“Nocturno Indiano” de Antonio Tabucchi (Dom Quixote)
Tradução: Gaetan Martins de Oliveira
Antonio Tabucchi
nasceu em Pisa, cidade onde realizou os seus estudos na Faculdade de Letras e
na Scuola Normale Superiore. Ensinou na Universidade de Génova, Roma, Sienna e
Bolonha. Publicou cerca de vinte e cinco livros, abarcando vários géneros
literários, desde o romance à poesia, passando pelo ensaio e pelo teatro. A sua
obra está traduzida em mais de trinta línguas. Antonio Tabucchi traduziu para italiano a obra de Fernando Pessoa e escreveu, inclusive,
um romance em português, Requiem
(1991). Além deste, outros romances como O
Fio do Horizonte, Afirma Pereira
e Nocturno
Indiano foram adaptados ao cinema respectivamente, por Fernando Lopes, Roberto Faenza e Alain
Corneau. Nocturno Indiano, é uma
inquietantemente fascinante viagem à Índia, continente descrito no romance como
uma terra de violentos contrastes entre a opulência e a miséria. O romance não
é mais do que uma viagem a qual, de acordo com as palavras do editor, “poderia servir de guia a um amante de
viagens absurdas”.
Segundo Andrea Aparecida Machado na sua dissertação sobre "A Questão Policial em Nocturno Indiano de Antonio Tabucchi" (Brasil, 2006) :
« O romance apresenta-se sob a forma de uma viagem em busca de alguém que se perdeu na Índia, sugerindo uma questão policial. (...) Margeado pela reversão entre ficção e crítica, este romance breve afirma-se como referência ilusória que mascara, mas não esconde, as outras vozes que se insinuam na narrativa.»
O narrador e protagonista viaja ao abrigo da embaixada
italiana na Índia, decidindo percorrer o continente à procura de um amigo que
parece ter-se volatilizado ou desfeito em fumo. Ao lançar-se nesta demanda, o
protagonista vai dando a conhecer aos seus leitores, como que de ouvintes se
tratassem, o relato da viagem que decide empreender, justapondo cenários e
ambientes contrastantes, onde se movimentam os actores, quer do topo quer da
base, da imensa e complexa pirâmide social de que é composta a sociedade que
integra a União Indiana: desde os ultra-ricos que se hospedam no Grande Hotel
de Bombaim, aos intocáveis que tratam os doentes terminais no hospital mais
infecto da cidade.
O romance é uma fotografia longitudinal, ou melhor um
conjunto de slides ou quadros descritivos, referentes a vários pontos de
paragem, num itinerário tão heterogéneo que consegue obter o mérito de abarcar
uma paragem num hotel de frequência duvidosa, de aspecto sujo e pouco convidativo,
até ao hotel de luxo que é frequentado por gente das upper-classes – uma cidade
dentro da própria cidade e que é, ele sozinho, alimentado pela central nuclear,
construída propositadamente para fornecer energia eléctrica àquele local. A
viagem inclui, também, a visita ao já mencionado hospital público, estações e
apeadeiros ao longo do percurso de um trajecto de comboio, um encontro com um
interessante e misteriosa personagem feminina a bordo de um avião e a visita a
um mosteiro goês, onde nos apercebemos da extensão da História, da cultura e da
influência da presença portuguesa naquela cidade.
A observação directa e a descrição dos cenários são
enriquecidas com entrevistas do narrador a informadores-chave: um padre-jesuita
português, uma prostituta de Bombaim, uma repórter inglesa que se dedica a
fotografar a miséria em Calcutá, uma curiosa dupla de profetas nómadas, um
médico do hospital e um farmacêutico local.
“Mas este misterioso
ballet de sombras é sobretudo um treino às faculdades criativas da linguagem,
pois é graças a uma palavra evocada em várias línguas que o viajante se
aproxima daquele que procura. E é graças à escrita que esta viagem (…) passa da
insónia ao sonho e do sonho ao texto”.
Luiz Carlos Merten, crítico de cinema escreve, a propósito do livro
e do filme, que Nocturno Indiano “trata de solidão e do desdobramento de identidades.”
Antonio Tabucchi dá-nos
várias pistas para a interpretação da estória estabelecendo a ponte entre o
Autor e o narrador, duas vozes que por vezes se interceptam:
“Este livro, mais do que uma insónia é, também, uma viagem.
A insónia pertence a quem o escreveu, a viagem, a quem a fez. Contudo, visto
que também me aconteceu percorrer os mesmos lugares que o protagonista desta
história, achei por bem fornecer um pequeno índice desses lugares. Não sei ao
certo se parece tanto contribuir a ilusão de que um registo topográfico, graças
à força intrínseca do real, poderia iluminar este nocturno em que se busca uma
sombra; ou a insensata conjectura de algum amante de percursos incongruentes
poderia um dia utilizá-lo como um guia.”
O índice, de que fala o Autor, detém o formato de um
itinerário, com moradas incluídas, como se, à medida que avançamos nos
capítulos, nos vamos detendo nas diferentes estações ou apeadeiros de que é
composta a viagem. A obra estrutura-se assim, em termos espaciais, abrangendo o
Percurso de Bombaim a Goa, passando por Madrasta e Mangalore.
Para além de dispor diante dos nossos olhos o variadíssimo
leque de diferenças sociais do vasto continente indiano, o Autor torna-se
exímio em fornecer a descrição da atmosfera de cada local, representada na
forma como se entabulam as relações entre as pessoas e a tão incomensurável
diversidade étnica, linguística, religiosa e cultural que comporta aquela
federação.
As personagens de Nocturno Indiano fascinam e suscitam a curiosidade no leitor
por serem “estranhos de passagem”. Isto é, são enigmáticas, intrigantes por
anteciparem no leitor indiscreto o prazer da descoberta , pela adrenalina que
faz intuir o perigo, pelo contacto com o desconhecido, que implica sempre
alguma dose de risco. Desde o momento em que entramos num táxi e mergulhamos no
trânsito caótico de Bombaim, ao franquear a porta do antro da pensão-bordel na
mesma cidade, passando pelo estranho encanto da dupla que envolve uma belíssima
criança, de olhos delineados a Khôl, acompanhada por um sibilino anão, que dita
uma estranha profecia ao protagonista, o leitor é constantemente confrontado
com situações que o deixam e suspenso. O mesmo adivinho é quem fornece ao
narrador e ao leitor, de forma críptica, a chave do enigma, que só se consegue
desvendar já depois de concluído o percurso, no epílogo, e de forma totalmente surpreendente.
Nos jogos de linguagem, tão do agrado do Autor, juntam-se as
múltiplas referências à literatura portuguesa e às marcas culturais deixadas
pelos portugueses e, também, pelos britânicos, patentes na forma como afectam o
quotidiano dos locais.
Nocturno Indiano é, assim, um livro que se torna imprescindível
para os amantes daquilo que de melhor se produziu em termos de literatura de
viagens nas últimas três décadas.
Cláudia de Sousa Dias
28.03.2011
2 Comments:
Mais um, impecavelmente resenhado por ti, a ir para a minha lista!
Beijinhos,
Madalena
obrigada...o mérito é do Tabucchi! por acaso, este é mesmo imperdível! estou a tentar adquirir todos os livros deste autor que me venham para à mão!
csd
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