“Os Miseráveis” de Victor Hugo ( Planeta DeAgostini - Texto Integral)
Tradução de Silva Vieira
Dados Biográficos:
Victor Hugo nasceu
em Besançon, no Doubs, em 1802. Foi o terceiro filho de Sophie Trébuchet e
Joseph Hugo, oficial do exército de Napoleão. Este foi proclamado Imperador
dois anos após o nascimento de Hugo, mas a monarquia dos Bourbon foi restaurada
após o seu oitavo aniversário. Desta forma, a infância do escritor é marcada
por acontecimentos de fulcral importância na História de França – e da Europa –
os quais acabarão por se reflectir na sua escrita e, inevitavelmente,
projectados em Os Miseráveis”. Hugo é
produto, do ponto de vista ideológico, da mentalidade de ambos os progenitores
que defendiam ideias opostas: a mãe, católica radical, defendia a Casa Real e a
causa realista, estando associada ao boato de que teria, não obstante a sua
religiosidade, sido amante de um general que teria conspirado contra Napoleão;
o pai, Joseph, era pelo contrário, ateu republicano, vendo em Napoleão um herói
nacional. O casal separou-se anos mais tarde por incompatibilidades diversas.
Os trabalhos do início da carreira de Victor Hugo como escritor mostram uma tendência simpatizante para
com a Igreja e a Casa Real mas, após a Revolução de 1848, a Autor começa a
demarcar-se da educação católica e monárquica inculcada pela mãe, assumindo a
postura de um livre-pensador. Tendo iniciado a carreira de escritor em idade
muito precoce, foi considerado um menino prodígio, tendo obtido, apenas com
quinze anos, em 1917, o Prémio da
Academia Francesa das Letras por um dos seus poemas. Publicou, em 1921, uma
antologia poética intitulada Odes et
Poésies Diverses que lhe valeu uma pensão do estado francês, concedida por
Luís XVIII:
Um ano depois, publica o seu primeiro romance Han d’Islande. Casa-se com Adele,
causando um sério desgosto ao irmão, o qual, anos mais tarde, enlouquece e é
internado num hospital psiquiátrico. O casamento será tão conturbado quanto o
dos pais, mas por razões diversas.
Em 1825, Victor Hugo recebe
o título de Cavaleiro da Legião de Honra, com apenas vinte anos e, um ano mais
tarde, passa a explicar, no prefácio do drama histórico Cromwell, os aspectos que o afastam do classicismo, dando a
entender a necessidade de romper com as restrições do formalismo clássico e
dedicar-se à plena exploração das múltiplas dimensões da natureza humana,
defendendo a coexistência do sublime e
do grotesco no drama moderno. Hugo é, assim, caracterizado como a força motriz
da segunda e terceira fases do romantismo na Literatura e herdeiro das
concepções de Chateaubriand.
A peça de teatro Marion
de Lorme, a qual tem como protagonista uma cortesã francesa do século XVII,
é alvo de censura, por ser considerada “demasiado liberal”, em 1829, tendo os
censores interpretado a obra como uma crítica a Carlos X.
Já o drama Hernâni
de 1830 pode ser olhada como precursora de Os Miseráveis uma vez que o
protagonista que, tal como Jean Valjean, é um herói romântico em luta contra a
sociedade. Trata-se de uma obra que se empenha em colocar em evidência as
injustiças sociais. A mesma obra divide opiniões, agrada aos jovens e causa
algum incómodo nas gerações mais velhas àquela data. No entanto, contribui
largamente para a consagração de Hugo
como Líder do Movimento Romântico na Literatura Francesa.
Notre-Dame de Paris
é publicado em 1931 e passa a ser considerado o maior romance histórico do
Autor. Aparte da trama sentimental, que envolve o corcunda Quasímodo e a
deslumbrante cigana Esmeralda, o estilo é essencialmente realista,
particularmente no tocante à descrição da Paris medieval, a qual se entrelaça
num enredo melodramático com muitas peripécias e reviravoltas, pejadas de
ironia.
Em 1932, publica mais uma obra sujeita a censura, Le Roi s’amuse, baseada na vida amorosa
do Rei Francisco I de França, pelo que o mesmo trabalho é acusado de expor a
figura do Rei ao ridículo.
Victor Hugo passará
algum tempo no exílio, em Jersey, entre 1853-1855, o qual condena veementemente,
por razões morais, na obra Histoire d’un
crime. O desprezo por Napoleão III leva-o a alcunhá-lo de Napoléon Le Petit,
em oposição a Napoleão Bonaparte a quem considerava “o grande”.
A morte da filha, Leopoldina, deixa-o perturbado, tentando
buscar refúgio no misticismo.
Victor Hugo
influenciou ideologicamente alguns dos grandes nomes da literatura mundial do
século XIX e XX como Albert Camus, Charles Dickens, Fiodor Dostoievski e José
Saramago.
Os Miseráveis
Victor Hugo
começou a arquitectar a grande obra literária da sua vida cuja temática incidia
na miséria e a injustiça social, no início da década de 1830, um romance que só
viria a ser publicado em 1862 e do qual Les
derniers jours d’un condamné foi apenas um esboço ou ensaio. O Autor estava
plenamente consciente da qualidade literária da obra, a qual foi objecto de uma
cuidada e concertada estratégia publicitária invulgar para a época, sendo a
primeira parte do romance – Fantine –
lançada simultaneamente em várias capitais europeias. A obra esgotou em poucos
dias e teve um impacto considerável na sociedade francesa daquela época. O
conteúdo de Os Miseráveis não gerou, no entanto, consenso, munindo-se
alguns críticos e escritores conceituados da época de algumas acutilantes
farpas com que o apuparam: Flaubert afirmou que o livro não era “nem verdadeiro
nem genial” e Baudelaire apelidou a obra de “sem graça e inepta”. Os
Miseráveis ganhou popularidade
junto das massas fazendo com que os temas aí explorados, passassem a ser
discutidos na Assembleia Geral de França, isto é no Parlamento.
A discussão de temas sociais e políticos aparece já diluída
na obra seguinte. Les Travailleurs de la
Mer foi bastante bem recebida pelo público, ainda cativado pela aura de Os
Miseráveis. A mesma obra foi alvo de inúmeras adaptações para cinema,
teatro e televisão.
Em L’Homme qui rit,
Hugo faz um retrato crítico da aristocracia, mas o livro não é bem recebido. O
Autor pretende, cada vez mais, distanciar a própria obra da dos seus
contemporâneos como Flaubert e Zola, de tendência realista e naturalista que
ganhavam terreno junto a público. Quatre-vingt
treize (1893) foi publicada em 1874 e aborda um tema especialmente delicado
que o autor até então se esforçara por evitar: o Reinado do Terror, dentro da
Revolução Francesa. Trata-se de uma das grandes obras de Victor Hugo Autor ao nível das grandes publicações anteriores.
O Enredo de” Os
Miseráveis”
Os Miseráveis foi publicado pela primeira vez a 3 de Abrilde
1862, em Leipzig, Bruxelas, Budapeste, Roterdão, Milão, Varsóvia, RIO de
Janeiro e Paris em, simultâneo.
A obra estrutura-se em, cinco volumes. Cada qual tem uma
personagem que se destaca e divide o protagonismo com Jean Valjean que está
presente em todas as fases da trama, atravessando toda a saga do primeiro ao
último volume.
A trama desenvolve-se no período de amplitude temporal
compreendido entre duas grandes batalhas ou conflitos que marcaram a História
de França no século XIX: a Batalha de Waterloo – na qual o exército de Napoleão
saiu vergonhosamente derrotado, após enfrentar as tropas do general Nelson, à
frente do Exército britânico, o qual apoiava a causa realista daquele país e
via o Império, encabeçado por Bonaparte, uma séria ameaça à soberania dos
restantes estados Europeus – e os motins de Junho de 1932, opondo a facção
simpatizante das ideias bonapartistas ao governo de Luís XVIII.
A história gira à volta de um homem do campo, um trabalhador
agrícola que dedica a vida a podar árvores e vinhas, trabalhando duramente para
ajudar a irmã a sustentar uma família numerosa de seis filhos. Um dia, o
desespero causado pela fome, impele-o a assaltar uma padaria e roubar um pão. A
consequência de ser apanhado em flagrante vale-lhe uma condenação às galés por
cinco anos, pena que é agravada e multiplicada pelas várias tentativas de fuga,
fazendo-o passar quase uma vintena de anos no degredo.
Aquando do regresso, Jean Valjean traz consigo o estigma do
condenado às galés, facto que o relega para a condição de excluído social:
ninguém lhe dá trabalho ou guarida para passar a noite, mesmo pagando. Ao
aspecto maltratado, junta-se o passaporte
amarelo, a insígnia do criminoso que não merece sequer um voto de confiança
para pernoitar num lugar abrigado.
No entanto, Jean Valjean parece ter o encontro marcado com o
destino, incarnado na figura do Bispo Myriel: após ser-lhe indicada a morada do
clérigo, como o lugar onde deverá tentar pedir dormida, o abade decide resgatar
aquele homem de ar desesperado da condição de excluído. Primeiro, concede-lhe
um voto de confiança – que ele trai – e depois, ao conceder-lhe uma segunda
oportunidade, fornece-lhe os meios para iniciar uma nova etapa na vida.
A história de Os Miseráveis parece ser o inverso
da de Fausto de Göethe na qual o
protagonista, ao invés de vender a alma ao Diabo, vende a alma a Deus que fica
com ela como garantia de que este irá mudar de vida: o Bispo Myriel, homem
incorruptível, de hábitos frugais, pouco amante de luxos e dono de uma infinita
bondade, exige a alma de Jean Valjean em troca dos meios para cumprir a missão
de praticar o Bem durante o resto da vida: uns castiçais e um faqueiro de
prata.
Myriel dá-lhe os meios materiais para o “salvar”, chegando
até a mentir às autoridades para tal mas obriga-o a contrair uma dívida moral
da qual Myriel será credor nesta vida e mesmo após a própria morte. Uma dívida
que Valjean terá de amortizar durante o resto dos seus dias. Valjean terá, pois,
de usar a prata para se tornar um homem íntegro. Myriel só lha concede por
saber tratar-se de um homem que não é intrinsecamente mau, mas corrompido pela
sociedade e falta de oportunidades. Este ainda tem o impulso de roubar para
sobreviver – patente no incidente com a moeda do pequeno Gervais – afinal não é
fácil mudar hábitos enraizados ao longo de anos de convivência com criminosos e
transformar o ódio ou rancor à sociedade – mediante um castigo desproporcional
à falta cometida – em compaixão.
Jean Valjean
muda-se para outra cidade, adopta o nome de Pére Madeleine e torna-se num
próspero empresário, fabricante de acessórios de azeviche. É, agora, um homem
respeitado e admirado. Tornar-se-á, então, no Maire de Montreil-sur-mer. No
entanto, a inveja espreita, insidiosa…
Madeleine era, no tempo das galés, conhecido pela sua força
prodigiosa sendo apelidado de “o Guincho” ou guindaste. Num dia em que a mesma
força se torna necessária para salvar um aldeão que fica entalado debaixo das
rodas de um carro de bois, Javert, o chefe da polícia daquela localidade
reconhece-o. A nova máscara social com que decide recomeçar a vida ameaça
desfazer-se.
Este primeiro volume de Os Miseráveis intitula-se de Fantine, a primeira grande figura
feminina com a qual interage o protagonista.
Fantine é uma figura trágica, directamente emanada do
romantismo. Mulher socialmente vulnerável, pelas suas origens, filha bastarda,
de beleza fulgurante e delicada, tem, no entanto, o poder de atrair o
infortúnio e, ao mesmo tempo, de quebrar a aparente inflexibilidade do “Pére
Madeleine”.
A estrutura deste primeiro volume da obra é desenvolvida de
forma assaz simétrica e inversamente proporcional: à ascensão social de Jean
Valjean opõe-se a queda irreversível de Fantine. O volume termina com o
julgamento de Madeleine, após a denúncia de Javert e um final trágico para
Fantine.
As temáticas para as quais o Autor chama a atenção eneste
prieiro volume prendem-se sobretudo com a “ingenuidade” das leis e as lacunas
no Direito que afastam a sua aplicação do ideal de justiça, com a desigualdade
de oportunidades e, particularmente, com a vulnerabilidade social e sujeição a
maus tratos a que são sujeitas as mulheres, sobretudo nas classes sociais mais
desfavorecidas, incarnadas na bela e infeliz Fantine.
O segundo volume é dedicado a Cosette, filha de Fantine, cuja custódia é entregue por esta a Jean
Valjean. Cosette representa para o ex-condenado o amor absoluto e
desinteressado, o qual se alia a um forte desejo de protecção, despoletado
quando a salvo dos maus tratos e sevícias dos Thénardier, um casal de patifes
que se dedica à extorsão e em grande parte responsáveis pela morte de Fantine.
Valjean salva-a não só dos maus tratos mas também da sorte que lhe estaria
reservada quer pelas origens sociais quer pela beleza, herdada da mãe, beleza
essa que se mantém durante muito tempo semi-oculta, devido à vida difícil a que
é sujeita durante os primeiros anos de infância. A fragilidade social e o
apreço normalmente concedido à beleza feminina fariam com que Cosette se
transformasse numa criança de risco.
Os capítulos que, dentro deste volume são dedicados à
batalha de Waterloo, servem não apenas para situar a acção num dado momento da
História de França, mas também como documento, pela detalhada descrição das
tácticas militares empregues na batalha e, ainda – e sobretudo – como fio
condutor que não só explica em parte a personalidade de Thénardier, como a
atitude de algumas personagens ligadas a Fantine e Cosette – o pai de Marius e o
próprio Marius, protagonista do terceiro volume. A atitude de Mr. Thénardier
durante a batalha serve para denunciar a farsa que representa para a comunidade
ao fazer-se passar por homem recto, desmentindo a reputação de soldado
diligente e cumpridor que Thénardier se encarrega de difundir. O mesmo Thénardier
é o oposto de Jean Valjean, isto é, um
patife até à medula, sem remissão possível. A mulher, Mme. Thénardier, parecer
ser mais uma mulher dominada pela inveja e pelo ressentimento.
Cosette é o volume
de Os
Miseráveis que chama a atenção para o problema das crianças maltratadas,
ao descrever com detalhe o comportamento, as atitudes a as marcas físicas, das
crianças submetidas a maus-tratos físicos e psicológicos de forma constante e
prolongada. Com o crescimento, a filha de Fantine tornar-se-á numa criança
resiliente, graças à intervenção de Jean Valjean.
Os Thénardier comportam-se, ao longo de todo o romance, como
autênticas hienas, capazes até de maltratar os próprios filhos. Na verdade,
quando as coisas ainda correm bem, as duas filhas mais velhas, Eponine e Azelma,
conhecem uma vida familiar calma, são amadas, bem alimentadas e vestidas. Mas
os filhos mais novos não têm a mesma sorte e são votados, desde cedo, ao
abandono. Mais tarde, quando as dificuldades aumentam, estes pais acabam por se
desleixar mesmo em relação à duas filhas mais velhas e a obrigá-las a colaborar
nos seus crimes. As crianças Thénardier sofrem, todas elas com os abusos dos
pais. O Autor dá a entender que o futuro destes sibblings poderia ser muito diferente, caso tivesse havido uma
intervenção externa, como houve no caso de Cosette. Partilhando dos ideais de Jean-Jacques Rousseau, de que o homem
nasce naturalmente bom e que é a sociedade que o corrompe, Victor Hugo mostra-se conforme ao pensamento do pai do Humanismo,
ao sublinhar a mudança progressiva de atitude de Eponine e Gavroche, mediante e
influência positiva de Marius, nos volumes seguintes.
Eponine surge, já no final do segundo volume e, depois no
terceiro, precocemente envelhecida, apesar de ser ainda adolescente – a Eponine
cabe-lhe um destino muito semelhante ao de Fantine: a queda é inexorável e
irreversível. Aparece sub-nutrida, coberta de andrajos, a beleza evaporada e a
instrução completamente negligenciada.
No terceiro volume, o principal interveniente é Marius, a
personagem a quem, nesta terceira parte, é concedido o maior destaque,
partilhando o protagonismo com Cosette e Jean Valjean.
A par das personagens heróicas, o Autor destaca neste
capítulo a vida das crianças de rua e o incontáveis riscos que decorre o estilo
de sobrevivência no fio da navalha, onde
a morte espreita em cada esquina. Gavroche e Eponine serão protagonistas
de um drama pungente, enquanto os irmãos mais novos desaparecem de vista sem
deixar rasto.
No início no volume, Marius ainda procura os Thénardier pois
está convencido dever-lhes a vida do pai, a quem Thénardier supostamente teria
tentado socorrer em Waterloo. Este equívoco será responsável pelo adiamento da
história e pelo facto de o casal de vilões continuar, ainda, durante bastante
tempo, a assombrar a vida de Cosette e a de Jean Valjean.
Um dia, ao cruzar-se com Cosette no jardim de Luxemburgo, Marius
apaixona-se irremediavelmente – o arrebatamento do amor à primeira vista, tão
valorizado o Romantismo, com símbolo de rebelião às convenções sociais e à
ordem estabelecida – e inicia-se a fase seguinte do romance.
Gavroche, apresenta-se, ainda neste volume, como o gaiato
típico, isto é, como o esquivo e travesso garoto de rua, com as manhas de uma
pequena raposa usadas para sobreviver, mas com um código de honra muito
próprio. É generoso e compassivo, como demonstra a cena onde acolhe os irmãos
mais novos, desconhecendo-lhes no entanto a identidade – as crianças tinham
sido entregues a uma ama que os abandona por falta de pagamento –, mas acaba
por perdê-los de vista. A forma comovente como os protege na adversidade,
transidos pelo frio do álgido inverno parisiense e pela fome, lembra o pungente
filme iraniano do século XXI As
Tartarugas também voam, no qual uma jovem rapariguinha prestes a atingir o
limiar da adolescência alimenta o irmão, sem braços.
Após uma emocionante cena de polícias, ladrões e tiroteios,
os Thénardier são, finalmente, presos juntamente com alguns membros da
quadrilha Patron-Minette, a qual semeava o terror pela cidade. Eponine e
Gavroche saem ilesos. Sobretudo este último, que não participava dos crimes dos
pais.
No volume IV, intitulado de O Idílio da Rue de Plumet e a
epopeia na Ruae Saint-Denis, a acção é totalmente baseada nos
acontecimentos que desencadearam os motins de Junho de 1832 e as barricadas da Rue de Saint-Denis, factos
históricos que servem de cenário ao romance, enquadrando-o no contexto da
Revolta de Paris de 1832.
Ainda ano livro III, deste volume IV - Intitulado A Casa da Rue Plumet - o Autor explica a forma como Valjean e
Cosette deixaram o convento onde se refugiaram, fugidos de Javert e dos
Thénardier, e se mudam para uma vivenda na Rue France, durante uma pequena
analepse.
Voltando ao presente, Eponine encontra Marius, por quem está
apaixonada e, para o cativar, faz-lhe saber onde vive Cosette.
Entretanto, os Thénardier ainda conseguem fugir da prisão e
reconstituir a quadrilha. Planeiam invadir a casa de Jean Valjean, assaltá-la e
extorquir o proprietário. Eponine, frustra-lhes os planos ao sabotar a missão,
por amor de Marius, apesar de saber que este ama Cosette.
A paixão de Marius por Cosette vai desencadear, ainda, um
drama familiar, devido às reticências de Mr. Gillenormand, avô de Marius,
aristocrata conservador e anti-bonapartista. Marius é um romântico, logo é
improvável que se comporte da mesma forma que o amante de Fantine – o típico
marialva do Antigo Regime – sabendo, por outro lado, que a sua Cosette jamais
se prestaria ao papel de concubina..
A morte do General Lamarque, que desempenhara um papel
fulcral no Exército de Napoleão, é o rastilho de pólvora que despoleta a
insurreição popular em Paris de 1932, dando origem a violentos conflitos,
precisamente na altura em que o cortejo fúnebre pára na ponte de Austerlitz.
Gavroche junta-se a um grupo de revoltosos numa tipografia, encabeçado
por Enjolras, Courfeyrac e Combefère. Javert, no entanto, infiltra-se no grupo,
mas é denunciado por Gavroche. Ao mesmo grupo juntar-se-á também, mais tarde,
Marius, na Taberna Grunthe, onde Javert é amarrado a um poste.
Eponine morre durante a barricada, ao tomar, um impulso, a
resolução de salvar a vida de Marius. A verdadeira personalidade de Gavroche é revelada
ao juntar-se ao grupo de Enjolras e a aprender o ofício de tipógrafo,
recusando-se a enveredar pelo mundo do crime como os pais e tomando aqueles
jovens como modelo de conduta...
A morte de Gavroche durante a barricada é um dos momentos
mais angustiantes do romance, uma vez que, até ao último instante, o leitor é
deixado em suspenso, na esperança que o “gaiato” consiga iludir a perseguição
da Morte pelas ruas, do outro lado da barricada…
O volume V é dedicado ao desfecho da História de Jean
Valjean e ao romance entre Cosette e Marius. Um acto heróico de Valjean faz
lembrar vagamente uma cena de O conde de
Monte Cristo de Alexandre Dumas.
Trata-se de uma cena infernal, subterrânea, uma viagem pelos esgotos de Paris, que
constitui uma metáfora extremamente bem conseguida através da descrição vívida
de uma realidade física, mas a simbolizar a obscenidade da miséria e, simultaneamente,
da corrupção da sociedade. A descrição da imensa cloaca subterrânea parisiense
é impressionante, ocupando quase um capítulo inteiro. O autor faz, aqui, uma
analogia, cujo objectivo consiste numa chamada de atenção para o acelerado
desenvolvimento económico, já no século XIX, parecia seguir uma linha que, além
de por em causa a sobrevivência futura da humanidade pelo impressionante
impacto ambiental que dele decorre, escondia, debaixo da capa da ostentação, a
imensa miséria social germinadora de conflitos, tal como o lixo que desemboca no
esgoto. Este “lixo” (que não é apenas desperdício) pode, no entender do Autor
ser reutilizável, deixando assim de constituir uma ameaça. Tanto no que
respeita ao lixo físico, quanto do capital humano subvalorizado, desaproveitado
e excluído socialmente, que ameaça tornar-se uma bomba relógio para a paz
social, quanto da mesma forma que a porcaria dos esgotos ameaça transbordar da
superfície e invadir as ruas da cidade.
A faceta magnânima de Valjean está patente no último
encontro com Javert, por ele salvo de morrer às mãos dos revoltosos, numa
batalha que se revelou tão trágica quanto a das Termópilas. Neste último
encontro entre os dois antqagonistas, dá-se um emocionante debate entre Ética e
Justiça e o eterno conflito entre “a letra da lei” e o “espírito da lei”,
pretendendo este último aproximar-se mais do ideal de Justiça, em oposição à
mera aplicação formal dos resultados de actos legistativos.
O final do romance é emocionante e a tensão, esticada até ao
limite. Esta é dissipada com a eliminação do foco de interesse dos vilões, os
quais desaparecem para outras paragens, em busca de novas presas. Um final
digno de uma obra que marca o período áureo do Romantismo na Literatura, onde a
emoção ocupa o lugar privilegiado. As personagens são heróicas e exibem
comportamentos sublimes, veiculados a essa mesma heroicidade, desde Javert a
Valjean, passando por Marius e Cosette.
As personagens de
Victor Hugo em “Os Miseráveis”
O romance é composto por um vasto leque de personagens.
Muitas delas contempladas apenas com uma breve aparição num romance que é, na
verdade, uma saga em cinco volumes, ao passo que outras são ubíquas, aparecendo
se não em todos, pelo menos na maior parte, dos mesmos cinco volumes de
peripécias.
No primeiro caso, temos uma boa parte das personagens que
aparecem somente no primeiro volume – secundárias, por fazerem parte de uma
narrativa que é, também ela, secundária: o passado de Valjean e as origens de
Cosette. São elas, a irmã e os sobrinhos de Valjean, que desaparecem sem deixar
rasto nos volumes seguintes, o abade Myriel, determinante na conduta futura de
Valjean, o pequeno Gervais, que serve para demonstrar a fraqueza de espírito e
as feridas no carácter do protagonista e, claro, Fantine, a qual, apesar de
figurar apenas no primeiro volume, deixará marcas indeléveis que irão
condicionar o percurso das restantes personagens como Valjean, Cosette e os
Thénardier. Fantine aparece, primeiro, como uma figura idealizada, pela beleza
e ingenuidade e, depois, santificada pelo sofrimento e capacidade de abnegação.
Aliás, quase todas as personagens femininas em Victor Hugo são planas, resultando de idealizações de vários tipos
sociais femininos, a que Cosette e Eponine ou Madame Thénardier não fogem à
regra.
Temos, ainda, as personagens principais que estão presentes
em todas as fases seguintes: os antagonistas Valjean e Javert (que também
figuram no primeiro volume), os Thénardier, Cosette (surge a partir do segundo
volume) e Marius (dá entrada no terceiro volume).
Valjean é, pelo contrário, uma personagem que vai ser
objecto de modelagem, cuja personalidade vai sofrendo alterações, fruto das
circunstâncias e da aprendizagem pelo sofrimento e, sobretudo, pelo compromisso
a que foi votado pelo Bispo Myriel e pelo voto de confiança dado pelo mesmo,
que o faz acreditar outra vez na Humanidade. Valjean sofrerá todo um processo
de transformação que o leva a passar de criminoso a filantropo.
A transformação de Cosette não se dá tanto ao nível de
personalidade, mas ao nível de autoconfiança e físico, devido aos condicionamentos
a que foi sujeita nos primeiros anos de vida que se reflectem no aspecto
exterior, decorrente ausência de afecto, carências alimentares e maus tratos.
Trata-se mais uma vez, de uma personagem feminina que é idealizada pelo Autor,
a incarnar a figura da heroína romântica, ou uma “princesa” de origem plebeia.
Cosette é o patinho feio que se transforma em cisne, fruto das condições
ambientais.
Javert começa por ser um polícia que peca por excesso de
zelo, no tocante ao cumprimento da lei, uma atitude que mudará ligeiramente ao
pôr em causa as próprias acções, no final do último volume.
Marius é o típico herói romântico, neste caso um jovem
aristocrata simpatizante das ideias liberais que se desentende com o avô,
empedernidamente monárquico e conservador. Estuda direito e, mercê das afinidades
ideológicas com o pai, juntar-se-á à facção dos estudantes revolucionários
liderada por Enjolras.
O casal Thénardier incarna a alma corrupta do romance, da
venalidade. São peritos em extorsão, assaltos, pilhagem liderando uma perigosa quadrilha
que aterroriza as ruas parisienses.
Eponine, filha mais velha dos Thénardier, é uma jovem que é,
inicialmente, treinada para a vida no crime pelos próprios pais, mas as suas convicçõe
assumem uma natureza deferente depois de conhecer e passar a admirar Marius,
tomando-o como modelo de conduta.
Gavroche, o terceiro filho dos Thénardier, é uma personagem
coadjuvante do grupo de revoltosos. Consegue captar a empatia do leitor, pela
forma empenhada como protege os irmãos.
Enjolras tem a personalidade de um líder, defensor dos ideais
da revolução Francesa, será outra figura modelar para Gavroche.
As freiras que acolhem Cosette e Valjean, enquanto este foge
da perseguição de Javert são também, fortes aliadas dos protagonistas. O Autor
dedica, também, um capítulo inteiro a descrever os efeitos psicológicos e
emocionais nas religiosas, decorrentes do extremo isolamento a que são votadas
e cujos hábitos austeros levam muitas delas à loucura.
Ainda na primeira parte, a irmã Simplice, que cuida de
Fantine, é uma das personagens mais comoventes pela atitude assumida ao passar
por cima das próprias convicções (nunca mentir), em nome da Justiça e da Compaixão,
para ela valores tidos como Absolutos. Trata-se de uma personagem que ao
contrário de Javert, age de forma pós-convencional.
Mr. Maboeuf é outra personagem que, na recta final do
romance, no auge dos acontecimentos explosivos, consegue despertar grande
comoção nos leitores. Trata-se de um tesoureiro que empobrece até ao extremo e
de forma inexorável, chegando ao cúmulo de vender os livros e todas as plantas
que ama. Junta-se aos seus alunos e à insurreição, durante a qual acabará por
falecer.
Marius é o único que contradiz um pouco o carácter heróico
destas personagens. Sendo um tipo social construído a partir da ideia do
romantismo, o jovem galã romântico revela, no entanto, uma fragilidade: um
espírito condescendente que o torna particularmente vulnerável à acção dos
Thénardier, colocando os outros protagonistas na mira da quadrilha de patifes.
O estilo literário de
Victor Hugo
Algumas descrições, como a batalha de Waterloo ou a imensa
rede de esgotos de Paris ou, mesmo, os
motins de 1832/1833, realizados com o objectivo de restaurar a República e
derrubar a casa de Orleães, são todas elas, dotadas de grande realismo, devido
à profusão dos detalhes, que sugerem terem sido as cenas senão vivenciadas,
pelo menos descritas por testemunhas oculares.
A linguagem é cuidada e elaborada, o Autor jamais utiliza a
palavra calão, substituindo a palavra “merda” por “porcaria” ou “excremento” e
“prostituta” pela pudica expressão “mulher pública”, por exemplo. Victor Hugo, no tocante às preocupações
ambientais demonstra claramente ser um homem à frente do seu tempo, ao
denunciar a (ir)responsabilidade, tanto do Estado como dos particulares, na
poluição dos rios, causada pelo despejo de dejectos humanos, os quais, no seu
entender, deveriam ser canalizados para a produção de fertilizantes, poupando
fortunas na compra de fertilizante de origem avícola e aumentando a produção no
sector primário da Economia.
O Homem, o Humanista
Sendo um reformista, Hugo nunca adoptou, no entanto, o
discurso marxista da luta de classes, por acreditar que o Homem deveria
usufruir do produto do próprio trabalho. Não deixou contudo de reforçar a ideia
da responsabilidade social que acompanha o enriquecimento. A ideia está patente
na obra, sobretudo na primeira parte, numa altura em que Pére Madeleine se
empenha em prestar auxílio às funcionárias em dificuldades, como mostra ser o
caso de Fantine. Victor Hugo foi,
também, um forte opositor do uso da violência, sempre que esta colocasse em
risco um governo democrático. Contudo, justificava-a quando utilizada contra
aquilo a que chamava de “um poder ilegítimo”. Victor Hugo manterá a mesma posição até à altura da guerra
franco-prussiana, a qual via como uma guerra de capricho e não de liberdade”.
Sem esquecer que foi uma das grandes figuras da Literatura Universal que
felicitou Portugal por, em 1876, ter aprovado a lei da abolição da pena de
morte, sendo Portugal o primeiro país Europeu a fazê-lo.
Por altura do seu falecimento, em 1870, estima-se que mais
de um milhão de pessoas tenha comparecido ao enterro para lhe prestar
homenagem. Dizem, ainda, as más-línguas que, à data, as prostitutas de Paris
ficaram de luto. Um justo agradecimento a um homem que defendeu os direitos das
mulheres e a igualdade de oportunidades de género no acesso à educação e ao
trabalho.
Cláudia de Sousa Dias
25.04.2011 (reformulado a 25.01-2012)
5 Comments:
Que vontade de ler esta grande obra, tão magnificamente resenhada por ti, Cláudia!!! Quem sabe ainda este ano...
Beijinhos, bom sábado!
Madalena
Deu-me muito que fazer, este textinho... :-P
csd
Um dos meus livros e autores favoritos. Quando o li fiquei uns dias a absorver o quão extraordinário era. Obrigado por me fazeres relembrar :)
:-)
csd
Bela resenha sobre esse livro magnífico. Seu blog é ótimo! Um abraço. Karina
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