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Wednesday, February 01, 2012

“O Desejo” de Safo (Teorema)





imagem retirada daqui:



Tradução de Serafim Ferreira

Safo e o Desejo. Safo e o Amor. Os termos fundem-se (se é que alguma vez estiveram separados) quando lemos os poemas da poetisa de Mitilene, a primeira e mais difundida autora de poesia da Antiguidade Clássica, cujos escritos chegaram até nós e cuja qualidade estética, presente na sua obra, a colocam, indiscutivelmente, na categoria de produtora de Arte. Os seus escritos foram compilados e reunidos em nove volumes, depositados na desaparecida Biblioteca de Alexandria, dos quais hoje só resta uma pequena parte.
O Desejo e o Amor são a temática central abrangendo todos os tipos de Amor, em todas as suas manifestações: desde o Eros (o desejo físico violento) ao Agapê (o amor sublimado dentro da conjugalidade), passando pelo filial ou fraternal (filia). Todos eles estão contidos na poesia de Safo, contrariamente àquilo que o título sugere e, levado à letra, nos poderia fazer pensar somente no amor ligado ao erotismo. Em O Desejo, estão também contidos os ódios, relacionados com o despeito, os rancores e as mágoas, todos eles filhos transgienizados do Amor, ou do Desejo, e por isso mesmo, de certa forma, vinculados a Afrodite mas de forma invertida, tal como a imagem simétrica num espelho.
Os primeiros poemas reunidos nesta edição são constituídos por fragmentos, nos quais a Poeta descreve  sintomas de paixão, a qual identifica como uma febre, súbita e inesperada, que prostra o sujeito, durante algum tempo e depois se desvanece (aqui refere-se ao eros ou o desejo, o tema central da obra).
O Desejo é o servo da astuta Afrodite”.
O principal defeito desta Edição será, talvez, o de não se apresentar na forma bilingue, uma vez que, com a tradução, desaparecem a maior parte dos jogos semânticos, assim como a musicalidade conferida pela métrica sáfica, conjugada com repetições periódicas e alternância entre sílabas longas e breves na língua grega.
Na escrita de Safo, estão também presentes desabafos, divagações e pensamentos que se transformam numa quase narrativa, tal como acontece no canto a Átis - uma jovem a quem é dedicado um amor não correspondido e que ama, por sua vez, um jovem, "belo como um deus".

No capítulo intitulado “As Deusas”, encontramos a sublimidade numa bela e comovente oração a Afrodite que se desdobra num diálogo entre o sujeito poético e a Deusa, podendo facilmente identificar-se as duas vozes facilmente distinguíveis no diálogo: a humana e a divina. Na primeira, inflamada, domina-a o desespero e o pânico, diante da indiferença do ser amado, criando um forte contraste face à compaixão e à condescendência demonstrados pela Deusa, invulnerável, envolta no manto da imortalidade conferida pelo amor que lhe dedicam os humanos, mesmo quando nela não acreditam ou quando lhe atribuem outro nome.

A este contraste entre a benevolência da Deusa opõe-se ao ciúme e ao despeito, exibidos pela voz da narradora, quando pede a Afrodite que a amada não volte “a gozar de novo de um perfeito amor”, que é o mesmo que implorar para que ela própria não seja esquecida, apagada da memória do objecto amado, emoções que são alvo da simpatia de Afrodite.
O Amor e a Perda estão presentes no capítulo “Trocas” durante o qual a Poeta propõe um acordo com a Deusa: “a vida pela morte e a eterna convivência com o amor”.

Em “Intimidades” a Poeta faz confidências acerca dos sentimentos mais pessoais como a adoração pela filha,

lindíssima Cleis ()(1)
A quem não entregaria
a ninguém
nem por todo
o oiro da Lídia”.

Já nos “AforismosSafo deixa entrever os diferentes estados de alma, partindo duma atitude contemplativa, ao servir-se da natureza de inspiração para o amor.
Outras vezes, é o espectro da velhice que assoma ao pensamento da narradora, fruto de uma contradição que se estabelece entre um corpo no qual se esvaem as forças e uma alma onde continua a arder o Desejo, a despeito da juventude, a qual se volatiliza deixando, em seu lugar, a ausência da beleza que a torna o sujeito invisível, ao mesmo tempo que ergue muros da indiferença e desvia os olhos do desejo alheio para outras direcções…

Na descrição de cenas do “Quotidiano” a poeta canta a beleza dourada dos loiros, quando adornados de púrpura e o ritual da toillette feminina. As cenas do quotidiano, assumem a forma de breves descrições, registadas em frases curtas assemelhando-se a pequenos flashes, breves momentos do dia-a-dia, sob a forma de apontamentos ou pequenas notas.

No capítulo intitulado de “Os Outros” a Poeta descreve o epílogo de algumas relações do passado, tais como o destino da bela Átis, ao recordar com nostalgia e alguma saudade o encanto da jovem grega, cuja beleza triunfa na Lídia. A narradora fala, ainda, das amantes, discípulas da escola que dirigia em Mitilene.

Mas nem só de boa vontade vive a alma humana. E os Gregos tinham destas coisas. Exaltavam tanto os defeitos como as virtudes. Sobretudo nos seus deuses, que eram tão só o reflexo ou a projecção do sentir humano. No capítulo “Inimigos” encontramos a traição o despeito e o orgulho, sendo este último motivado pelo facto de se sentir preterida por uma mulher a quem considera inferior a si mesma.
A maledicência também faz parte dos dotes desta Safo, cujo requinte atinge a forma de arte na expressão do mais violento desprezo que vota àqueles a quem detesta.

As mulheres de Polianactides
dedilham as cordas da suas lira
com um falo artificial…”

...em alusão à grosseria das suas produções musicais.

Em “Mitologia” estamos perante um conjunto de mini-narrativas, respeitantes a vários episódios das lendas clássicas, relatados num tom épico, eivado de lirismo, numa escrita descritiva mas depurada, sem floreados.

Em “Peças de Encomenda”, encontramos breves trechos que são pedidos à Poeta, feitos à medida, para ocasiões específicas como casamentos, funerais, celebrações, rituais religiosos – ou momentos marcantes que sublinhavam o ritmo de vida dos Gregos. Nestes trechos é cantado, também, o Amor heterossexual, subjacente ao casamento e como contraponto, a volúpia das relações extra-conjugais de ambos os sexos, que cedem lugar a um amor, total e recíproco, dedicado, a partir de então, a uma só pessoa. Um amor sublime que deverá tornar-se único. De onde se entrevê a forma como a Poeta encara o amor: o contrário de um acordo, realizado entre famílias, tendo por objecto interesses económicos ou políticos e que nunca poderia caber dentro dos limites de um gineceu (e que provavelmente norteou o relacionamento da Autora com o Poeta Alceu, pelo menos durante o tempo em durou a paixão entre ambos) – um amor entre dois seres autónomos e independentes, pautado por uma relação de cumplicidade e paridade, sem jogos de poder. Uma utopia que perseguiu durante toda a sua existência. Na voz da Poeta sobressai, neste cântico nupcial, a importância de um amor ideal, único, baseado numa identificação quase total onde a liberdade de movimentos não poderá estar ausente. O cântico termina com a exortação aos noivos entoada pelo coro nupcial.
Os elogios fúnebres, incluídos também nestas “Peças de encomenda”, parecem ter como objecto integrar inscrições lapidares, como aquela destinada à jovem Timos(1), morta antes do casamento ou do jovem pescador adolescente, Pelagos (1).

Em “Natureza” estão presentes as descrições de vários elementos, numa poesia que coincide com a beleza elementar dos Haikus orientais. Deve-se, no entanto salientar que a poesia de Safo não foi originalmente concebida desta forma, uma vez que nos chega em estado fragmentário, pelo que a maior parte destes poemas faria parte de um texto poético de maiores dimensões. Mas a semelhança com a beleza das imagens e metáforas da poesia do extremo oriente é marcante, apesar da distância geográfica e da impossibilidade de haver, na altura, um contacto (a não ser remoto) entre ambas as civilizações, de forma a possibilitar a troca de elementos literários a este nível. A poesia de Safo vem assim demonstrar o carácter universal da sensibilidade a uma beleza de contornos puros, arquetípica.

Quando a Lua se torna clara
ilumina a terra
e as estrelas em seu redor perdem o seu brilho”.

Uma metáfora dirigida a uma jovem, provavelmente à filha, Cleis(1).
Na secção “Cenas da vida descobrimos pequenas frases/aforismos que pintam quadros respeitantes não já ao quotidiano doméstico, mas relativos à vida de uma pequena comunidade onde se movimenta a Poeta, descrevendo tradições, rituais sagrados relacionados com o ciclo das estações do ano, com as colheitas, traduzidas em cerimónias religiosas. Por exemplo:

Outrora, os cretenses dançavam em ritmo
à volta de um altar deslumbrante
e esmagavam com os pés
delicadas flores tenras
e frágeis pedaços de erva”.

Aqui, mais uma vez, se entrevê uma metáfora onde se nota uma leve crítica a um tipo de sexualidade brutal sem respeito pelo corpo do ser a quem se deseja ou se possui, podendo identificar-se as “flores delicadas” com raparigas púberes e os “frágeis rebentos de erva” com jovens efebos.
As cenas que compõem este quotidiano encadeiam-se, de forma a constituir um todo, como a pintura de um fresco, no interior de um edifício, dando a sensação de estarmos perante um quadro vivo, em que a sucessão dos diversos momentos confere a sensação de movimento.
Por último, em “Moral” são reunidos um conjunto de provérbios ou epígrafes, ou pelos menos àquilo que parece restar, a partir de poemas mais vastos originalmente compostos, e cujo conteúdo de foi perdendo ao longo dos séculos, (esperemos que um dia a ciência possa recuperar a bibliotecas incendiadas a partir das cinzas e museus destruídos pelos bombardeamentos) onde se chama a atenção para a necessidade de se observar uma moralidade pós-convencional, livre de pré-juízos e de estereótipos.

Por exemplo, “Um homem belo, só o é na aparência. O homem bom será igualmente belo.”
Ou ainda:
A morte é um mal. Foi assim que os deuses o entenderam; de contrário, seriam mortais”.

No entanto, parece que, no tocante à (i) mortalidade nas mulheres da Antiguidade Clássica, os mesmos deuses parecem ter decidido abrir uma excepção para Safo.


(1) A grafia utilizada é a mesma utilizada pelo tradutor, embora em Português por norma se utilize Cleia ou Clea para Cleis, Tima (para o género femininlivro_161363033_1_490_tn.jpgo) em vez de Timo e Pélagon em vez de Pelagos.

Cláudia de Sousa Dias
Artigo publicado originalmente em Outubro de 2009 no site Orgialieraria


Nota: Os meus agradecimentos a Tatiana Faia pela revisão ao meu texto e pela explicação quanto à acentuação, à grafia grega, à métrica utilizada, à alternância entre sílabas longas e breves e, também, à clarificação relativa a alguns aspectos relacionados com as diferentes manifestações do amor, na visão dos poetas da Antiguidade Clássica.

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