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Tuesday, December 13, 2011

“O Livro do Sapateiro” de Pedro Tamen (Dom Quixote)




Com este volume de poemas, o poeta e tradutor Pedro Tamen conquistou o Prémio Correntes d’Escritas 2011, um evento que tem por tradição reunir escritores de língua luso-castelhana e ao qual está associado um concurso literário.
Tendo como inspiração o sonho contemplativo do poeta argentino Jorge Luís Borges, Pedro Tamen glorifica, neste seu conjunto de poemas, uma belíssima paisagem Outonal, com reminiscências primaveris, marcada pelo ritmo dos gestos diários do homem que trabalha incansavelmente na oficina de sapateiro. Trata-se da exaltação de um labor onde, ao mesmo tempo, é dissecado o trabalho artesanal e incansável numa profissão que está para além do tempo: o sapateiro é uma figura que ultrapassa o presente e as mudanças no mercado de trabalho, tratando-se de uma profissão que, embora rara, se mantém, mesmo em tempos de crise económica, constituindo um nicho de mercado muito específico.
Mas, para além de se revestir de um carácter apaixonante para os sociólogos do trabalho, a profissão de sapateiro adquire, com Pedro Tamen, uma conotação poética, a partir do momento em que a aparente efemeridade de uma profissão que parecia, à partida, ameaçada pelo progresso tecnológico e pelo poderoso braço de ferro entre os diferentes agentes económicos, persiste orgulhosamente como o pinheiro solitário na encosta de uma montanha.
O sapateiro de Pedro Tamen é também ele poeta porque, ao executar pacientemente o seu labor, empregando os gestos de todos os dias, contempla, ao mesmo tempo o efémero e o intemporal: a passagem das estações em todo o seu esplendor; a beleza das mulheres e as marcas do tempo nos seus rostos, através do vidro da janela da oficina onde trabalha. As cores da paisagem vão-se alterando subtilmente, esculpindo o humor, e trazem à luz da memória as reminiscências, despoletadas pelas sensações visuais.
Assim, o amarelo das giestas adquire nas palavras do sapateiro poeta, criado por Pedro Tamen a tonalidade quente e vivificante da luz solar do Estio, a afugentar o ânimo cinzento e as cores sombrias da oficina, sempre que lhe entra pela vidraça:

Iremos procurar a razão da giesta
(…)
E os olhos tomarão todas as cores
As cores de tudo.
(Poema 1)
O tempo interage também no trabalho, ao interferir na destreza da mão que o executa. Uma mão gasta, com a pele curtida pelo trabalho contínuo, que se lança com “garra” à vida, na luta pelo pão de cada dia. A mesma mão começa, no entanto a acusar os sinais do tempo.
ordeu a vida a pele da minha mão direita
(poema 2)

A simbologia do verde, também muito presente na obra, está ligada à frescura e à consciência do vigor perdido da juventude, numa paisagem primaveril, onde tudo nasce e cresce e todo um mundo de possibilidades que se desdobra pertence, já, ao passado. Essa mesma frescura vigorosa está presa na memória que funde passado e presente e se projecta no futuro (Poema 4).
O trabalho do sapateiro é duro, incessante. Transforma a existência num continuum de renúncia ao prazer do sol, o qual chama o sapateiro, do lado de lá da janela. A cola, usada nos sapatos, adquire então, o odor avinagrado da amargura de uma existência de sacrifício permanente. A renúncia à vida, para obter o sustento. Uma vida áspera, ocasionalmente suavizada por um estímulo vindo do exterior: o acorde de um violino cigano (poema 10) ou um perfume de mulher (ou mesmo o de algumas clientes que lhe chegam a entrar na loja). Mas é no poema 13, onde através da mesma janela de todos os dias, que vê a vida e o tempo escoar-se como areia por entre os dedos:
13
Por cave deserta
entram hábitos e ruídos
verdes montanhosos, cascata
um rio de água de Verão.

Estou só eu e o martelo
e a minha mão opressa
ou estará não sei que mundo
com a palavra ou sem ela?

E eis-me então adivinho
dos mistérios que atravessam
a janela onde perpassa
a luz que mal me ilumina
e é o sal do meu pão.
E é este último verso que nos faz ver que essa mesma “luz” é, na verdade, uma mulher.
A mão que conserta e a mão que escreve são, respectivamente, o pão do sapateiro e do poeta. Um e outro são constantemente amordaçados pelo trabalho, enquanto a vida, o mar, o sol e a praia exercem sobre um e outro o seu apelo irresistível como o canto das sereias, ao ouvido desprotegido de Ulisses. No entanto, estes Ulisses não estão acorrentados ao mastro de um navio, mas ao próprio trabalho: um, à sovela e outro, à pena:
dentes que mordem livre
da mordaça da cave
onde tenaz martelo.
(Poema 10)

Onde o trabalho é exercido com amor e por amor à vida.
neste perdido reduto
em que as mãos amadurecem
(…)
em que o amor vai curtindo
calado, surdo, tingido…

O sapateiro e o poeta fazem do trabalho uma arte: a de fazer um sapato ou um poema como que faz um filho, com a mesma paixão. A mesma paixão com que um e outro se entregam ao trabalho, obriga-os a olhar o passado, o qual lhes faz por sua vez com que os olhos se lhes reverdeçam, pelo encontro com a memória de um tempo onde reinava a esperança.
A mesma ideia é desenvolvida no poema seguinte, onde a memória é, desta feita, despertada pelo cheiro do couro, a matéria-prima com que trabalha o sapateiro.
que eu te prometo, ó pele
de montes e pastagens
que uma vida desfia...
(poema 21)

Assim como no poema seguinte (Poema 22)
tenho a mão mordida da sovela:
erros de quanto um destino morde um sapateiro
No poema 24, a metáfora torna-se mais ambígua, ao confundir intencionalmente o afagar da pele que tanto pode ser a matéria prima como o corpo amado.
Ardem-lhe as mãos de lhe afagar a pele
(..)
e retorno ao meu trabalho
aplicando as mesmas mãos
onde os pregos doem.

A vida invade, a dada altura, a mente e a mão cansadas para o trabalho
suspendo a mão…
(…)
e o mundo refloresce
com memórias de rios e montanhas
inundando este mar de sal e carne
onde me afogo
para respirar.
Aqueles que usufruem do trabalho do sapateiro passam a ter para ele um valor especial, precioso como jóias valiosíssimas: a bela cliente para quem os sapatos são feitos à medida e cuja imagem permanece mesmo depois de partir. O nome desvanece-se no entanto, soterrado nas areias do tempo, como num romance de Umberto Eco(Poemas 28 e 29).
O poema 30 fala de envelhecimento e morte: o sapateiro poeta pretende morrer a trabalhar, deseja “cair sentado”, prisioneiro da memória do tempo primaveril, “tendo na boca um grão de areia”. O pé, para o qual trabalha, possui um par de olhos que, provavelmente não o reconhecem “nos meus anos roídos pelos ratos”. No mesmo poema (31) mostra o receio de já não conseguir despertar o amor em outrem:
Quando já quase não vejo
quem me poderá ver?
O sapato será usado por alguém (uma princesa, ou a princesa) que veste um longo casaco de veludo azul – a cor do trabalho para ele que, nela, terá a cor pálida ou prateada da madrugada, a atravessar o manto azul da noite, povoada de estrelas.
Um longo casaco de veludo
cobrirá um dia a madrugada azul que fabrico
dia por dia.
A solidão parece ser o Fado, o Destino e o Karma do sapateiro e do poeta, marcado pela canseira dos dias, no poema 35.

A quem deixais o meu cansaço
as unhas sujas, as marcas
do martelo talhado,
a quem, senão a quem…?
Aquela ou aquelas que vêm buscar o resultado do labor do sapateiro, trazem a cor ao cinzentismo dos dias na oficina:
Ao apertar-lhe a mão
(…)
Mistura-se na pele os cheiros dos curtumes
a liberdade elástica do ar
do vento azul das mentes que sempre invejais.

E o sapateiro, recupera no olhar a giesta do Estio.
A alegria e a vitalidade de quem ama a vida que palpita fora da oficina e à qual só chegam alguns vislumbres de cor, são centelhas de vida que, pela imaginação, se transformam em “expplosão lírica” (41)

A pele transfigurada que as minhas mãos modelam
Como que adormecem sonhos torturados
Em que as pastagens verdes irrompem nesta cave
E tudo se ilumina num sol que não está cá.
(poema 45)
A imaginação do poeta solta-se, voa, sobe aos céus em espiral ,como os sons dos sinos de Domingo (45)

E assim se escreve e descreve o “mundo incompleto e certo” do dia a dia de um sapateiro que vive do imaginário e constrói, pintado com as mesmas cores do poeta que parte do ténue fio da realidade que lhe entra pela janela virada para o vento, o seu próprio mar, e o sol amarelo das giestas.
Aqui não tenho relógio
Nem de corda nem de sol
Que sol não há muito nesta cave…
Um trabalho que preenche o vazio das horas e dá corpo a uma incomensurável solidão, até mesmo na altura em que goza o sol lá fora, solidão essa apenas interrompida por breves instantes de felicidade.
E no entanto chega luz
uma estranha, inesperada luz
à catacumba onde estou vivo
por força destas mãos.

O presente torna-se amargo, em contraste com o passado. Permanece, apesar de tudo, um ténue fio de esperança, num futuro dourado, adiado ad aeternum…

ardem-me os olhos (…)
e é com lágrimas dos dias, com este pranto redobrado que à obra puxo o lustro
dou bulha à sua vida e à minha
(Poema 48)
O último poema refere a aproximação da grande Ceifeira, o termo da vida útil como sapateiro, que para ele, equivalerá à morte:
vejo-me no brilho que te dou
ó espelho da minha mão.
Já faz vitória destes dias
últimos.

O Livro do Sapateiro é, assim, um livro de poemas aparentemente sereno mas que escondem um turbilhão de emoções e, por vezes um sofrimento pungente, que se concentra na mágoa como resultado da perda.


Cláudia de Sousa Dias
28.10.2011

2 Comments:

Blogger M. said...

Fascinante! Pergunto-me se a minha profissão também se assemelhará na aparente efemeridade à de sapateiro...
Beijinhos,
Madalena

9:10 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Duvido...

5:46 PM  

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