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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Monday, February 20, 2012

“Histórias da Terra e do Mar” de Sophia de Melo Breyner Andresen (Figueirinhas)








Cinco pequenas estórias, a ilustrar a beleza intemporal dos espaços habitados por seres humanos, enquanto espelhos das almas que os habitam. Uma mão cheia de contos, em cujo âmago extraímos o desejo de liberdade de pensamento, liberdade de expressão e liberdade de escolha.

1. A Escolha: História da Gata Borralheira

A primeira estória intitula-se, História da Gata Borralheira, debruça-se sobre a temática da Escolha, por implicar uma atitude, uma tomada de decisão que vai determinar o desenvolvimento de um personalidade, uma estrada a percorrer. O local onde decorre a acção é uma mansão de estilo apalaçado, um cenário algo hollywoodesco ou cinematográfico, mas no qual a atmosfera do luxo é envolvida pelo mistério da Noite que surge, perfumada, pelos aromas sedutores do jardim e pelo olhar vigilante da Lua, a dar um aspecto irreal ao quadro, envolvendo a casa que ocupa uma posição central, com uma espécie de halo prateado. Esta mesma luminosidade exerce sobre a protagonista, que observa a cena, partindo do exterior para o interior, uma misteriosa e inexplicável atracção.

A trama consiste numa reinvenção do conto tradicional da Cinderella ou A gata Borralheira (Versão de Perrault), mas adaptada aos anos 1940 e 1950 e com um final absolutamente inesperado, que nos é mostrado no epílogo.

A jovem protagonista, oriunda de uma família empobrecida, mas em tempos, abastada, tem um mundo de sonho diante de si, mas receia a discriminação, devido à sua condição socio-económica. Subitamente, surge-lhe e oportunidade de fugir às restrições, mas a oferta é-lhe apresentada como uma espécie de presente envenenado. Esta Cinderella conta com alguns aliados importantes e inesperados mas há a tendência para subestimá-los. A Lúcia – é assim que se chama esta falsa Gata Borralheira – são-lhe apresentadas duas formas de conseguir o que deseja: uma delas é aceitar a “ajuda” da fada madrinha; a outra é resistir, ficar ao lado daqueles que ama e conseguir os seus objectivos através de um longo, árduo e tortuoso caminho. Mas o desejo mais profundo de Lúcia é somente o reconhecimento e prestígio social e isso implica que a qualquer das soluções que se lhe apresentam estão associados ganhos e perdas, pelo que a decisão não se apresenta nada fácil.

Lúcia conta com dois fortes aliados que lhe oferecem a amizade desinteressada e o amor: a jovem do vestido cor-de-rosa – atenta e, simultaneamente, desafiadora, que não hesita em tornar-se sua amiga, apesar de ser notório que o vestido que Lúcia enverga não ter sido feito nem para o seu corpo nem par os seus gostos; e um jovem misterioso, que a convida para dançar, por lhe parecer que Lúcia não é uma mulher superficial – Lúcia olha para as estrelas e não para os vestidos das outras mulheres. Mas engana-se na avaliação dos verdadeiros motivos que estão por detrás destas atitudes exteriores.

O papel da madrinha, nesta versão atípica da Cinderella de Sophia de Mello Breyner, é o papel de uma falsa aliada, uma fada cujas atitudes mais a aproximam do papel de bruxa, uma vez que a sua ajuda tem um preço: Lúcia deve abandonar a casa dos pais, onde é feliz, mas de onde dificilmente conseguiria emergir da actual situação social, inserida numa família, outrora rica e agora remediada, mas sem dinheiro para luxos ou extravagâncias. A mesma tia, manipuladora, utiliza um método constrangedor para a pressionar a tomar a decisão que lhe convém: podendo ter-lhe proporcionado um vestido adequado à ocasião, limita-se a adaptar ao corpo de Lúcia, um vestido velho que não a favorece. Da mesma forma, Lúcia não possui os acessórios adequados. Assim, o vestido e a festa são apresentados a Lúcia como uma armadilha, onde se sente desconfortável, como um peixe fora de água. Lúcia é excluída pela aparência, melhor dizendo, pela situação sócio-económica, que é denunciada pelo traje e ela falta de à-vontade.

A estória desenvolve-se ao ritmo de valsa lenta, com frequentes momentos de pausa. O narrador desempenha o papel de observador, situando-se fora da cena propriamente dita, sem intervir no curso da estória, agindo como se fosse a própria Lua a observar a festa e os movimentos dos convidados, através das janelas que dão para o jardim.

Elementos nocturnos na narrativa: a escuridão, interrompida pela luminosidade lunar

A noite, assim como a sedução da luminosidade pálida da Lua, transmitem ao leitor uma sensação de irrealidade, fazendo-o olhar para as personagens que se movimentam na festa como se assistisse a um filme. Esta luminosidade prateada, quase espectral, envolve o cenário exterior da casa, começando por nos apresentar inicialmente um plano panorâmico, que se vai aproximando, até entrar pelas portas e janelas, permitindo-nos observar o que se passa no interior.

Como uma rapariga descalça, a noite caminha, leve e lenta sobre o jardim.

A noite caminha pelo jardim até se abeirar da entrada da casa. Tal como Lúcia. Apenas a Noite, ao contrário da protagonista está descalça, ao passo que Lúcia calça uns sapatos velhos, que não são os seus, desconfortáveis e que nada têm a ver com a indumentária (os sapatos são azuis e o vestido, lilás). O facto de a noite estar “Como uma rapariga descalça” que caminha pelo relvado implica a ausência de constrangimentos pessoais - há, aqui, uma projecção do olhar do narrador no elemento da noite, na Lua e no cenário que rodeia a casa. A sensação de estar descalça é o extremo oposto do estado de opressão em que se encontra Lúcia: é o prazer da ausência de constrangimentos sociais, da liberdade do conforto absoluto. Por outro lado, no jardim, ao contrário do interior da casa onde domina uma luminosidade feérica e artificial, mas que obriga à sujeição das normas sociais impostas pelos seus proprietários, naquele jardim, a dualidade entre a luz natural e as sombras convida ao sonho, à imaginação e à fantasia. Isto é, fora do interior da casa, a liberdade de pensamento e acção não tem limites. Lá “dentro” ninguém pode entrar com os sapatos desadequados e, muito menos, descalça.

A Escolha de Lúcia

Apesar da desvantagem inicial, Lúcia consegue fazer amigos, independentemente da sua situação económica, sendo estes pessoas não muito convencionais. No entanto, ignora-os. Os dois estranhos que se aproximam de Lúcia durante a festa têm os olhos fixos na Lua e no jardim. Ambos olham para além das aparências, olham para Lúcia, tal como é na realidade. Esta deseja, no entanto, conquistar, submeter, aqueles que a desprezam. Deseja o poder. Negligência o Amor e a Amizade sincera. E a maneira mais óbvia é, para si, de atrair o que quer é através do deslumbramento, usando o luxo como arma de sedução. Lúcia deseja tornar-se igual aos outros convidados. Igual não. Superior. Decide optar pela tia. Vende a alma, que a amiga do vestido cor-de-rosa lhe aconselhara a manter “livre” e sujeita-se ao despotismo da sua “benfeitora”. Ao escolher viver com a fada-bruxa-madrinha, Lúcia exerce a sua liberdade de escolha pela última vez. E escolhe o caminho mais fácil para atingir o objectivo: a escalada do poder que confere o dinheiro. O corolário do seu triunfo é atingido cerca de duas décadas mais tarde, quando exibe uns opulentos sapatos, recobertos de diamantes, que libertam centelhas multicores, deslumbram as outras mulheres, despertam a inveja, causam o espanto, pelo insólito cúmulo da extravagância. E é na noite deste baile que se consumará o seu destino e Lúcia pagará, finalmente, o preço da sua escolha.



2. O Silêncio

Na segunda estória, a Autora começa por apresentar a rotina da lida de casa numa família simples, cujas origens socio-económicas são denunciadas pela austera decoração do espaço interior daquele pequeno apartamento. Ao entrarmos na casa da protagonista, pela voz e olhar do narrador não participante e omnisciente, começamos por notar a impecável assepsia do ambiente, patente na limpeza imaculada das divisões, da cozinha em particular, à medida que acompanhamos o ritual da lavagem da louça.

A primeira parte da história concentra-se na descrição do interior da casa, perfeitamente limpo. As sensações visuais são as primeiras a assaltar-nos.

Só depois nos apercebemos do silêncio que acompanha a solidão da mulher que lava a loiça. Um silêncio, confortável no início, mas omnipresente, sobretudo ao final do dia, a sublinhar a ideia de ordem, segurança, limpeza. Um silêncio higiénico.

Na segunda parte do conto, dá-se uma ruptura: o absoluto silêncio nocturno é subitamente quebrado por um grito.

Um longo grito agudo, desmedido. Um grito que atravessava as paredes, as portas, a sala, os ramos de cedro.

A partir daquele momento, a heroína lavadora de loiça, Joana, sente o medo abater-se sobre ela como uma avalanche, despoletada pelo som da voz abafada que vai invadindo a noite, destruindo o silêncio. Quando cessa o grito, nada é como antes.

Era uma voz de mulher. Uma voz nua, desgarrada, solitária. Uma voz que, de grito em grito, se ia deformando, desfigurando, até ficar transformada em uivo. Uivo rouco e cego.

A impressionante descrição deste grito, na qual transparecem todas as nuances do desespero nele contido, faz lembrar a imagem do quadro O Grito de Münsch, a mais impressionante expressão de reacção ao horror de um holocausto.

Ao prosseguirmos a leitura, compreendemos. A mulher desconhecida grita diante dos muros da prisão, do lado oposto da rua onde mora Joana. A prisão fica mesmo diante da janela.

Percebemos que a mulher grita contra a opressão, o silêncio, imposto pela censura. A mulher diante da prisão “gritava contra o silêncio”. E contra a aparente perfeição que esconde o lixo, causado pela repressão por detrás de uma “higiene” politica.

3. A casa do mar

A estória passa-se, mais uma vez, no interior de uma casa. Neste conto, não há personagens humanas. Melhor dizendo, há, mas estão ausentes. Mas percebe-se, que a casa é habitada. Todas as divisões transpiram vida.

O mar é um tema recorrente, tanto na prosa como na poesia, de Sophia de Mello Breyner. E neste volume há duas estórias onde se faz sentir a presença do mar. Mas A Casa do Mar é única, de todas elas, onde a presença humana não intervém. Não de forma directa. No entanto, as marcas da acção humana estão presentes em todas as divisões, denunciando a vida e o amor que é colocado em todos os objectos, adivinhados.

A Autora socorre-se do léxico marítimo, como convém à descrição de uma casa situada numa aldeia de pescadores, onde se encaixa esta casa de praia, envolvida pela luz estival que é ampliada pelo reflexo da água, pelo ruído do mar, pelos cheiros marítimos e até, pelos vestígios da actividade piscatória dos habitantes locais, ao longo de todo o ano.

Mas ao descrever o interior da casa temos, por vezes, a sensação de estarmos diante de um quadro de Magritte, com as suas estranhas sobreposições e alegorias multiplicadas pelo reflexo do mar nos espelhos, que mostram a vista enviesada das janelas. Note-se que quase todas as divisões exibem um espelho a servir de multiplicador e ampliador de perspectiva. Outras vezes, estamos como que diante de uma natureza morta, como é o caso da descrição da mesa da cozinha e dos alimentos e utensílios lá depositados, quase uma projecção de uma natureza-morta como a do quadro da sala de jantar.

A descrição do jardim desta casa confere destaque aos elementos que sublinham a aliteração em V e em S, sugerindo os sons do vento e do mar após, a rebentação das ondas.

Verdes jardins sombrios e secretos cujo sussurro se funde no silêncio.

Nos quartos, cada qual com o seu conteúdo específico, a denunciar a sua funcionalidade e a personalidade dos que o habitam e respectivos gestos quotidianos.

Nesta Casa do Mar, nada é frívolo, todo o objecto tem a sua funcionalidade e é conjugado com um certo equilíbrio, dado por uma beleza simples e depurada. E pelo Saber. E pelo Amor.


Mas quem do quarto central avança pela varanda e vê, de frente, a praia, o céu, a areia, a luz e o ar, reconhece que nada ali é acaso mas sim fundamento, que este é um lugar de exaltação e espanto onde o real emerge e mostra seu rosto e sua evidência.

(…)

E tudo parece intacto e total como se ali fosse o lugar que preserva em si a força nua do primeiro dia criado.

A casa é, pois, uma espécie de paraíso, refúgio, um lugar idílico onde tudo, até mesmo na sua mais pequena imperfeição, parece perfeito.


4. Saga


Tal como o nome indica, trata-se de uma estória baseada na construção de um projecto de vida de um homem empreendedor. Este homem, oriundo de uma sombria e brumosa ilha do Norte da Europa - a ilha de Vig, terra de Vikings e marinheiros - chega um dia ao Sul do mesmo continente, impelido pelo desejo compulsivo de cruzar os mares, contrariando o desejo da família, que não queria um filho marinheiro, farta de ver o Oceano a sacrificar os melhores homens da família.

Esta arrojada personagem é, muito provavelmente, inspirada no avô de Sophia, cujos antepassados seriam naturais da terra de Hans Christian Andersen.

O clima hostil, sombrio e algo selvagem da ilha de Vig, no mar do Norte, é apenas um dos muitos obstáculos que se deparam à frente do protagonista ao longo da vida, atravessando várias gerações da mesma família, o que confere à estória a característica de “saga. Trata-se, pois, do percurso de um jovem dinamarquês, Hans, o qual constrói o próprio império depois de se estabelecer numa cidade que, pela luminosidade, características dos edifícios, proximidade junto ao mar ou ao rio e pela relação com o comércio marítimo, poderia ser o Porto. Ali reconhecemos facilmente a descrição da Ribeira e os barcos que transportam o produto das vinhas ao longo do rio. Mas poderia também referir-se a uma outra cidade portuária na Europa, em Itália, ou no Sul de França, por exemplo.

Hans acaba por constituir família naquela cidade de luminosidade branda, por vezes sombria, mas sem esquecer as suas raízes no Norte da Europa. O spleen de Hans é típico de quem sofre a saudade crónica experimentada por todos aqueles que vivem no exílio, já que está proibido de voltar a casa. Hans é, a partir do momento da sua sedentarização no Sul, um marinheiro em terra, atracado ao mundo dos negócios, mas contaminado pela saudade. Trata-se de um homem que vive e morre no exílio, tal como um barco que naufraga em alto mar, sem jamais conseguir regressar a casa.

Mais uma vez há um espaço interior que é descrito como um lugar de refúgio e acolhimento, sendo destacado, tal como acontece nas estórias anteriores: a mansão onde se refugia Hans, após ter enriquecido e que é, em tudo, semelhante à Casa Vermelha, onde viveu a Autora com a sua família.

No final, encontramos um Hans cristalizado, aprisionado no tempo, à medida que os anos passam. O herói, descendente de vikings, congela os seus desejos mais ardentes no passado – reencontrar a família – acabando prisioneiro do próprio tempo, o mesmo receio que atormentava o filósofo alemão Martin Heidegger. Ao ser engolido pelo tempo, o desejo maior de Hans, voltar a ver os pais, torna-se intemporal, porque impossível de se concretizar numa vida terrena. Daí o naufrágio das expectativas. A História de uma vida, marcada por uma felicidade é ensombrada por nuvens de tempestade num mar cinzento e revolto...

5. Vila d'Arcos

No último conto desta mini-antologia, a Autora descreve-nos a tranquilidade aparente de uma pequena povoação do nordeste transmontano, onde o tempo parece ter parado. Onde tudo permanece imutável, sem acompanhar a evolução dos tempos ou sem ser afectada por esta. Os seus habitantes parecem como que isolados do mundo, facto que se encontra patente em todos os aspectos do quotidiano, desde a forma de trabalhar até ao vestuário das mulheres, aos rituais, à rotina, às fórmulas de devoção religiosa. Ali, nada perece mudar e tudo parece eterno:

É uma cidade antiga onde, estagnada, se desagrega e se dissolve (…) uma vida desvivida, gesto por gesto, sílaba por sílaba.

Uma cidade habitada por sibilas, vestidas de negro, vagueiam e tudo vêem, abarcando a vida de todos com o olhar. Uma povoação que se caracteriza como todo o Portugal rural do Norte: onde pululam verdes jardins, silêncios e perfumes da terra, conservando a essência do primitivismo, algo medieval, do lugar. E onde as fachadas das casas e as janelas têm – todas elas – olhos vigilantes.

Aqui parece pairar um sentimento dominante de irrealidade, ampliada pelo isolamento face ao ruído do longínquo mundo urbano. Mais um refúgio aparentemente perfeito. Mas tal como no conto O Silêncio existe, também, o reverso da medalha. Aqui há:

Jardins onde reconhecem que a vida é um sonho do qual jamais acordamos, mas onde tudo se transforma em esquecimento, distância, impossibilidade e detrito. Jardins onde reconhecemos que a nossa condição é não saber. É não poder jamais encontrar a unidade. É encontrar a unidade sem acordar.

Esta é, ao que tudo indica, a estória que descreve a alma de uma Eva para quem os limites do Paraíso serão sempre as grades de uma prisão.

Cláudia de Sousa Dias

30.05.2011

4 Comments:

Blogger CNS said...

Tantas memórias que me trouxeste, Cláudia! :)

2:53 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

:-)foi um livro de que gostei muito. Amei sobretudo as quatro últimas estórias.

A primeira gosto, mas não tanto quanto as outras. Talvez por ser um remake.

csd

2:56 PM  
Blogger P said...

Já li, já li com alunos. Sempre bom.

10:10 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

pois é...


csd

7:55 PM  

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