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Friday, December 30, 2011

“O Amor chegou com as Chuvas” de Mirabai (Assírio & Alvim)





Tradução de Jorge Sousa Braga

Nascida no século XV na província do Rajasthan, no seio de uma família Kshátryia - a casta dos nobres e guerreiros hindus - a jovem Mira demonstrou, desde cedo, uma forte devoção ao deus Krishna, cujo culto nunca foi visto com bons olhos pela família do marido, a qual privilegiava o culto a outras divindades.
Após a morte do marido, Mira dedica-se de alma e coração ao culto do deus que identifica com o arquétipo de amante ideal.
Mirabai compõe então poesia erótico-sacra, canções espirituais, breves e rimadas - as padavali - onde celebra a união erótica e mística com a divindade, a qual aparece mencionada, nas suas composições, com os diversos cognomes que lhe são, frequentemente associados e representam, cada qual, uma faceta ou atributo de Krishna: Shyam ou Azul, cor associada ao deus por simbolizar a beleza e a espiritualidade; Mohan que significa encantador; Bihari, epíteto que significa "alegre" ou que gosta de se divertir; Hari, a incarnação de Vishnuy para designar "aquele que lava os pecados" e Giridhari ou "aquele que move montanhas".
Um dos símbolos mais utilizados para representar a beleza de Krishna nos poemas de Mira são as penas de pavão que ornamentam a coroa do deus.
Mirabai ou simplesmente Mira, após enviuvar, dedica-se a encenar os rituais e cerimónias de adoração ao deus, não só compondo as canções que serão entoadas no templo, mas cantando-as ela própria e dançando durante os rituais ao som das próprias padavali que compôs.
Este comportamento, tido como inadequado para uma nobre viúva na época, desencadeou a perseguição à jovem por parte dos membros da família do falecido marido, que se traduziram em várias tentativas de envenenamento, mencionadas na obra, devido a esta conduta tida como escandalosa: as viúvas, na Índia, são ainda hoje consideradas um fardo para a família do marido, ocupando, por isso, uma posição marginal na sociedade hindu.
Mira expressa na sua poesia a ânsia desesperada de se agarrar à vida através da entrega a um amor absoluto, personificado numa figura masculina que representa o modelo perfeito do Amante construindo nas suas canções a união mística com a divindade, num ritual hierogâmico - casamento/acasalamento sagrado - de que são exemplos trechos seguintes:

(pp 14) 

O Senhor de Mira
É Hari, o Indestrutível
Por ele sacrificaria tudo.


Ou

(pp 15) 

Amigas, Shyam sorri
e os seus olhos brilham
quando se encontram
com os meus
As sobrancelhas são o arco
e os olhares furtivos as setas
com que me trespassa o coração
sucumbi ao contemplar a tua
beleza  Toda a minha família
tenta em vão dissuadir-me

(pp 16)

(…) O meu coração está ébrio
de Shyam…

Na poesia de Mira podemos encontrar, ao examinarmos as suas canções com atenção, alguma ambiguidade no que toca à significação ou polissemia: o amante, seja ele na forma Shyam, Hari, Bihari, Mohan ou Giridhari pode realmente situar-se no plano do supra-sensível, mas por vezes temos dúvidas. Ao lermos alguns poemas deparamo-nos, por vezes, com a sensação premente de que o objecto de desejo, que leva a poeta a cantar de forma tão pungente a ausência, se trata na realidade de um amante carnal, talvez um yogi a quem chega a mencionar num dos poemas, provavelmente protagonista de um ritual simbólico onde tivesse representado o papel do deus contracenando com a poeta, dançarina e sacerdotisa, num ritual hierogâmico.

Assim sendo, Mira poderia ter feito parte integrante de um ritual de acasalamento com o "deus". Mas ao ceder o lugar a outras bailarinas e sacerdotisas que teriam, tal como ela, de prestar honras a Krishna, passa a sentir a rejeição, o abandono e a perda que passam a dominar-lhe o pensamento. Este sucedâneo do deus não poderia vir nunca a pertencer-lhe uma vez que, ao ter que representar o papel da divindade, este nunca poderá pertencer a uma única mulher, pois o deus pertence a todas as mulheres servindo a toda a humanidade.
Senão, vejamos os poemas que se seguem:

(pp 21) 

Só sei dançar
para o meu Mestre
despi-me de toda
a vergonha…

(pp 25) 

Quem recusaria uma taça
de néctar para beber água
salobra? O Senhor de Mira
satisfaz os seus desejos

(pp 27) 

Irmã o Senhor dos Pobres
uniu-se comigo num sonho
uma multidão de deuses
formava o cortejo nupcial

(pp 28 ) 

Como pode alguém rejeitar Shyam?
Ninguém bebe
água dos charcos nos meses
da chuva  A água de Hari
transborda Não há água melhor
para a minha sede
(...)
A dor de Mira vem
da separação O que ele
quiser que ela faça
ele fá-lo-á

Mira chega a um ponto em que parece convencer-se de que só conseguirá a absoluta união com o deus propriamente dito, noutro plano existencial, após cumprir todo o karma na altura em que já não será necessário reencarnar, como podemos constatar na pp 29

Este mundo é uma sebe
de roseiras-bravas e a estrada
para o amado está cortada
Mira chegará a ele
cantando as suas glórias
A suposta incorporação do deus num corpo humano, que actua como se fosse a própria divindade, parece confirmar-se na pp 35, onde é referida a presença de um yogi a representar o deus:

Amar um yogi é como amar
o infortúnio Murmura
palavras doces quando
estás com ele Depois
esquece-te e parte
como qual colhe e rejeita
um rebento de jasmim
(…) Hari traz-me
de volta a tua beleza Sem
te ver eu não consigo ver

Nas pps 36 e 37 a poeta torna-se ainda mais explícita:

(pp 36) 

Depois de teres ateado o fogo
do amor para onde foste
Shyam? Depois de teres
lançado a barca do amor
no oceano do desejo
abandonaste a tua fiel
companheira na rebentação (…)

(pp 37) 

Estou louca de amor
E ninguém se apercebe
como posso dormir
se o meu amado dorme
com outra

E
(pp 38)
Mira
foi mordida pela serpente
da ausência

A chuva aparece como instrumento de Hari Krishna como sinal de que o fogo do desejo foi aplacado para dar lugar à suavidade e à constância do amor.
Relativamente às críticas dirigidas pela família em relação à sua postura em recusar-se a ser uma viúva conformada e remetida para o anonimato  confinada à clausura do lar, Mira reage dando largas ao seu temperamento insubmisso, no poema da página 49

(...) os idiotas instalaram-se
no trono enquanto os sábios
mendigam de porta em porta

(...) 

o rei persegue
Os amantes de Deus

Mira associa ainda o fogo do amor ao sofrimento por supor que a felicidade extrema implica o seu simétrico - o extremo desespero – expressa no belíssimo poema da pp 50, “Amiga não me fales de amor”. Apenas as chuvas da monção conseguem aplacar o fogo do desejo (vide pp 51) no poema
“O amor chegou com as chuvas”


Passa então a dominar uma emoção mais persistente e invasora que se insinua, insidiosa, e que se espalha por todos os recantos da vida como a água da chuva: o amor. A chuva que desencadeia a alegre dança nupcial dos pavões: a ave de Krishna.
A impossibilidade de desposar o amante ideal, seja ele o sacerdote que do corpo do deus quer o próprio Krishna, tê-la-á levado, muito possivelmente, à procura da união mística com o deus que só conseguirá plenamente após a morte.

Mirabai é assim uma pequena antologia de uma Autora cuja poesia é recheada de imagens de uma beleza pungente e o retrato de uma mulher com uma coragem invulgar na livre expressão de emoções em ambiente social hostil, onde às mulheres está normalmente reservado o anonimato.


Cláudia de Sousa Dias

(revisão a cargo de Gonçalo Mira e publicado originalmente no site orgialiteraria.com, no dia 24 de abril de 2009)

2 Comments:

Blogger Maria said...

Feliz 2012! Que este ano seja recheado de muitas e boas leituras!*


beijinhos



*apesar do H. ocupar a maior parte das minhas horas livres :P

10:51 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

OBrigada, Maria! Um excelente 2012 também para ti. E já que economicamente será, ao que parece, um annus horribilis, que o amor seja rei como na canção de Jacques Brell...(Ne me quitez pas...)

1:04 AM  

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