“O Amor chegou com as Chuvas” de Mirabai (Assírio & Alvim)
Tradução de Jorge
Sousa Braga
Nascida no século XV na província do Rajasthan, no seio de
uma família Kshátryia - a casta dos nobres e guerreiros hindus - a jovem Mira
demonstrou, desde cedo, uma forte devoção ao deus Krishna, cujo culto nunca foi
visto com bons olhos pela família do marido, a qual privilegiava o culto a
outras divindades.
Após a morte do marido, Mira dedica-se de alma e coração ao
culto do deus que identifica com o arquétipo de amante ideal.
Mirabai compõe
então poesia erótico-sacra, canções espirituais, breves e rimadas - as padavali - onde celebra a união erótica
e mística com a divindade, a qual aparece mencionada, nas suas composições, com
os diversos cognomes que lhe são, frequentemente associados e representam, cada
qual, uma faceta ou atributo de Krishna: Shyam ou Azul, cor associada ao deus por
simbolizar a beleza e a espiritualidade; Mohan que significa encantador;
Bihari, epíteto que significa "alegre" ou que gosta de se divertir; Hari, a
incarnação de Vishnuy para designar "aquele que lava os pecados" e Giridhari ou "aquele que move montanhas".
Um dos símbolos mais utilizados para representar a beleza de
Krishna nos poemas de Mira são as penas de pavão que ornamentam a coroa do
deus.
Mirabai ou simplesmente Mira, após enviuvar, dedica-se a
encenar os rituais e cerimónias de adoração ao deus, não só compondo as canções
que serão entoadas no templo, mas cantando-as ela própria e dançando durante os
rituais ao som das próprias padavali que
compôs.
Este comportamento, tido como inadequado para uma nobre
viúva na época, desencadeou a perseguição à jovem por parte dos membros da
família do falecido marido, que se traduziram em várias tentativas de
envenenamento, mencionadas na obra, devido a esta conduta tida como
escandalosa: as viúvas, na Índia, são ainda hoje consideradas um fardo para a
família do marido, ocupando, por isso, uma posição marginal na sociedade hindu.
Mira expressa na sua poesia a ânsia desesperada de se
agarrar à vida através da entrega a um amor absoluto, personificado numa figura
masculina que representa o modelo perfeito do Amante construindo nas suas
canções a união mística com a divindade, num ritual hierogâmico - casamento/acasalamento sagrado - de que são exemplos trechos seguintes:
(pp 14)
O Senhor de
Mira
É Hari, o
Indestrutível
Por ele sacrificaria
tudo.
Ou
(pp 15)
Amigas, Shyam
sorri
e os seus olhos
brilham
quando se encontram
com os meus
As sobrancelhas são o
arco
e os olhares furtivos
as setas
com que me trespassa o
coração
sucumbi ao contemplar
a tua
beleza Toda a minha família
tenta em vão
dissuadir-me
(pp 16)
(…) O meu coração está
ébrio
de Shyam…
Na poesia de Mira podemos encontrar, ao examinarmos as suas
canções com atenção, alguma ambiguidade no que toca à significação ou
polissemia: o amante, seja ele na forma Shyam, Hari, Bihari, Mohan ou Giridhari
pode realmente situar-se no plano do supra-sensível, mas por vezes temos
dúvidas. Ao lermos alguns poemas deparamo-nos, por vezes, com a sensação premente
de que o objecto de desejo, que leva a poeta a cantar de forma tão pungente a
ausência, se trata na realidade de um amante carnal, talvez um yogi a quem chega a mencionar num dos
poemas, provavelmente protagonista de um ritual simbólico onde tivesse representado
o papel do deus contracenando com a poeta, dançarina e sacerdotisa, num ritual
hierogâmico.
Assim sendo, Mira poderia ter feito parte integrante de um
ritual de acasalamento com o "deus". Mas ao ceder o lugar a outras bailarinas e
sacerdotisas que teriam, tal como ela, de prestar honras a Krishna, passa a
sentir a rejeição, o abandono e a perda que passam a dominar-lhe o pensamento.
Este sucedâneo do deus não poderia vir nunca a pertencer-lhe uma vez que, ao
ter que representar o papel da divindade, este nunca poderá pertencer a uma
única mulher, pois o deus pertence a todas as mulheres servindo a toda a
humanidade.
Senão, vejamos os poemas que se seguem:
(pp 21)
Só sei dançar
para o meu Mestre
despi-me de toda
a vergonha…
(pp 25)
Quem
recusaria uma taça
de néctar para beber
água
salobra? O Senhor de
Mira
satisfaz os seus
desejos
(pp 27)
Irmã o Senhor
dos Pobres
uniu-se comigo num
sonho
uma multidão de deuses
formava o cortejo
nupcial
(pp 28 )
Como pode
alguém rejeitar Shyam?
Ninguém bebe
água dos charcos nos
meses
da chuva A água de Hari
transborda Não há água
melhor
para a minha sede
(...)
A dor de Mira vem
da separação O que ele
quiser que ela faça
ele fá-lo-á
Mira chega a um ponto em que parece convencer-se de que só
conseguirá a absoluta união com o deus propriamente dito, noutro plano
existencial, após cumprir todo o karma na
altura em que já não será necessário reencarnar, como podemos constatar na pp
29
Este mundo é uma sebe
de roseiras-bravas e a
estrada
para o amado está
cortada
Mira chegará a ele
cantando as suas
glórias
A suposta incorporação do deus num corpo humano, que actua
como se fosse a própria divindade, parece confirmar-se na pp 35, onde é
referida a presença de um yogi a
representar o deus:
Amar um yogi é como
amar
o infortúnio Murmura
palavras doces quando
estás com ele Depois
esquece-te e parte
como qual colhe e
rejeita
um rebento de jasmim
(…) Hari traz-me
de volta a tua beleza
Sem
te ver eu não consigo
ver
Nas pps 36 e 37 a poeta torna-se ainda mais explícita:
(pp 36)
Depois de
teres ateado o fogo
do amor para onde
foste
Shyam? Depois de teres
lançado a barca do
amor
no oceano do desejo
abandonaste a tua fiel
companheira na
rebentação (…)
(pp 37)
Estou louca de
amor
E ninguém se apercebe
como posso dormir
se o meu amado dorme
com outra
E
(pp 38)
Mira
foi mordida pela
serpente
da ausência
A chuva aparece como instrumento de Hari Krishna como sinal
de que o fogo do desejo foi aplacado para dar lugar à suavidade e à constância
do amor.
Relativamente às críticas dirigidas pela família em relação
à sua postura em recusar-se a ser uma viúva conformada e remetida para o
anonimato confinada à clausura do lar, Mira
reage dando largas ao seu temperamento insubmisso, no poema da página 49
(...) os idiotas instalaram-se
no trono enquanto os
sábios
mendigam de porta em
porta
(...)
o rei persegue
Os amantes de Deus
Mira associa ainda o fogo do amor ao sofrimento por supor
que a felicidade extrema implica o seu simétrico - o extremo desespero –
expressa no belíssimo poema da pp 50, “Amiga não me fales de
amor”. Apenas as chuvas da monção conseguem aplacar o fogo do
desejo (vide pp 51) no poema
“O amor chegou com as
chuvas”
Passa então a dominar uma emoção mais persistente e invasora
que se insinua, insidiosa, e que se espalha por todos os recantos da vida como
a água da chuva: o amor. A chuva que desencadeia a alegre dança nupcial dos
pavões: a ave de Krishna.
A impossibilidade de desposar o amante ideal, seja ele o
sacerdote que do corpo do deus quer o próprio Krishna, tê-la-á levado, muito
possivelmente, à procura da união mística com o deus que só conseguirá
plenamente após a morte.
Mirabai é assim uma pequena antologia de uma Autora cuja poesia é recheada de imagens de uma beleza pungente e o retrato de uma
mulher com uma coragem invulgar na livre expressão de emoções em ambiente social hostil, onde às mulheres está normalmente reservado o anonimato.
Cláudia de Sousa Dias
2 Comments:
Feliz 2012! Que este ano seja recheado de muitas e boas leituras!*
beijinhos
*apesar do H. ocupar a maior parte das minhas horas livres :P
OBrigada, Maria! Um excelente 2012 também para ti. E já que economicamente será, ao que parece, um annus horribilis, que o amor seja rei como na canção de Jacques Brell...(Ne me quitez pas...)
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