“Poemas com Cinema” Antologia Organizada por Joana Matos Frias, Luís Miguel Queirós e Rosa Maria Martello – Projecto FCT (Assírio & Alvim)
No prefácio, intitulado Antes do Filme, os organizadores desta antologia explicam os
critérios de selecção a agrupamento dos textos:
“Os poemas agora reunidos ilustram diferentes formas de
diálogo da poesia dos séculos XX e XXI com o cinema. A amplitude do corpus
poético aqui apresentado e a diversidade das poéticas nele desenvolvidas
comprovam que o cinema tem merecido uma acção continuada por parte dos poetas
portugueses. Foi a esta cumplicidade que procurámos dar relevo.”
A amplitude temporal do conjunto de poemas de que aqui
tratamos abarca as décadas de 1930 a 2010, mas o critério de agrupamento segue
uma ordem temática e não cronológica o que justifica a afirmação de que o
objectivo da antologia foi o de “confrontar
ou aproximar diferentes autores, (…) abrindo alguns caminhos que o
leitor facilmente poderá expandir ou reorganizar de acordo com os seus interesses”.
Os mentores deste projecto explicam a ausência de poemas
ligados ao primeiro momento modernista em Portugal com base no facto de que «a sétima arte teve um impacto residual na
criação poética dos escritores de Orpheu,
pautando-se por referências ocasionais ou, em alguns versos, pela inclusão de
vocabulário cinematográfico em alguns trabalhos de Fernando Pessoa
(Álvaro de Campos e Bernardo Soares) e Almada Negreiros». Os autores
da antologia vêm o caso da revista Presença como “um caso
ainda mais complexo”, uma vez que colaboradores como José Régio e Adolfo
Casais Monteiro colaboraram, também, em publicações relacionadas com o cinema.
No entanto, afirmam que «descontados alguns poemas de Edmundo Bettencourt, José
Gomes Ferreira e António Botto, o rasto que esse interesse deixou na
lírica da Presença resume-se a pouco mais do que uma série de
referências avulsas a um mero entretenimento das tardes de Domingo.» São,
ainda, da opinião de que o diálogo entre a poesia e a arte cinematográfica é
mais difícil de ser estudado porque a correspondência entre as duas formas de
expressão artística é menos evidente do que a narrativa. No entanto, na poesia
moderna contemporânea não está excluída a narratividade, para além de este
género de poesia estar relacionada com uma temática de elevado teor imagético a
qual associam um pouco à montagem cinematográfica:
«O fascínio pela
imagem, a importância atribuída à relação entre as imagens e o seu poder
evocativo justificam a cumplicidade tantas vezes evidenciada nos poemas agora
reunidos.»
A Antologia está dividida em subtemas. O primeiro tem a
ver directamente com o lugar onde começa a cinefilia e onde se forma o público
cinéfilo: a sala de cinema. No cinema , é o lugar onde é tratado o ponto
de vista do espectador e a forma como este é afectado palas imagens que
perpassam na tela. O segundo grande momento da obra chama-se Depois do Filme. A intenção dos autores em incluir este conjunto de poemas
nessa fase é a de ilustrar uma determinada temática ou género de filme específico.
A terceira parte desta antologia é composta por uma colecção de retratos sob a
forma de poemas, dedicados a cineastas, actores e personagens de filmes míticos
a que se chamou de Homenagen”.
E chegamos à secção Onde o cinema se
insinua. Os textos incluídos neste segmento da obra implicam, já,
uma relação ou forma de diálogo entre o cinema e a poesia que se exprime num
caminho bastante mais indirecto para a compreensão «d’os diferentes níveis de apreensão do universo fílmico, as técnicas de
produção de imagem cinematográfica, os movimentos de câmara em filme que se
traduzem num “olhar inovador” (…) e num vocabulário específico que proporciona
formas de renovação do discurso poético.» Para os investigadores responsáveis
pela organização desta antologia, há como que uma influência mútua entre as
duas artes que revoluciona quer o
discurso, numa delas, quer a forma de olhar, na outra.
Há, ainda, um conjunto extra, á laia de um posfácio, a que
dão o título de “Filmagens” o
qual inclui textos onde a presença do cinema surge nas entrelinhas por meio de
um processo ecfrástico e de transposição de discurso onde o próprio poema é
concebido como um filme.
Comentário:
Da primeira parte, No Cinema, destaca-se a beleza do discurso
narrativo de Cinemas abrindo com Herberto Helder, num
arrebatamento deslumbrado do seu Cinema. Segue-se Edmundo Bettencourt,
a acutilância de Ana Hatherly na sua Tisana 45, o drama implícito
na morte inesperada de uma diva que em tudo se parece com Marilyn Monroe n' A
Matiné das duas e Armando
da Silva Carvalho. Sem falarmos das peripécias do hilariante e trapalhão
espectador de A Invenção do Chimpanzé de Alberto Pimenta ou O
Atalante de José Miguel Silva.
Depois do filme, temos a impressão da
reescrita da narrativa após a montagem. A secção abre com um texto soberbo de António
Botto seguido de Jorge de Senna com o fabuloso Couraçado Potemkin,
inspirador da pequena grande homenagem que se lhe segue a cargo de Pedro
Tamen. Nesta secção sobressai, também, o fortíssimo poder imagético de Ivan, o Terrível, no Alentejo de Alexandre
Pinheiro Torres, a descrever
todo o aparato de montagem de uma estrutura que irá permitir que o filme passe
em plena praça pública. Curiosamente, a projecção desenrola-se ao mesmo tempo
que a revolução popular naquela localidade, como se o cinema se projectasse na
vida real e vice-versa. Outro poema de grande impacto é o Dies Irae de
Maria Andresen.
À sublime ironia de Ruy Belo, em No way out
junta-se um horripilante Psicho de Adília Lopes, com uma evidente
piscadela de olho a Alfred Hitchcock, logo seguida de um sublime A queda do
Império Romano por Fernando Guerreiro, em alusão ao épico de Hollywood. Segue-se um pungente Morte
em Veneza de Jorge Sousa Braga e um espectacular poema narrativo de Jorge
de Sena, Filmes Pornográficos,
a que se segue o provocador Pornocine
de Alexandre O'Neill.
A descrição telegramática de Fiama Hasse Pais Brandão em
Do Titanic no écran e da
precisão “crítica” de Miguel Gomes, tal como a Homenagem a Michael
Hannecke por Daniel Jones a
propósito de Funny Games compõem um
vasto leque de intertextualidades e intersecções das diferentes linguagens que
fazem a ponte entre a escrita poética – verbal – e a linguagem, poética também,
que decorre da utilização dos meios audiovisuais. A secção finaliza com o
tributo de Manuel de Freitas, acerca
de uma cena do quotidiano Lisboeta, a Dona Benilde, enquanto espera pelo
autocarro 100 a lenbrar um documentário de Sérgio Tréffaut.
Na secção Homenagens, são inúmeros os poemas
referenciáveis. Alexandre O'Neill
destaca-se, logo à partida, ao fazer a ponte entre o surrealismo na poesia e no
cinema, num delirante tributo a Luís Buñuel com Bu! Bu! Quem tem medo de Buñuel? onde, ao utiliza a paráfrase evocativa
do filme Quem tem medo de Virginia Woolf,
protagonizada pela imortal Elizabeth Taylor. Um poema tão provocador quanto
anti-clerical, bem ao estilo do realizador surrealista que foi Luis Buñuel:
Don Luís continuou a comer figos secos,
enquanto as catequistas engolem os seus credos...
Lucchino Visconti e o seu perfeccionismo estético e
temático são cantados por Eugénio de
Andrade em Outro Exemplo: Visconti”,
tal como a tendência para causar incómodo nas consciências, característica
típica de Pier Paolo Pasolini no poema Requiem
para Pier Paolo Pasolini, poema onde se retrata um crime mediático, cujo
contornos de violência chocam a opinião pública, aludindo a desejos proibidos.
Rui Lage evoca
a memória imagética de um arrebatador Wong Kar Way num poema a preto e branco,
iluminado por escassos detalhes coloridos. Um poema que fascina pela
apresentação de contrastes, apostando na alternância de planos e da
justaposição da cor com a não cor.
Inês Lourenço
brinda-nos com a homenagem ao cinema português doa anos 1950 no seu Velho Celulóide e Mário Cesariny oferece-nos deliciosas caricaturas de actores e
cineastas, pintados com o ácido, muitas vezes corrosivo, do humor que o
caracteriza.
Charles Chaplin aparece nesta antologia num um conjunto de
poemas especialmente dedicados à sua brilhante carreira de actor. É exaltado
por Alexandre O'Neill em Charlotarde e numa apaixonada elegia por
Ruy Belo. Marilyn Monroe tem,
também, direito a uma pungente elegia pelo mesmo Autor em A Morte de Marilyn, assim como o tributo de Jorge Sousa Braga num poema lírico intitulado A Lua e Marillyn. Ruy Belo volta mais uma vez no esplendor lírico que caracteriza a sua forma de tecer uma homenagem particularmente enfatizada em Esplendor na relva. José Miguel Silva transmite-nos a angústia de ser diferente ao lembra o filme O Rapaz de Cabelo Verde de Joseph Loosey. e José Tolentino Mendonça deslumbra-nos com um sublime Dos Olhos de Rubliev.
A terceira secção da Antologia, Onde o cinema se insinua, é explicada por Herberto Helder no texto poético Exemplos, onde o cinema se projecta no quotidiano e no imaginário de cada um; Luísa Neto Jorge alude aos filmes inspirados em histórias de vampiros e Alberto Pimenta à estética e imagética do cinema japonês, num poema sem título. Uma das mais belas composições incluídas nesta publicaçãoé o poema de Al Berto, Parece que Lucrécio dizia. De Rui Lage, os seleccionadores optaram por um poema representativo de uma imagem de choque: o alucinante Mad Max.
A evocação da tristeza e da morte, ou do simples processo de envelhecimento, no apagar de uma estrela em declínio é-nos dada por Vasco Graça Moura num “filme” que poderia decorrer do Estoril. De Ana Luísa Amaral colheram-se as Metamorfoses, que aproximaram uma cena do quotidiano de Leça da Palmeira com um plano do filme “Casablanca”. A secção termina com a alusão de José Miguel Silva ao filme Ladrões de Bicicletas e ao cineasta italiano Vittorio de Sica, ao referir os incontáveis obstáculos com que se debate todo aquele que tenta triunfar na meca do cinema.
Na última parte desta antologia, à laia de posfácio, intitulada de Filmagens, Al Berto é escolhido, mais uma vez, na linha de frente, como figura de proa, pela fulgurante polissemia da linguagem, a contrastar com o minimalismo de Adília Lopes cuja poesia lembra mais uma fotografia ou os longos planos ao ritmo de valsa lenta, típicos dos filmes do grande Manoel de Oliveira.
Manuel Gusmão fecha a obra com duas longas composições, sendo a última delas um arrebatador Triplo Sortilégio de onde se torna impossível não lembrar o “filme” presente na memória de um cataclismo tão completo, inexorável e irreversível como o sucedido no Japão, do qual resultou uma violenta catástrofe ambiental que tanto podemos identificar com o trágico final da segunda Grande Guerra para aquele país, tantas vezes explorado no cinema por inúmeros cineastas, como nos vem à memória, pelas palavras do poeta, a última catástrofe que alia as forças da natureza à irresponsabilidade humana.
A presente antologia resultou, assim, de um excelente trabalho de associação de formas de apreender e compreender o real, com a fusão perfeita de duas formas de Arte que perseguem a ideia do Belo e do Sublime como só o fazem a Poesia e o Cinema que é, também ele, uma forma de se fazer poesia. E onde, na Arte poética, condensamos o “filme” da imaginação e da memória concentrada em partículas atómicas de emoção que irradiam o Outro que é o espectador que se senta na sala de cinema.
04.04.2011
Cláudia de Sousa Dias
7 Comments:
Interessante!
Em versão mais terra-a-terra a Assírio & Alvim também lançou Agendas de 2012 que são mini-Antologias de poemas e receitas.Vi as duas edições hoje numa Livraria e, por sinal, comprei o Poemário. A iniciá-lo Herberto Helder seguido de Manuel António Pina, nos dois primeiros dias do ano.
:)
Olinda
Primeiríssima a comentar, Olinda! Deixa-me mito contente...este blog está um pouco em baixo...
oh, Olinda, eu precisava de uma agenda dessas!o único problema é que ia ter pena de escrever nela...!
csd
O cinema, tão importante para sonhar, acreditar, questionar neste tempo de crises... Mais do que evidente a sua cumplicidade com a poesia.
Beijinhos,
Madalena
Descobrindo o mundo de Sherlock... Comecei a ler The Complete Sherlock Holmes (Penguin Paperback). Depois do Sherlock de Robert Downey Jr e de Benedict Cumberbatch fiquei curiosa e encomendei o livro na Amazon.co.uk. São 1000 e tal páginas. Estou na página 253 e estou a gostar muito. É óptimo quando o cinema e a televisão são capazes de promover a leitura ^-^
[recomendo o livro e a série da BBC Sherlock]
beijos
Muito bom policial. Sir Arthur Conan Doyle é uma referência no género.
;-)
Olá...seu blog é excelente, curti muito. E se você aceitar uma indicação aí vai o livro que acabo de ler sobre o maior gênio do século XX, na minha opinião: "EIS ANTONIN ARTAUD" da escritora Florence de Mèredieu que, com este livro, acabou com todas as outras biografias de Artaud.
Depois me diga o que achou.
Sei que você ia acessar meu blog indicado pelo nosso amigo Miguel Carvalho: www.pensarnaodoi.com Também gostaria de saber sua opinião sobre ele. Vai daqui do Brasil o abraço
Marcos Fayad
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