“Noa Noa” de Paul Gauguin (Ulmeiro)
Foto: Gauguin, Paul; Auto-retrato com paleta
Tradução: Carlos de Miranda
noa noa (em maori): a bem cheirosa ou que cheira muito bem, a fragrante, a perfumada.
Este é o mais literário dos escritos de Paul Gauguin, célebre por retratar a beleza exótica das mulheres do Tahiti, no seu habitat tradicional e o mais longe possível das marcas deixadas pela civilização ocidental.
Gauguin fez questão de retratar as nativas do Tahiti-las inseridas na sua cultura ancestral, ainda não ocidentalizada. Normalmente, o pintor não tentava dar qualquer tipo de forma literária aos seus raciocínios, limitando-se a escrever ao sabor das suas impressões. Nesta publicação é, contudo, possível seguir o fio caótico do seu pensamento.
Para Henry Perruchet A sua linguagem é áspera, cortante, incisiva, às vezes demasiado sintética, ena publicação La Vie de Gauguin.
A primeira edição de noa noa sofreu uma adaptação por outro escritor, na tentativa de lhe dar um ar “mais literário” mas a tradução de Carlos de Miranda é feita a partir do original de Gauguin. A narrativa da experiência insular do pintor é precedida da dedicatória à filha, Aline, falecida prococemente, vítima de pneumonia, quando Gauguin se encontrava no Pacífico, já separado da mulher. A dedicatória, intitulada Caderno para Aline, é escrita num caderno escolar cuja capa é decorada com belíssimas aguarelas e as páginas, preenchidas com textos da sua Autoria para a única filha que herdara o seu espírito indómito, quase selvagem.
O Autor criticava acerrimamente , talvez até de uma forma algo extremista, aquilo a que chamava de “falso calculismo”, que seria o acto de sacrificar todos os sonhos em proveito dos filhos o que, na sua opinião, daria origem à criação de uma geração composta por uma multidão de seres frustrados.
Ao adoptar uma posição anti-chauvinista, o pintor defendia que a Mulher tem o direito de lutar pela sua liberdade mas só o conseguiria “no dia em que a sua honra não se situar apenas abaixo do umbigo”. Foi, também, defensor de que a liberdade na Arte obrigava o artista a agir com nobreza, por perseguir o ideal do Belo, do Íntgro, na pureza das formas e das cores. Atacava, em contrapartida, a classe daqueles a quem apelidava de pseudo-democratas: banqueiros, ministros, críticos de arte, os quais acreditava não protegerem a Arte, limitando-se somente a mercadejá-la. Gauguin sustentava, ainda, que “o artista não consegue viver (ou sobreviver sozinho), portanto a sociedade é criminosa e está mal organizada”, defendendo ainda a livre expressão de pensamentos e emoções: “Um jovem incapaz de uma loucura, não é jovem, é velho”.
O pintor, nos textos de Noa noa, disserta sobre as artes e os costumes civilizacionais, o sexo ao constatar que este último só é aceite na Europa “como consequência do amor”, mas na Oceânia é, ele próprio, desencadeador do amor.
A partir de 1893, começa a redigir um texto com as memórias da sua temporada na Oceânia. É então que lhe aflora a mente a ideia de pedir ao porta simbolista Charles Morice para lhe rever o texto. Este, no entanto, adultera-o de tal forma que o pintor acaba por lhe solicitar que não sobrecarregue o texto com alterações de forma a não se distanciar demasiado do original.
Só em 1966, o editor Jean Loire decide publicar o original de Gauguin.
Noa noa descreve a beleza e o colorido da região do Tahiti e das suas gentes, aquando da chegada do pintor ao Arquipélago, contornando a ilha de Moorea. A capital apresenta-se-lhe com uma população aculturada pelos Franceses que, então, administravam aquele território. O Governador La Cascade é especialmente visado nas suas críticas: corrupto, distribuidor de favores em troca das mais belas mulheres.
A descrição do falecimento e da cerimónia das exéquias do último rei daquelas paragens – o Rei Pomaré – que só o é simbolicamente, não deixando sucessor, marca o encerramento definitivo de um período da História do Tahiti de forma inexorável, que se traduz no desaparecimento de traços de uma cultura ancestral bem como da soberania local.
É somente nas aldeias mais recônditas que o pintor toma contacto com a verdadeira cultura maori no Tahiti. Trata-se de um povo muito ligado à natureza, cujos deuses "obrigam" os locais a respeitar o ambiente e a extrair os frutos da terra sem a danificar.
Noa noa é um texto de grande valor antropológico, uma vez que o Autor consegue distanciar-se da própria cultura onde foi educado e com a qual cresceu para adoptar o estilo de vida dos habitantes locais, chegando quase a ser confundido com um deles.
As localidades, as aldeias, as pessoas e respectiva estrutura familiar e social, os rituais religiosos, as forma de tomar as refeições, a gastronomia, os cuidados com a higiene, a forma meticulosa e como foi mimado pelas atenciosas beldades tahitianas que são, na sua maior parte, extremamente noa noa, com os seus cabelos perfumados com flores de tiaré e cuidados com a beleza são detalhada e vividamente descritos, num estilo onde predominam sobretudo 0s estímulos e sensações visuais.
As jovens daquelas localidades apresentam-se-nos de contornos e~visuais nítidos embora retratadas pelo de forma arquetípica relativamente às formas e ao desenho das feições. No entanto, pintor capta-lhes a alma, ao imortalizar-lhes a beleza nos seus quadros. O pequeno caderno, contendo o relato desta temporada no Pacífico Sul, acaba por ser uma espectacular projecção para o mundo das letras dos seus quadros. As flores de tiaré que ornamentam os cabelos das vahiné (mulheres), a expressiva linguagem gestual que utilizam para comunicar, assim como as diversas formas de linguagem não verbal expressam uma doçura que só tem paralelo nas expressões e olhares patentes nos quadros de Paul Gauguin. A profusão de detalhes nas descrições do Autor, o qual teve de se readaptar rapidamente a uma nova forma de estar na sociedade e novas regras de comportamento, fazem de Noa Noa a versão ocidental de Papalagui.
Noa Noa tornou-se numa das mais deliciosas e idílicas viagens transcritas às ilhas do Pacífico Sul, um dos mais belos lugares da Terra, que nos chega às mãos pela capacidade de Paul Gauguin em reproduzir não apenas com pincéis e tintas mas com palavras uma impressionante paleta de cores e os traços indiscutivelmente harmoniosos das belíssimas vahiné, através de indiscutível acuidade visual daquele que foi um dos maiores pintores modernistas de que há memória, ao ousar desafiar as convenções sociais da sua época, retratando a “harmonia rafaelita” daqueles deslumbrantes rostos morenos.
Uma obra para fazer sonhar e fazer voar (ou navegar) a imaginação.
Cláudia de Sousa Dias
31.07.2011
7 Comments:
Uma personalidade marcante a de Gauguin! Livro a ler no Inverno para me sentir no Verão!
Beijinhos,
Madalena
Hello!
Mais uma vez, a primeira a comentar. O livro é pequeníssimo, mínimo mesmo. è bom porque se consegue imaginar tudo a partir da descrição. Mas bom mesmo é olhar os quadros depois de ler, ou durante a leitura. São lindíssimos. e depois, as cores... os amarelos os, laranjas, os azuis. é como dizes. Uma maneira de conservar o verão todo o ano.
Pantera,
há uma anterior edição da & etc., onde não me consta que o texto original se tenha «tornado mais literário».
Quando chegar a casa confirmo o ano de edição e o nome do tradutor. Quase que apostava o Aníbal Fernandes.
Abraço e prepara-te para felinares na Gato Vadio :)
vou pesquisar ;-)
Só para ires saboreando a capa:
http://poesia-incompleta.blogspot.com/2009/06/nao-facas-misturas_05.html
:)))
thnks Fallorca!
Prezada Claudia, o cantor e compositor brasileiro Vitor Ramil fez uma canção inspirada nesse livro, espero que gostes.
http://www.youtube.com/watch?v=jgN2WNFwoXo
Um abraço e parabéns pelo blog!
Icaro Bittencourt
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