qual se desenvolve a trama de “Escalas do Levante”, ao longo da qual Ossyane vai desvendando os segredos de várias gerações da Família Real otomana, soterrados nas areias do Tempo. O entrevistador tem a particularidade de, ao assumir uma postura interactiva simultaneamente assertiva e empática, conseguir conquistar a confiança do interlocutor, dando vazão ao seu incomensurável desejo de se confiar a alguém. O entendimento rapidamente estabelecido entre ambos provém de um fundo cultural comum, que serve de base a que a narrativa se possa ampliar.
O segundo plano narrativo é vertido sob a forma de crónica pelo príncipe, englobando a infância em Istambul, a adolescência em Beirute, uma curta incursão nos primeiros anos de jovem adulto na Faculdade de Medicina em Paris, regressando ao Levante após a guerra, durante a qual actuou em colaboração com a Resistência Francesa, durante a ocupação nazi. Este regresso marca uma crise profunda no, até há pouco tempo, brilhante estudante de Medicina, precisamente na altura em que estala o conflito israelo-árabe e o protagonista sente a alma dividir-se em duas. Curiosamente, o tempo desta parte da história coincide com o período em que o próprior Autor se muda com a família para Paris, durante a Guerra Civil no Líbano, já no final dos anos 1970.
Para enfatizar ainda mais a irracionalidade do conflito, Amin Maalouf introduz na trama a componente do amor entre as duas facções opostas durante a guerra israelo-árabe. Mas tudo começa em França, onde Ossyane conhece uma jovem judia por quem se apaixona arrebatadoramente. Ambos são extremamente inteligentes, cultos, e possuidores de abertura de espírito suficiente para encontrarem no outro afinidades que os aproximam. Mas os obstáculos ao relacionamento não são de pouca monta, já que, tanto a História como a Cultura, bem como algumas pessoas próximas ao casal se encarregam de, na maior parte das vezes de forma consciente e propositada, sabotar a relação. Sem esquecer que Ossyane descende de uma família problemática, com todo um historial de conspirações, assassínios, suicídios e episódios de insanidade mental, as quais marcam o fim trágico de algumas mulheres da família, tais como a mãe e a avó de Ossyane.
A forma que Maalouf utiliza para cativar o leitor é muito subtil: começa por nos apresentar uma personagem envolta numa espécie de neblina de mistério. Depois, opta por quebrar o gelo entre as duas personagens, ainda dentro do plano narrativo secundário, que engloba a acção principal. DeSó então passa à acção propriamente dita: as vicissitudes que culminam com a desagregação do Império Otomano, a partir da Primeira Guerra Mundial, e o destino dos descendentes da família real, exilada em Beirute, com alguns membros a dispersarem-se pelos diversos recantos do Globo, expulsos de Istambul pelo exército de Atatürk e pela fúria da populaça.
Segunda Fase
E é, mais tarde ,esse passado comum, a lembrança do risco partilhado, que irá impedir que um ódio tribal e secular destrua o elemento do sublime que é a fortaleza da relação de ambos, apesar de intrigas familiares a que se juntam falsos juízos baseados em estereótipos.
O lirismo optimista de Amin Maalouf dá-nos, nestas Escalas do levante, a visão das relações entre o Oriente e o Ocidente ao longo dos primeiro três quartos do século XX, e do caminho possível para a a solução da paz no Médio Oriente. A ideia não é tão linear quanto possa parecer: o Autor não faz uma mera apologia da mistura dos sangues e dos genes. Insiste, antes, na necessidade de cada sujeito, judeu ou muçulmano, fazer uma introspecção colocando, ao mesmo tempo, o Outro na posição de espelho de si Mesmo, antes de emitir um julgamento ou um juízo de valor.
Por outro lado, Amin Maalouf, ao abordar a problemática do conflito das gerações, não se limita a mostrar a necessidade de construção da identidade individual, com base nos pilares da autonomia e da independência,de um ser como Ossyane ou mesmo Clara. Mostra, também, a forma desigual em como Oriente e Ocidente encaram a velhice e mesmo a própria doença mental: o amor com que é tratada a avó de Ossyane, cujo estado de alienação atinge um ponto tal que não lhe permite interagir totalmente com os habitantes da casa ou as visitas. No entanto, todos fazem com que ela nunca seja, apesar das suas limitações, excluída do contacto com os seus, dando-lhe a oportunidade de desfrutar de uma vida tão normal quanto possível. Filhos e netos fazem questão de respeitar as suas crises, sem lhe retirar o direito à livre expressão da sua “loucura”. A Avó, é apenas vista como um ser “diferente”, mas a cuja diferença dão todo o direito de existir. Trata-se de uma loucura que não põe em perigo a vida de terceiros, sendo decorrente de um choque, o qual a transporta para um mundo onde lhe seja possível refugiar-se do horror. A mesma fragilidade parece ser, no entanto, transmitida ao neto Ossyane, que em dada altura da vida sucumbe ao mesmo estigma da avó. Esta forma de olhara a “loucura” contrasta vivamente com a forma como a Psiquiatria e a Psicologia modernas lidam com a doençamental ao provocar – a primeira, sobretudo - muitas vezes, uma espécie de lobotomia química nos doentes, ao passo que a segunda, quando exercida por maus profssionais, os exclui, muitas vezes, da vida social e profissional, quando baseada em premissas assentes em falsas correlações de causa e efeito.
No entanto, a relação entre o psiquiatra oriental do romance e a paciente pode levantar algumas questões éticas, já que este acaba por desposar a doente. Este decide, movido pelo amor pela jovem, treinar a família para a melhor forma de lidar com as crises desta e incluí-la, sempre que possível, nos hábitos de rotina familiares. Como contraponto, o aautor exibe a forma infame como são tratados os doentes mentais de algumas clínicas ou hospitais psiquiátricos privados em Beirute, nos anos 1970, sobretudo quando provenientes de famílias abastadas, depois de a família depositar o doente naqueles lugares, convertidos em autênticos armazéns de alienados, em troca de uma mensalidade exorbitante.
Amin Maalouf empenha-se, através da personagem de Ossyane, na exaustiva descrição da rotina dos doentes da clínica, perfeitamente ocidentalizada, em Beirute, e da forma em como muito dos casos diagnosticados como “doença mental” a situação clínica é, muitas vezes, artificialmente indefinida e indecorosamente prolongada à custa de pesadas doses de fármacos.
“A Residência do Caminho Novo” , o nome do hospital privado onde internam durante muito tempo Ossyane em Beirute, durante o período em que aquele país é administrado pelo Governo Francês, acaba por se assemelhar muito mais a um lugar como Theresienstadt. Isto é, a um falso refúgio, um campo de concentração que funciona como antecâmara da morte, neste caso, uma amputação cerebral por via química, tornando a reintegração social dos sujeitos que aí habitam numa quimera.
“A Residência do Caminho Novo” , o nome do hospital privado onde internam durante muito tempo Ossyane em Beirute, durante o período em que aquele país é administrado pelo Governo Francês, acaba por se assemelhar muito mais a um lugar como Theresienstadt. Isto é, a um falso refúgio, um campo de concentração que funciona como antecâmara da morte, neste caso, uma amputação cerebral por via química, tornando a reintegração social dos sujeitos que aí habitam numa quimera.
O estilo do autor é sobretudo, jornalístico. Amin Maalouf utiliza a técnica do relato, servindo-se das intervenções do interlocutor e do narrador principal, onde o primeiro é provocado pelas perguntas exploratórias do segundo, o jornalista, tal como nas grandes reportagens elaboradas para revistas especializadas.
No epílogo, o leitor toma consciência, através da observação directa e, simultaneamente, distanciada, do espaço onde se encontra a personagem, e onde já não existe a interferência directa do narrador. O protagonista Ossyane, age agora por sua conta e risco, sem evitar ser indiscretamente observado pelo olho do destino, na figura do jornalista, vítima de uma viciante curiosidade profissional e da irresistível indiscrição de um paparazzo, que assiste, comovido a um acontecimento detonador de fortes emoções por indiciar ae esperança de um futuro possível para uma Humanidade que dissolveu as fronteiras do Ódio.
Cláudia de Sousa Dias
Cláudia de Sousa Dias
4 Comments:
Um dos meus escritores favoritos, embora ainda não tenha lido este...
mas está em lista de espera há já algum (demasiado) tempo...
É uma quase estreia, para mim, Nonsense!
Dele só tinha lido aquela peça de teatro que deu origem a um libreto de ópera "O Amor de Longe"!
Mas vou ler mais, sem dúvida...
csd
Parece-me um romance bastante intenso!
Beijinhos,
Madalena
hmmm...é mais do género melacólico, M.
Mas acho que irias gostar.
;-)
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