“Histórias da Terra e do Mar” de Sophia de Melo Breyner Andresen (Figueirinhas)
Cinco pequenas estórias, a ilustrar a beleza intemporal dos espaços habitados por seres humanos, enquanto espelhos das almas que os habitam. Uma mão cheia de contos, em cujo âmago extraímos o desejo de liberdade de pensamento, liberdade de expressão e liberdade de escolha.
1. A Escolha: História da Gata Borralheira
A primeira estória intitula-se, História da Gata
Borralheira, debruça-se sobre a temática da Escolha, por implicar uma atitude, uma tomada de decisão que vai
determinar o desenvolvimento de um personalidade, uma estrada a percorrer. O
local onde decorre a acção é uma mansão de estilo apalaçado, um cenário algo
hollywoodesco ou cinematográfico, mas no qual a atmosfera do luxo é envolvida
pelo mistério da Noite que surge, perfumada, pelos aromas sedutores do jardim e
pelo olhar vigilante da Lua, a dar um aspecto irreal ao quadro, envolvendo a
casa que ocupa uma posição central, com uma espécie de halo prateado. Esta
mesma luminosidade exerce sobre a protagonista, que observa a cena, partindo do
exterior para o interior, uma misteriosa e inexplicável atracção.
A trama consiste numa reinvenção do conto tradicional da Cinderella
ou A gata Borralheira (Versão de Perrault), mas adaptada aos anos 1940 e 1950 e
com um final absolutamente inesperado, que nos é mostrado no epílogo.
A jovem protagonista, oriunda de
uma família empobrecida, mas em tempos, abastada, tem um mundo de sonho diante
de si, mas receia a discriminação, devido à sua condição socio-económica.
Subitamente, surge-lhe e oportunidade de fugir às restrições, mas a oferta
é-lhe apresentada como uma espécie de presente envenenado. Esta Cinderella
conta com alguns aliados importantes e inesperados mas há a tendência para
subestimá-los. A Lúcia – é assim que se chama esta falsa Gata Borralheira –
são-lhe apresentadas duas formas de conseguir o que deseja: uma delas é aceitar
a “ajuda” da fada madrinha; a outra é resistir, ficar ao lado daqueles que ama
e conseguir os seus objectivos através de um longo, árduo e tortuoso caminho.
Mas o desejo mais profundo de Lúcia é somente o reconhecimento e prestígio
social e isso implica que a qualquer das soluções que se lhe apresentam estão
associados ganhos e perdas, pelo que a decisão não se apresenta nada fácil.
Lúcia conta com dois fortes
aliados que lhe oferecem a amizade desinteressada e o amor: a jovem do vestido
cor-de-rosa – atenta e, simultaneamente, desafiadora, que não hesita em
tornar-se sua amiga, apesar de ser notório que o vestido que Lúcia enverga não
ter sido feito nem para o seu corpo nem par os seus gostos; e um jovem
misterioso, que a convida para dançar, por lhe parecer que Lúcia não é uma
mulher superficial – Lúcia olha para as estrelas e não para os vestidos das
outras mulheres. Mas engana-se na avaliação dos verdadeiros motivos que estão
por detrás destas atitudes exteriores.
O papel da madrinha, nesta versão
atípica da Cinderella de Sophia de Mello Breyner, é o papel de
uma falsa aliada, uma fada cujas atitudes mais a aproximam do papel de bruxa,
uma vez que a sua ajuda tem um preço: Lúcia deve abandonar a casa dos pais,
onde é feliz, mas de onde dificilmente conseguiria emergir da actual situação
social, inserida numa família, outrora rica e agora remediada, mas sem dinheiro
para luxos ou extravagâncias. A mesma tia, manipuladora, utiliza um método constrangedor
para a pressionar a tomar a decisão que lhe convém: podendo ter-lhe
proporcionado um vestido adequado à ocasião, limita-se a adaptar ao corpo de
Lúcia, um vestido velho que não a favorece. Da mesma forma, Lúcia não possui os
acessórios adequados. Assim, o vestido e a festa são apresentados a Lúcia como
uma armadilha, onde se sente desconfortável, como um peixe fora de água. Lúcia
é excluída pela aparência, melhor dizendo, pela situação sócio-económica, que é
denunciada pelo traje e ela falta de à-vontade.
A estória desenvolve-se ao ritmo
de valsa lenta, com frequentes momentos de pausa. O narrador desempenha o papel
de observador, situando-se fora da cena propriamente dita, sem intervir no
curso da estória, agindo como se fosse a própria Lua a observar a festa e os
movimentos dos convidados, através das janelas que dão para o jardim.
Elementos nocturnos na
narrativa: a escuridão, interrompida pela luminosidade lunar
A noite, assim como a sedução da
luminosidade pálida da Lua, transmitem ao leitor uma sensação de irrealidade,
fazendo-o olhar para as personagens que se movimentam na festa como se
assistisse a um filme. Esta luminosidade prateada, quase espectral, envolve o
cenário exterior da casa, começando por nos apresentar inicialmente um plano
panorâmico, que se vai aproximando, até entrar pelas portas e janelas,
permitindo-nos observar o que se passa no interior.
Como uma rapariga descalça, a
noite caminha, leve e lenta sobre o jardim.
A noite caminha pelo jardim até se
abeirar da entrada da casa. Tal como Lúcia. Apenas a Noite, ao contrário da
protagonista está descalça, ao passo que Lúcia calça uns sapatos velhos, que
não são os seus, desconfortáveis e que nada têm a ver com a indumentária (os
sapatos são azuis e o vestido, lilás). O facto de a noite estar “Como uma
rapariga descalça” que caminha pelo relvado implica a ausência de
constrangimentos pessoais - há, aqui, uma projecção do olhar do narrador no
elemento da noite, na Lua e no cenário que rodeia a casa. A sensação de estar
descalça é o extremo oposto do estado de opressão em que se encontra Lúcia: é o
prazer da ausência de constrangimentos sociais, da liberdade do conforto
absoluto. Por outro lado, no jardim, ao contrário do interior da casa onde
domina uma luminosidade feérica e artificial, mas que obriga à sujeição das
normas sociais impostas pelos seus proprietários, naquele jardim, a dualidade
entre a luz natural e as sombras convida ao sonho, à imaginação e à fantasia.
Isto é, fora do interior da casa, a liberdade de pensamento e acção não tem
limites. Lá “dentro” ninguém pode entrar com os sapatos desadequados e, muito
menos, descalça.
A Escolha de Lúcia
Apesar da desvantagem inicial,
Lúcia consegue fazer amigos, independentemente da sua situação económica, sendo
estes pessoas não muito convencionais. No entanto, ignora-os. Os dois estranhos
que se aproximam de Lúcia durante a festa têm os olhos fixos na Lua e no
jardim. Ambos olham para além das aparências, olham para Lúcia, tal como é na
realidade. Esta deseja, no entanto, conquistar, submeter, aqueles que a
desprezam. Deseja o poder. Negligência o Amor e a Amizade sincera. E a maneira
mais óbvia é, para si, de atrair o que quer é através do deslumbramento, usando
o luxo como arma de sedução. Lúcia deseja tornar-se igual aos outros
convidados. Igual não. Superior. Decide optar pela tia. Vende a alma, que a
amiga do vestido cor-de-rosa lhe aconselhara a manter “livre” e sujeita-se ao
despotismo da sua “benfeitora”. Ao escolher viver com a fada-bruxa-madrinha,
Lúcia exerce a sua liberdade de escolha pela última vez. E escolhe o caminho
mais fácil para atingir o objectivo: a escalada do poder que confere o
dinheiro. O corolário do seu triunfo é atingido cerca de duas décadas mais
tarde, quando exibe uns opulentos sapatos, recobertos de diamantes, que
libertam centelhas multicores, deslumbram as outras mulheres, despertam a
inveja, causam o espanto, pelo insólito cúmulo da extravagância. E é na noite
deste baile que se consumará o seu destino e Lúcia pagará, finalmente, o preço
da sua escolha.
2. O
Silêncio
Na segunda estória, a Autora
começa por apresentar a rotina da lida de casa numa família simples, cujas
origens socio-económicas são denunciadas pela austera decoração do espaço
interior daquele pequeno apartamento. Ao entrarmos na casa da protagonista,
pela voz e olhar do narrador não participante e omnisciente, começamos por
notar a impecável assepsia do ambiente, patente na limpeza imaculada das
divisões, da cozinha em particular, à medida que acompanhamos o ritual da
lavagem da louça.
A primeira parte da história
concentra-se na descrição do interior da casa, perfeitamente limpo. As
sensações visuais são as primeiras a assaltar-nos.
Só depois nos apercebemos do
silêncio que acompanha a solidão da mulher que lava a loiça. Um silêncio,
confortável no início, mas omnipresente, sobretudo ao final do dia, a sublinhar
a ideia de ordem, segurança, limpeza. Um silêncio higiénico.
Na segunda parte do conto, dá-se
uma ruptura: o absoluto silêncio nocturno é subitamente quebrado por um grito.
Um longo grito agudo,
desmedido. Um grito que atravessava as paredes, as portas, a sala, os ramos de
cedro.
A partir daquele momento, a
heroína lavadora de loiça, Joana, sente o medo abater-se sobre ela como uma
avalanche, despoletada pelo som da voz abafada que vai invadindo a noite,
destruindo o silêncio. Quando cessa o grito, nada é como antes.
Era uma voz de mulher. Uma voz
nua, desgarrada, solitária. Uma voz que, de grito em grito, se ia deformando,
desfigurando, até ficar transformada em uivo. Uivo rouco e cego.
A impressionante descrição deste
grito, na qual transparecem todas as nuances do desespero nele contido, faz
lembrar a imagem do quadro O Grito de Münsch, a mais
impressionante expressão de reacção ao horror de um holocausto.
Ao prosseguirmos a leitura,
compreendemos. A mulher desconhecida grita diante dos muros da prisão, do lado
oposto da rua onde mora Joana. A prisão fica mesmo diante da janela.
Percebemos que a mulher grita
contra a opressão, o silêncio, imposto pela censura. A mulher diante da prisão
“gritava contra o silêncio”. E contra a aparente perfeição que esconde o lixo,
causado pela repressão por detrás de uma “higiene” politica.
3. A
casa do mar
A estória passa-se, mais uma vez,
no interior de uma casa. Neste conto, não há personagens humanas. Melhor
dizendo, há, mas estão ausentes. Mas percebe-se, que a casa é habitada. Todas
as divisões transpiram vida.
O mar é um tema recorrente, tanto
na prosa como na poesia, de Sophia de Mello Breyner. E neste volume há
duas estórias onde se faz sentir a presença do mar. Mas A Casa do Mar é
única, de todas elas, onde a presença humana não intervém. Não de forma
directa. No entanto, as marcas da acção humana estão presentes em todas as
divisões, denunciando a vida e o amor que é colocado em todos os objectos,
adivinhados.
A Autora socorre-se do léxico
marítimo, como convém à descrição de uma casa situada numa aldeia de
pescadores, onde se encaixa esta casa de praia, envolvida pela luz estival que
é ampliada pelo reflexo da água, pelo ruído do mar, pelos cheiros marítimos e
até, pelos vestígios da actividade piscatória dos habitantes locais, ao longo
de todo o ano.
Mas ao descrever o interior da
casa temos, por vezes, a sensação de estarmos diante de um quadro de Magritte,
com as suas estranhas sobreposições e alegorias multiplicadas pelo reflexo do
mar nos espelhos, que mostram a vista enviesada das janelas. Note-se que quase
todas as divisões exibem um espelho a servir de multiplicador e ampliador de
perspectiva. Outras vezes, estamos como que diante de uma natureza morta, como
é o caso da descrição da mesa da cozinha e dos alimentos e utensílios lá
depositados, quase uma projecção de uma natureza-morta como a do quadro da sala
de jantar.
A descrição do jardim desta casa
confere destaque aos elementos que sublinham a aliteração em V e em S,
sugerindo os sons do vento e do mar após, a rebentação das ondas.
Verdes jardins sombrios e
secretos cujo sussurro se funde no silêncio.
Nos quartos, cada qual com o seu
conteúdo específico, a denunciar a sua funcionalidade e a personalidade dos que
o habitam e respectivos gestos quotidianos.
Nesta Casa do Mar, nada é frívolo,
todo o objecto tem a sua funcionalidade e é conjugado com um certo equilíbrio,
dado por uma beleza simples e depurada. E pelo Saber. E pelo Amor.
Mas quem do quarto central
avança pela varanda e vê, de frente, a praia, o céu, a areia, a luz e o ar,
reconhece que nada ali é acaso mas sim fundamento, que este é um lugar de
exaltação e espanto onde o real emerge e mostra seu rosto e sua evidência.
(…)
E tudo parece intacto e total
como se ali fosse o lugar que preserva em si a força nua do primeiro dia criado.
A casa é, pois, uma espécie de
paraíso, refúgio, um lugar idílico onde tudo, até mesmo na sua mais pequena
imperfeição, parece perfeito.
4. Saga
Tal como o nome indica, trata-se
de uma estória baseada na construção de um projecto de vida de um homem
empreendedor. Este homem, oriundo de uma sombria e brumosa ilha do Norte da
Europa - a ilha de Vig, terra de Vikings e marinheiros - chega um dia ao Sul do
mesmo continente, impelido pelo desejo compulsivo de cruzar os mares,
contrariando o desejo da família, que não queria um filho marinheiro, farta de
ver o Oceano a sacrificar os melhores homens da família.
Esta arrojada personagem é, muito
provavelmente, inspirada no avô de Sophia,
cujos antepassados seriam naturais da terra de Hans Christian Andersen.
O clima hostil, sombrio e algo
selvagem da ilha de Vig, no mar do Norte, é apenas um dos muitos obstáculos que
se deparam à frente do protagonista ao longo da vida, atravessando várias
gerações da mesma família, o que confere à estória a característica de “saga. Trata-se,
pois, do percurso de um jovem dinamarquês, Hans, o qual constrói o próprio
império depois de se estabelecer numa cidade que, pela luminosidade,
características dos edifícios, proximidade junto ao mar ou ao rio e pela
relação com o comércio marítimo, poderia ser o Porto. Ali reconhecemos
facilmente a descrição da Ribeira e os barcos que transportam o produto das
vinhas ao longo do rio. Mas poderia também referir-se a uma outra cidade
portuária na Europa, em Itália, ou no Sul de França, por exemplo.
Hans acaba por constituir família
naquela cidade de luminosidade branda, por vezes sombria, mas sem esquecer as
suas raízes no Norte da Europa. O spleen de Hans é típico de quem sofre
a saudade crónica experimentada por todos aqueles que vivem no exílio, já que
está proibido de voltar a casa. Hans é, a partir do momento da sua
sedentarização no Sul, um marinheiro em terra, atracado ao mundo dos negócios,
mas contaminado pela saudade. Trata-se de um homem que vive e morre no exílio,
tal como um barco que naufraga em alto mar, sem jamais conseguir regressar a
casa.
Mais uma vez há um espaço interior
que é descrito como um lugar de refúgio e acolhimento, sendo destacado, tal
como acontece nas estórias anteriores: a mansão onde se refugia Hans, após ter
enriquecido e que é, em tudo, semelhante à Casa Vermelha, onde viveu a Autora
com a sua família.
No final, encontramos um Hans cristalizado,
aprisionado no tempo, à medida que os anos passam. O herói, descendente de
vikings, congela os seus desejos mais ardentes no passado – reencontrar a
família – acabando prisioneiro do próprio tempo, o mesmo receio que atormentava
o filósofo alemão Martin Heidegger. Ao ser engolido pelo tempo, o desejo
maior de Hans, voltar a ver os pais, torna-se intemporal, porque impossível de
se concretizar numa vida terrena. Daí o naufrágio das expectativas. A História
de uma vida, marcada por uma felicidade é ensombrada por nuvens de tempestade
num mar cinzento e revolto...
5.
Vila
d'Arcos
No último conto desta
mini-antologia, a Autora descreve-nos a tranquilidade aparente de uma pequena
povoação do nordeste transmontano, onde o tempo parece ter parado. Onde tudo
permanece imutável, sem acompanhar a evolução dos tempos ou sem ser afectada
por esta. Os seus habitantes parecem como que isolados do mundo, facto que se
encontra patente em todos os aspectos do quotidiano, desde a forma de trabalhar
até ao vestuário das mulheres, aos rituais, à rotina, às fórmulas de devoção
religiosa. Ali, nada perece mudar e tudo parece eterno:
É uma cidade antiga onde,
estagnada, se desagrega e se dissolve (…) uma vida desvivida, gesto por gesto,
sílaba por sílaba.
Uma cidade habitada por sibilas,
vestidas de negro, vagueiam e tudo vêem, abarcando a vida de todos com o olhar.
Uma povoação que se caracteriza como todo o Portugal rural do Norte: onde
pululam verdes jardins, silêncios e perfumes da terra, conservando a essência
do primitivismo, algo medieval, do lugar. E onde as fachadas das casas e as
janelas têm – todas elas – olhos vigilantes.
Aqui parece pairar um sentimento
dominante de irrealidade, ampliada pelo isolamento face ao ruído do longínquo
mundo urbano. Mais um refúgio aparentemente perfeito. Mas tal como no conto O Silêncio existe, também, o reverso da
medalha. Aqui há:
Jardins onde reconhecem que a
vida é um sonho do qual jamais acordamos, mas onde tudo se transforma em
esquecimento, distância, impossibilidade e detrito. Jardins onde reconhecemos
que a nossa condição é não saber. É não poder jamais encontrar a unidade. É
encontrar a unidade sem acordar.
Esta é, ao que tudo indica, a
estória que descreve a alma de uma Eva para quem os limites do Paraíso serão
sempre as grades de uma prisão.
Cláudia de Sousa Dias
30.05.2011
4 Comments:
Tantas memórias que me trouxeste, Cláudia! :)
:-)foi um livro de que gostei muito. Amei sobretudo as quatro últimas estórias.
A primeira gosto, mas não tanto quanto as outras. Talvez por ser um remake.
csd
Já li, já li com alunos. Sempre bom.
pois é...
csd
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