“N.” de Ernesto Ferrero (Teorema)
A obra de que aqui tratamos é um romance que se assemelha
com características biográficas, acerca de Napoleão Bonaparte e relativo ao período
de trezentos dias de exílio, na ilha de Elba.
O Autor é dono de uma escrita pautada por um discurso marcadamente
diarístico, narrado pelo bibliotecário local, Martino Acquabona, de origem
aristocrática e homem de saber e cultura invulgar.
A obra divide-se em capítulos, a descrever a lenta evolução
dos dias que escorrem ao ritmo da insularidade local, porto de chegada e
partida, quer dos ilhéus exilados quer dos estrangeiros, invasores. O porto é,
assim, a principal fonte de obtenção de notícias para a Ilha e o único ponto de
contacto com o exterior. Os movimentos portuários implicam sempre, de alguma
forma, uma mudança na vida dos locais, marcando sempre, num ou noutro aspecto o
término de um ciclo, seja para alguém em particular, seja para a população ou
parte dela. À lentidão das horas que passam de forma pachorrenta nos intervalos
do horário do tráfego portuário, está sempre presente o tédio e a indignação de
exilados e locais, face à imposição a partir da capital, de um soberano que
será a partir de então o Governador Local e cuja megalomania foi responsável
pelo dizimar de toda uma geração de jovens rapazes e trabalhadores úteis.
O romance incide todo ele no exílio de Napoleão e sua corte
em Elba durante os nove meses que precedem o seu desterro para Santa Helena,
mais o epílogo que relata o desfecho narrado pelo sobrinho do protagonista.
Após a restauração da monarquia pelos Bourbon e a vitória de
Nelson em Waterloo, Napoleão e a sua comitiva formada por generais, cortesãos,
família e amigos próximos de lealdade férrea, continuam a ser uma ameaça para
os vencedores: a “águia” está inquieta no seu ninho e demasiado próxima da
Europa para ser inofensiva.
Martino Acquabona é o narrador e protagonista, uma
personagem ficcional obcecada pela figura do mítico general. Tem o cargo de
bibliotecário na Ilha, nomeado pelo próprio N., abreviatura de que se serve
para despachar mais rapidamente as questões burocráticas, e que o narrador
utiliza para se lhe referir no diário até mesmo para sua protecção pessoal: o
mesmo diário que contém revelações algo embaraçosas para a personagem por ele
biografada. Acquabona é oriundo de uma família nobre mas empobrecida e senhor
de invulgar erudição, a qual também é secretamente invejada pelo general.
Na óptica deste narrador de invulgar talento literário, a
comitiva de Napoleão chega à Ilha e instala-se arrogantemente, ocupando
edifícios públicos ou expulsando algumas famílias ilustres das suas
propriedades, pretendendo compensá-las mediante avultadas prestações
pecuniárias mensais. Poderia, à primeira vista parecer um negócio vantajoso
para estas famílias, mas na realidade trata-se de expropriações, já que não são
apresentadas alternativas aos proprietários. Os ocupantes escolhem as melhores
casas da região, pagando o respectivo aluguer, mas trata-se de uma situação
que, dadas as circunstâncias, não deixa de ser humilhante para os respectivos
donos. Quanto aos edifícios públicos, trata-se de ocupação pura e simples. Os
membros da corte de Napoleão tornam-se os novos senhores da ilha, sempre
vigiados de longe e pelo canto do olho pelos locais, que enganam o tédio a comentar
os mais ínfimos detalhes do quotidiano do ex-Imperador e dos que o rodeiam,
incluindo as ordens que dá, os impostos recém-criados, as mudanças de humor, as
relações com amigos, inimigos, família, amantes. Tudo temperado com a proporção
dada pelo rumor a apimentar a informação original. Nada escapa ao olhar de
lince dos insulares, habituados a ver chegar e partir forasteiros, sabendo de
antemão que, também para estes, um dia, será a vez de partir.
Mas à medida que avançamos nos capítulos, apercebemo-nos de
que a relação obsessiva de amor-ódio que se estabelece entre o bibliotecário e
o ex-general se agudiza gravemente com a chegada da bela e frívola Baronesa di
Calabria…A partir de então, deixa de haver paz no dia-a-dia de Acquabona,
incapaz de fazer frente à ordens e caprichos de N. Este continua a agir como se
fosse ainda o Imperador, de facto é-o, embora só naquela Ilha, sentindo-se dono
e senhor absoluto da vontade dos homens que aí habitam. E das respectivas mulheres.
Estrutura e Estilo no
romance de Ferrero
A estrutura do romance de que aqui tratamos está
directamente ligada ao tempo da acção, uma vez que os capítulos estão divididos
em meses.
O arranque da acção dá-se com o prólogo, o qual consiste na
descrição de um sonho de Acquabona em que este assassina o Imperador. O
bibliotecário atribui a esta descrição o título de Reverie em forma de prólogo e cujo conteúdo consiste no verdadeiro
desejo do protagonista, desejo esse que nunca chega a realizar. Ao longo da
obra, o leitor, debate-se com o desejo de descobrir o motivo que despoleta
tamanho ódio, sendo esta curiosidade, em grande parte, a mola que impulsiona a
leitura da obra. Mas não só. À medida que se tenta decifrar as motivações para
tão violenta reacção, deparamo-nos com uma estranha ambivalência de emoções por
parte de Acquabona que vão desde um ódio profundo pela prepotência dos actos do
ex-general, até a uma igualmente profunda admiração pelo respectivo génio e
capacidade de planeamento. Mas tirando a força que assenta numa vontade de ferro
e numa invulgar capacidade de cálculo e previsão, Martino Acquabona considera o
novo Governador da Ilha um homem inferior, ao qual o desejo ilimitado de poder
conseguiu exterminar por completo qualquer sentido de ética.
No discurso de Acquabona são transparecem as medidas tomadas
pelo novo governo local, imbuídas de um estilo de liderança inequivocamente
tirânico, apesar de disfarçadas com um manto de racionalidade – o despotismo,
mascarado de moral, a avidez e ganância pessoais travestidas de acções direccionadas
para as necessidades de desenvolvimento local, que se traduzem em avultados
desvios de verbas públicas para os cofres particulares do governador e seus
amigos.
A conclusão, à laia de epílogo, é-nos dada pela reflexão de
Telémaco – um mês depois do desenrolar dos acontecimentos, isto é, escrita já
num tempo fora do tempo da estória -, o sobrinho de Acquabona, herdeiro do Tio
Martino.
A Mulher como o pomo
da discórdia
Uma palavra para a personagem da Baronesa, a qual não se
limita a exercer o sortilégio da própria beleza como a típica mulher fatal: a
sedução advém-lhe não só dos atributos físicos, do requinte e da erudição, mas
sobretudo de um desejo incomensurável de “ser livre”, dona do próprio destino. O
caminho percorrido pela Baronesa revela a profunda ironia com que o Ernesto
Ferrero revestiu o destino desta personagem, cujo maior desejo acaba por
ser completamente mutilado ao procurar a libertação, submetendo-se à tirania do
Governador.
O ritmo com que Ernesto
Ferrero dota o discurso do bibliotecário Acquabona assemelha-se a uma valsa
lenta: reflexivo, cheio de momentos de pausa, descritivo mas sem floreados. Não
deixa, no entanto, de exprimir emoções turbulentas, fruto de um vincado sentido
crítico, que lhe é dado por um misto de erudição clássica e saber científico,
conhecendo em profundidade a maior parte das obras da biblioteca e de uma certa
impaciência despoletada pela atitude prepotente do invasor. À mistura do
racionalismo que lhe vem do conhecimento científico e da extensa cultura livresca
associada à efervescência emotiva, dirigida ao ex-Imperador, ainda mais inflamada
pela ardente paixão que nutre pela Baronesa, é cozinhado ao longo da trama um
delicioso caldo de venenos que torna a leitura da obra irresistível. Como
contraponto, o clima ameno e algo anestesianteda ilha do Mediterrâneo.
N. é assim um livro escrito para ser lido ao sabor dos dias
insulares, em férias ritmadas pelo movimento de navios que acostem e partam
indiferentes ao tédio das horas…
Cláudia de Sousa Dias
31.05.2011
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