“O Ditador e a Cama de Rede” de Daniel Pennac (ASA)
Tradução do francês por Isabel St. Aubyn
Uma reflexão sobre a busca da identidade, a ilusão do poder e a realidade da imaginação.
Manuel Pereira da Ponte Martins é ditador num país da América Latina. Mas após a consulta a uma sacerdotisa de Orixás, uma Mãe Branca, ter previsto o seu linchamento às mãos de uma multidão de camponeses enfurecidos torna-se agorafóbico. Para fugir a este vaticínio, o ditador decide recorrer aos serviços de um sósia, que deixa no poder em seu lugar, e abandonar o país rumo à Europa cidades como Paris ou Berlim, onde as hipóteses de se encontrar com os camponeses da sua terra Natal são praticamente nulas.
A história de O Ditador e a Cama de Rede alimenta-se de episódios sucessivos, permitindo-nos, assim, descobrir a peculiar história dos sósias do Ditador, num infinito desdobramento da mesma persona.
“Uma história colorida pelo lirismo delirante do realismo mágico, que Daniel Pennac se diverte a reinventar.”
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“Um fascinante e divertido labirinto no qual convivem ficção e realidade, fantasia e autobiografia, história e política, aventura e poesia.”
La Repubblica
Daniel Pennac é filho de um oficial da marinha francesa, nascido em 1944 a bordo de um navio fundeado em Casablanca. Estudou em Nice, foi professor, tendo iniciado a carreira literária como escritor de livros direccionados para o público mais jovem. Ganhou, em 1990, o Prix du livre Inter com La petite Marchande de Prose. Em 2007, conquista o Prémio Renaudot com Chagrin d’École e, em 2008, o Grand Prix Metropolis Bleu pelo conjunto da sua obra.
A sua escrita é, muitas vezes, classificada como burlesca, pautando-se pela sátira e pela ironia – dois elementos que se destacam na prosa do Autor, no romance de que aqui tratamos. O Ditador e a Cama de Rede é inspirado no período que Daniel Pennac passou no Brasil, numa região do interior, enquanto fazia a pesquisa para o seu trabalho como docente. No romance, estão presentes inúmeros traços culturais relativos à cultura daquele país, no tocante à religião, à gastronomia, à tradição oral e ao património imaterial (o romance e a literatura de cordel), bem como à própria estrutura social e económica e respectiva ligação ao sistema político.
Trata-se de um romance que parece ter sido confeccionado como uma colcha em patchwork, recortado e recosido, numa deliciosa fusão de géneros literários: romance, narrativa, ensaio, reflexão filosófica. Daniel Pennac constrói, assim, uma trama na qual se encontram sobrepostos vários planos narrativos, contidos uns nos outros e (ou) se alternam: a estória do ditador Manuel Pereira da Ponte Martins, ditador vitalício na cidade de Teresina, numa remota cidade-estado no Brasil Profundo. Manuel Pereira da Ponte comporta-se para com os cidadãos com o paternalismo típico um senhor feudal dos trópicos, um grande latifundiário, herdeiro de uma cultura esclavagista com origem na mentalidade herdada dos donos das grandes plantações até finais do século XIX. Torna-se agorafóbico depois de consultar uma “mãe-branca” (sacerdotisa de “magia branca”, isto é, inofensiva, uma mediadora dos espíritos dos orixás, que executa os seus rituais, rezas e mezinhas, para o bem-comum, segundo a crença local), a qual prevê o seu linchamento às mãos de uma multidão de camponeses revoltosos. Farto da política, decide viver a própria vida segundo o princípio do prazer, viajar pela Europa e a fazer somente aquilo de que gosta: comer, jogar, dançar e seduzir as mais belas mulheres. Transforma-se num snobe, num playboy.
Tem, no entanto, de deixar alguém no seu lugar. Para tal, contrata um substituto que terá de sentar-se na cadeira do poder, sem que os seus pares se apercebam da troca, pois não quer decepcioná-los. Ocupa-se pessoalmente do treino do sósia que irá desempenhar o papel do Ditador. O sucessor tem de ser um actor brilhante, genial mesmo, para representar o papel vinte e quatro horas por dia, esquecendo o próprio eu. A estória do primeiro ditador, Manuel Pereira da Ponte, ocupa toda a primeira parte do romance.
A trama principal na obra de que aqui tratamos, sofre uma inflexão no momento em que o protagonista da primeira parte encontra o seu primeiro sósia, do qual só o separa “a diferença de um épsilon”, ou seja, algo de tão imperceptível que dificilmente alguém há-de reparar.
Entretanto, a história é interrompida por uma espécie de intermezzo, como que entrando numa narrativa externa, onde o narrador – que é a projecção do Autor – comenta a forma como vai construindo o romance, as fontes de investigação, inspiração, etc.
A inspiração para o romance parece ter surgido durante uma visita de estudo à idade de Fortaleza, enquanto prosseguia o trabalho de investigação para a Universidade onde leccionava.
É durante as horas vagas, nos intervalos do tempo dedicados à tese que se vai tecendo e cosendo o romance do Ditador Pereira da Ponte, enquanto o narrador desfruta do clima ameno, da riquíssima gastronomia local, do temperamento doce dos habitantes da região, e vai tomando as suas notas na cama de rede no alpendre…
O contacto com o misticismo, fortemente impregnado na cultura local, cuja influência se faz notar até mesmo no estilo dos escritos académicos dos seus colegas na Universidade, serve-lhe de inspiração para introduzir a figura carismática da mãe-branca, uma figura decisiva que irá alterar o rumo da vida do Ditador.
A terceira fase do romancetem a ver com a estória do primeiro dos sósias de Manuel pereira da Ponte. Dono de um inquestionável talento para representação teatral e dramatização, este primeiro sósia poderia ter sido considerado o maior actor de todos os tempos. Uma vocação compulsiva que lhe nasce do desejo que o leva à perseguição incansável de um sonho. Este sonho revela-se uma quimera, que acaba por não se concretizar mercê de todo um conjunto de circunstâncias adversas, incluindo uma deficiente planificação e falta de auto-confiança. Trata-se simplesmente da tragédia em que consiste no desperdício do potencial em termos de talento individual que, ou se inibe ou se estimula através do meio, influenciando o desempenho. A temática do livro e a evolução das personagens deixa entrever uma forte ionfluência das ciências sociais e do comportamento nas convicções do autor e na forma como o romance é contextualizado, a evolução psicológica dos sósias a situação política e económica do país, os padrões de cultura e traços culturais da região que marcam uma fusão de culturas provenientes de vários continentes.
O primeiro sósia - nenhum deles tem nome, já que aparecem despersonalizados – torna-se actor de cinema. Esta vocação é despoletada depois deste descobrir o cinematógrafo e converter-se à magia da mímica do incomparável Charles Chaplin. Daqui nasce um dos trechos mais empolgantes do romance que tem a ver com a inimaginável travessia do deserto do Sertão, em busca da Meca do cinema – uma alegoria representativa das dificuldades em triunfar no mundo das artes, tão exigente quanto competitivo. O episódio desta travessia é revestido de significado poético, devido ao ritmo vertiginoso com que é narrada a uma viagem de vários meses, em pouco mais de duas páginas. A narrativa adquire nesta fase, em termos formais, uma configuração muito semelhante à das sagas da literatura de cordel a qual é parte integrante do imenso património imaterial do Sertão. Os factos são fundidos com no colorido pitoresco dos prodígios que, supostamente, aconteceram dando-lhe quase o carácter de uma epopeia.
A projecção na praça da aldeia de um filme de Chaplin é a janela que, naquelas paragens, se abre para o mundo do sonho e da qual o primeiro sósia de Pereira da Ponte não hesita em defenestrar-se.
A quarta parte surge-nos como mais um intermezzo, ao longo do qual o Autor e narrador tenta explicar o ponto de partida para a criação de diversos personagens que intervém no romance: descreve o processo de transfiguração ficcional da realidade. É, também, a tentativa de explicar a importância e o papel do cinema na vida do cidadão comum, como sendo o despertar da consciência para determinados aspectos da realidade. Por exemplo: a película O Grande Ditador, protagonizada por Charles Chaplin, este aniquila a imagem de Hitler, ridicularizando-o. Chaplin é o homem pequeno e franzino que esmaga o gigante alemão (em sentido figurado) com uma explosão de gargalhadas. Chaplin é o oposto do ditador Pereira da Ponte e dos seus sósias, uma vez que, apesar de emprestar o corpo às suas personagens, conserva intacta a própria persona e a vida quotidiana com aqueles que lhe são próximos. Paga, no entanto, um preço elevado pela própria independência: recusa encaixar-se nos clichés que lhe querem impor – nem de herói nem de vilão, pois Chaplin gosta de representar em todas as cores recorrendo á ironia, à dramatização e á expressividade – e é afastado da grande indústria cinematográfica de Hollywood. Charles Chaplin é um homem à frente do seu tempo.
Na quinta parte, assistimos à crítica da própria obra por parte do próprio narrador-autor em diálogo com a interlocutora – Sónia, que parece estar a entrevistá-lo. Esta Sónia tanto pode ser uma personagem real como uma projecção de que se serve para tentar identificar possíveis falhas ou erros de idealização expressiva, segundo as pisadas do próprio ídolo – Chaplin, que abominava estereótipos.
E, se há coisa que não se pode afirmar acerca deste romance é a de que o seu autor se cole a qualquer tipo de estereótipo. O final surge como um epílogo: o desenvolvimento da cidade de Teresina, outrora governada por Manuel Pereira da Ponte o qual fo, sem que ninguém o saiba, sucessivamente substituído por inúmeros sósias e cuja personalidade e mentalidade se foi alterando progressivamente mercê da diferença infinitesimal que existia entre cada um dos sósias e o seu antecessor. A evolução económica está em consonância com a da classe dirigente daquele lugar, o que acaba por explicar a enorme clivagem social numa cidade no interior de um país tão cheio de contrastes como é o Brasil. Sobretudo o Brasil de há dez anos atrás, no dealbar da ascensão de Lula da Silva, no início dos anos 2000, altura em que acaba, precisamente, o romance.
Uma obra de conteúdo e estrutura insólita, estimulante e inteligente que se lê com voracidade.
Cláudia de Sousa Dias
23.09.2011
2 Comments:
Moral da história: nunca devemos acreditar em balelas...
Beijinhos e parabéns pela inveterada excelente crítica!
Madalena
Baleias?!
:-O
CSD
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