"Lúcio Feteira – A História Desconhecida" de Miguel Carvalho (Quidnovi)
Este primeiro volume sobre Lúcio Thomé
Feteira da autoria do Grande Repórter da Revista Visão Miguel Carvalho
não é, propriamente, uma biografia, mas muito mais um retrato. Daí
a imagem na capa – a fotografia de Lúcio Feteira, no auge da sua
juventude – um retrato físico, que nos dá a conhecer as feições
e o porte elegante do milionário, e o retrato psicológico, de
grande complexidade, que nos é transmitido pela escrita
jornalística, que tem o cunho do perfeccionismo de Miguel Carvalho
nas suas reportagens. Um retrato que nasce da compilação de
inúmeras entrevistas; que parte da consulta de um impressionante
acervo documental, espalhado um pouco por todo o país, incluindo
Vila Nova de Famalicão – na Biblioteca Municipal Camilo Castelo
Branco, na Biblioteca Nuno Simões e, também, no acervo documental da
Biblioteca da Fundação Cupertino de Miranda.
Não é a intenção
do Autor a de, ao escrever este livro, julgar o tempo ou o homem que
são aqui retratados, mas a de descrever a envolvência ambiental, em
termos socioeconómicos, e as atitudes individuais do protagonista da obra,
na tentativa de ficarmos a conhecer um pouco melhor quem foi, na
verdade, Lúcio Thomé Feteira: um homem megalómano, genial, louco,
inteligente, de temperamento instável, explosivo, manipulador,
racional, ambicioso ao extremo, sedutor – um ser a quem se ama ou
odeia. Sem meio termo. Atrai prestígio, atrai invejas. Possui o
toque de Midas. E há quem o persiga com sanha, por vezes com razão,
outras nem tanto. O conflito de interesses, desencadeado pela sua
visão estratégica do negócio – muito à frente do seu tempo –,
e pela sagacidade demonstrada, a qual muitas vezes cruzava os limites
da ética, assim o obriga.
Lúcio Feteira foi, sem dúvida, uma
personagem inconformista, que deixou marcas por onde passou. Lembra
um pouco uma figura da História, devido a algumas características
muito particulares da sua personalidade: Caio Júlio César. Ambos
possuem o mesmo carisma, a mesma inteligência invulgar, o mesmo espírito
visionário e empreendedor e um impulso incontrolável de construir
um império – geopolítico e militar, no caso do Ditador e
Imperador romano, económico e financeiro, no caso de Lúcio Feteira.
Ambos com um génio e ética muito própria, que intimida muita
gente, pois trata-se de uma combinação invulgar de traços de
personalidade que conferem aquele tipo de poder que se pode expandir
em progressão geométrica. E, todos sabemos também que, quando o
poder se torna absoluto, seja nas empresas ou no Estado, a tirania
pode tornar-se uma tentação demasiado forte para se lhe resistir.
Isto explica as fortes quezílias, intrigas e acesas divergências
ocorridas com sócios, directores, homens de confiança do
milionário, que se transformam em seus inimigos fidagais. E Lúcio
Feteira, como Júlio César, é sempre o melhor dos amigos, generoso,
e o pior dos inimigos, implacável.
Este não é um livro de literatura.
Mas grande parte dos títulos dos capítulos em que se divide,
remetem para várias obras literárias, com alusão a livros como Em
nome do Pai (Proved
Innocent de Gerry Conlon), Retalhos da
Vida de um Médico
(Fernando Namora) ou Era uma vez
um Rapaz (Nick Hornby). O retrato de um
homem e uma época que resulta de um intenso e demorado trabalho de
investigação, envolvendo entrevistas a operários e descendentes de
trabalhadores das Limas Feteira, visitas constantes ao Governo Civil
de Leiria, à Torre do Tombo, incluindo aos Arquivos da PIDE,
organismo que compreendia a polícia política do Estado Novo, o qual
vigiava de perto Lúcio Feteira, homem que gostava de viver no fio
da navalha, adulando o regime, mas fazendo na verdade o que muito bem
lhe apetecesse.
O livro começa, nos primeiros
capítulos, por assumir as características de uma saga familiar,
logo após o prólogo, referente à contextualização das
circunstâncias que envolveram o caso mediático da morte de Rosalina
Ribeiro. Trata-se de um texto que assume o formato de uma crónica
jornalística, a qual poderia servir de base a um romance policial:
uma figura simpática, a imagem de uma mulher simples, discreta,
selectiva com as companhias, receosa de exposição social. Em seguida é traçada uma genealogia
que ajuda a seguir o emaranhado do percurso dos vários membros do
clã, logo no início da obra. Os primeiros capítulos versam,
essencialmente, sobre as origens familiares de Lúcio Thomé Feteira,
as suas incursões em África, no Congo, onde dá já provas de
audácia e visão no que respeita ao mundo dos negócios. E, depois
sobre a estadia em Paris, onde vive temporariamente uma vida de
playboy, antes de assumir funções na firma do pai, facto que o leva
rapidamente a assumir uma posição de liderança.
É, também, traçada a evolução –
lenta e, na maior parte das vezes, estagnada – da Vieira de Leiria
nos anos vinte e trinta, altura em que se vive quase que
exclusivamente da pesca naquela localidade e, em alternativa, do
trabalho na Fábrica de Limas Feteira ou na fábrica de vidros do
Sr. Dâmaso, que viria a ser o sogro de Lúcio Thomé Feteira. Ambas
as indústrias são as únicas alternativas existentes face aos altos
e baixos da actividade piscatória, que obrigava famílias inteiras a
viver no fio da navalha. O crescente sucesso da Fabrica de Limas
Feteira dá alguma estabilidade aos rendimentos de muitas famílias
daquela região. Fora disso, o cenário em termos da existência de
postos de trabalho nas redondezas região é desolador: Portugal não
é um país economicamente desenvolvido e o pouco trabalho industrial
existente rege-se por salários baixíssimos, sendo o poder de compra
quase nulo entre os trabalhadores, onde a troca directa de géneros é
um recurso assaz frequente.
Uma palavra para as mulheres Feteira,
que nos conseguiram cativar a simpatia, aliás, salvo uma única
excepção que não vou mencionar, é impossível resistir-se-lhes.
Enquanto os membros masculinos da família se dividem em heróis
(Joaquim Thomé, Raul), crápulas (Albano) e outros com virtudes e
defeitos (Lúcio Thomé), as mulheres Feteira, são geradoras de
empatia, à maneira das tradicionais heroínas românticas –
provavelmente porque o Autor é um romântico incurável. A começar,
logo, pelas irmãs Feteira, Júlia e Olímpia, esta última a noiva infortunada
que morre precocemente, deixando por longas décadas uma chaga aberta
no seio da família. Ambas as irmãs de Lúcio Feteira são cultas e
sensíveis, desempenham as funções de assistentes sociais na
povoação, numa altura em que a profissão nem sequer existia em
Portugal. São mulheres educadas segundo os valores e preceitos da Primeira República. Depois, tornamo-nos solidários com a doçura de D.
Laidinha – uma grande senhora, que foi a esposa de Lúcio Feteira –
a qual vive um amor doloroso por um homem irresistível, mas incapaz
de se dedicar a uma só mulher. D. Adelaide Feteira vive um desgosto
calado, com a tristeza a morar no fundo dos olhos, sobretudo nas
últimas décadas de vida, após a morte do filho. Depois, outra
Olímpia, a sobrinha de Lúcio, que casa com o filho, Lucito. Uma
Mulher que mostra, com as suas atitudes desprendidas, como a nobreza
não se encontra apenas nos pergaminhos.
A saga prossegue, numa segunda parte,
que se pode considerar a partir do momento em que Lúcio Feteira
decide expandir a Cooperativa de Vidro Nacional – a COVINA – para
o Brasil e, aí, fundar o empório equivalente naquele país, a
COVIBRA. A tentativa de conseguir o monopólio vidreiro naquele país
gerou-lhe alguns dissabores, desde fortes conflitos dentro da
empresa, lealdades quebradas e ódios de estimação, até ao boicote
de algumas empresas americanas que pretendiam concorrer com a
COVIBRA.
O desenvolvimento da história da
fortuna de Lúcio Feteira prossegue nos capítulos seguintes,
mostrando o crescimento de um império económico construído com
engenho, inteligência estratégica e charme, mas também com manha
e, não raro, uma boa dose de batota.
Lúcio Feteira e os amores
A mistura de anjo e demónio é,
provavelmente, o grande factor responsável pelo sucesso de Lúcio
Feteira junto do sexo feminino, sendo de notar um extenso currículo
de aventuras amorosas: desde a secretária, mãe da sua filha
Olímpia, fruto de uma paixão breve, até à malograda Rosalina
Ribeiro, que conheceu contava já com sessenta anos. Isto apesar de
se dizer que a grande paixão da sua vida terá sido a assessora
Celeste Pastorini, que possuía uma quota na empresa, um
relacionamento que durou até pouco antes de Lúcio Feteira conhecer
Rosalina, altura em que o fogo passional por Celeste começava a
desvanecer.
Lúcio Feteira, o Mecenas
Lúcio Thomé Feteira foi também um
grande patrono das artes, chegou inclusive a ceder as suas extensas
terras em Maricá para o cenário da telenovela Tocaia
Grande, um dos mais violentos romances do escritor
brasileiro Jorge Amado.
O livro termina precisamente na altura
em que Lúcio Feteira conhece uma jovem de dezanove anos que casa com
um amigo seu: Rosalina Ribeiro. Com este final, podemos já entrever
um interesse suspeito, adivinhado em expressivas trocas de olhares...
O que é uma verdadeira maldade por
parte do Autor. Não se faz. Teremos mesmo de esperar pelo segundo
volume, que sairá no final do ano. Não há outro remédio. Até
lá...teremos que esperar.
Cláudia de Sousa Dias
09.03.2012
7 Comments:
Interessante, Cláudia.
E curioso alguém aparecer com esta biografia oportuna.
Há figuras únicas, que despertam paixões e ódios, e, de acordo com as tuas palavras, este é um deles.
Não me atrai o género, mas acredito no interesse da leitura.
Sim, Elipse, ao Miguel foi mesmo uma questão de sorte...uma extensão de um trabalho do qual tinha sido incumbido: a contextualização das circunstâncias da morte de Rosalina Ribeiro e da disputa da herança Feteira. Ao que me parece, as coisas foram surgindo como as cerejas e quando o Autor se apercebeu já tinha material para fazer m livro. Em vários volumes...Tem interesse sim, apesar de não ser uma obra literária, como já referi. O que mais me fascina a mim é mesmo o retrato de uma época. E isso torna de facto a leitura muito interessante.
Não há dúvida que Lúcio Feteira é um homem que não deixa ninguém indiferente. A sua vida que decorre em vários espaços e num tempo, que se poderá dizer, longo, e, traça como bem diz, o retrato de uma época ou de várias.
E é impressionante verificar que a sua história não acaba com a sua morte...prolonga-se através das pessoas que lidaram com ele em vida e de forma trágica.
Gostei muito.
Bj
Olinda
e vai dar ainda muito que falar...sobretudo quando sair o segundo volume.
Nunca li biografias. Nunca me interessou, mas gosto de ver o Biography Channel :P Tenho muita ficção nas prateleiras, com excepção dos livros que falam sobre a 2ª Guerra Mundial, sobre política norte americana, história dos descobrimentos, cinema (Hitchcock). Mas este livro sobre o Feteira parece uma boa sugestão (e este blog é feito de boas sugestões).
beijinhos ^-^
Já li o livro "Lúcio Feteira – A História Desconhecida" de Miguel Carvalho (Quidnovi)
Proponho que leia o livro “Disperso Pensamento Evocativo” (que já antes falava de Lúcio Feteira e que se encontra em Leiria, Monte Real, Vieira de Leiria…)
e provavelmente o Miguel também se baseou nele...!
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