“A Criança em Ruínas” de José Luís Peixoto (Quetzal, Quasi, )
A temática relacionada com a perda e o desmoronar da felicidade
perfeita da infância, semelhante à expulsão do paraíso dourado, um reduto que
parece estar apenas reservado aos mais jovens, é a temática desenvolvida pelo
Autor desenvolve em A Criança em Ruínas.
A inspiração, vinda do Livro do Génesis, serve de pretexto para explorar a eterna questão da busca
da felicidade, que nunca será total, uma vez que as circunstâncias temporais
dos momentos perfeitos nunca se repetem. Esta é a linha que norteia o discurso
da obra de José Luís Peixoto e do
homem que se oculta por debaixo dos escombros, num título tão intrigante como A
Criança em Ruínas.
A desintegração/dispersão da família mais próxima, num primeiro
tempo que compõe esta obra tripartida, culmina com a morte da figura de
referência central: o pai. Depois, segue-se o processo do luto e o percurso do
caminho inverso – o regresso do limiar dos infernos –, onde o Poeta não
consegue resistir ao apelo da vida, exterior aos muros do edifício parental, em
ruínas. Por último, o encontro com o amor como forma de redenção após o que se
segue, de novo, uma perda.
O primeiro poema, intitulado Arte
Poética serve de introdução, à laia de prefácio, ao conteúdo propriamente
dito. Nele, o Autor explica não só o próprio conceito de poesia como também o
caminho percorrido no sentido de transformar a escrita em arte. Esse caminho é
calcetado de emoções. E a emoção sentida expressa-se como forma de arte, cuja
meta é causar no leitor o impacto de um meteoro ao embater no planeta. Neste
caso é um meteoro que provoca ondas de choque emocionais, arrancando o Homem a
uma asséptica e doentia indiferença.
A visão do Autor acerca da vida e dos afectos aproxima-se muito
da do estridentismo – movimento artístico surgido nos anos trinta, do qual
fazia parte Frida Kahlo – onde “O poema não tem mais do que o som do seu
sentido” - , ou seja, é fruto dos diversos sentidos ou significados emocionais
que desperta no leitor.
Na primeira parte, a poesia de José Luís Peixoto traça um cenário idílico, embora já distante no
tempo, arrancado aos arquivos da memória; a mesma poesia é identificada com a
idade áurea onde tudo é perfeito, onde tudo é dado, oferecido, onde a
felicidade é absoluta, mas da qual só se toma consciência depois de perdida.
Aqui é introduzido o elemento ou o travo a tragédia, à maneira dos clássicos, em
simultâneo com a intertextualidade com a Bíblia com a alusão ao mito da expulsão
do paraíso, como alegoria ao ciclo da vida humana. A poesia é, assim, para o
Poeta a memória do tempo da felicidade e do amor que já não estão presentes,
nascendo da evocação de momentos perfeitos, mas cristalizados no Tempo e
ofertados pelos deuses, sempre que estes decidem ser generosos.
Desta forma, o poema não surge unicamente de uma intenção
estética, de jogos de palavras sem sentido, mas como fruto do amor, em todas as
suas formas de expressão. E, na primeira parte deste volume tripartido, o foco
situa-se na desintegração do universo familiar pela erosão do Tempo como podemos
constatar mo poema:
“na hora de pôr a mesa éramos cinco…
(…)
enquanto
um de nós estiver vivo, seremos sempre cinco”.
O Autor mostra-nos que o casamento e a morte são os principais
agentes que actuam em conspiração com o Tempo e, com ele, colaboram na
diminuição do número de presenças físicas à mesa. No entanto, os lugares
vazios, os espaços ocupados tradicionalmente por cada um continuam lá, a
sublinhar a presença de quem já não está mas cujos traços se encontram gravados
na memória e no quotidiano das presenças físicas. A ausência só se torna,
assim, presença pelo recurso à memória, a qual por sua vez é veiculada pela
saudade.
As anáforas sublinham sentimentos de perda como badaladas
fúnebres, a marcar o ritmo da leitura, ditando o compasso e ampliando a
dimensão do páthos. Daqui surge o
desejo de imortalidade, que se imprime na escrita, como herança a deixar às
gerações vindouras. O término do ciclo é marcado por uma certa desorientação ou
desolação, face a um futuro onde falta a principal figura de referência, à qual
a palavra “partilha” deixou de fazer sentido.
Na segunda parte descreve-se, como já foi referido, o caminho de
regresso das imediações do Hades, estrada a partir da qual o Poeta observa, em
atitude contemplativa, as mais obscuras profundezas da alma humana. A pontuação
sincopada como que segmenta alguns dos textos, dividindo sintagmas, cortando
frases, dissecando-as e seccionando o ritmo da leitura. Ao mesmo tempo, é
enfatizado o sentido emocional do poema, ao dotar-se o texto poético da aura
trágica, característica dos clássicos, como se pode ler no poema da página 39 “espelho, és a terra onde as raízes rebentam
de mistérios”.
Apesar de tudo, o chamamento da vida sobrepõe-se ao lado sombrio
da personalidade do Poeta cuja juventude e vitalidade o impele para o Sol, para
a Luz e para a felicidade porque, o Poeta é, afinal, antes de tudo, amante da
vida e do Belo… Como todos os poetas. Ao lermos “A primavera chegou antes do tempo a esta sala” percebemos que o
apelo da vida, do lado de fora das paredes e das sombras a entrar pela janela,
distraem o pensamento da dor, dissolvendo-a, ao mesmo tempo que dificultam a
introspecção. É aqui chegado o momento em que o intui a vinda do amor que
afasta o Inverno. Mas enquanto este não chega, a beleza e a felicidade são
cantadas estridentemente pala natureza que se abre à vida e ao prazer e
agudiza, ainda mais, a mágoa de uma alma que se encontra doente…
“…a minha dor é esta primavera que nasce e me mostra
que o
inverno se instalou definitivamente dentro de mim”.
No poema que descreve a atitude da personagem, sentada na
cadeira do alpendre a ver cair a chuva, o discurso poético lembra o “Monólogo de Isabel vendo chover em Macondo”
e a fase melancólica da escrita de Gabriel
García Márquez em “Olhos de cão Azul”,
onde a melancolia é a tonalidade emocional dominante.
“Eu sou um céu morto. Venceu-me o inverno e eu luto a seu lado
para me
destruir.
nunca fui criança. Nunca encontrei ingenuidade ou arrependimento.”
Aqui, o chamamento da vida e do quotidiano nesta fase de “A
Criança em Ruínas” implica a prossecução de um caminho marcado pela
errância, o caminhar às cegas, numa procura incessante da felicidade: a porta
secreta para ao paraíso.
A terceira parte fala de um amor erótico e sublime, o qual
pressupõe a quase que idolatria do ser amado e uma a admiração incondicional,
aliada à vulnerabilidade de um eu submisso e deslumbrado”.
“…o amor é saber
que
existe uma parte de nós que deixou de nos pertencer.
o
amor é saber que vamos perdoar tudo a essa
parte
de nós que já não é nossa”.
O lirismo toma posse da alma do Poeta, onde tudo parece ser,
mais uma vez, perfeito, num cenário sempre idílico para os amantes. O vislumbre
do acesso ao paraíso perdido. Ou do seu sucedâneo. Aqui homenageia-se o amor
sublime que vitimou Inês de Castro, num poema de destruição pelas Fúrias que,
por vezes, se servem de mão humana para, assim, privarem os mortais do acesso a
uma felicidade perfeita. Um prelúdio ao conteúdo dos textos que se seguem e giram
à volta, não de sujeitos históricos, mas de figuras anónimas. O presságio de
mais um episódio de perda que será, e de
uma felicidade novamente perdida que será, então, idealizada e cristalizada,
imbuída de uma aura de perfeição,pela acção selectiva da memória.
A saudade tinge-se, então, de melancolia e aflora ao âmago do
Poeta pela evocação do bem-estar, associado à presença do sol de Estio. Como
contraponto, a chuva despoleta um estado de espírito propenso à melancolia e ao
spleen
de cariz baudelairiano.
A recordação de um primeiro amor de adolescente surge como um
bálsamo e, a procura do sexo, como paliativo para mitigar o desânimo, são os
elementos que compõem a criança em ruínas que é o adulto, cujos sonhos se
liquefazem:
“esse filho só de sangue que te escorre pelas pernas
sou
eu…”
Segue-se, mais uma vez, o caminho de errância, ditado pelas
Parcas. O Poeta terá de percorrê-lo, acompanhado da solidão que arde em fogo
lento e o obriga ao um longo e moroso processo da reconstrução do edifício de
uma felicidade arruinada, um trabalho incessante e inglório…
“…amor e morte: fingir que está tudo bem: ter de sorrir: um
oceano
que nos queima, um incêndio que nos afoga”.
Ociclo da vida. O eterno retorno. Um incessante recomeço a
partir das ruínas.
A “criança” chama-se Sísifo.
Cláudia de Sousa Dias
Publicado originalmente em "orgialiteraria" em 2010.
5 Comments:
Está a falhar-me Peixoto, tenho de encontrar tempo para o ler nas próximas décadas ;) Soberba crítica, como sempre!
Beijinhos, bom domingo!
Madalena
Já me faltava cá a tua presença...beijos
csd
Gostei muito. Da crítica e do livro de JLP.
abraço
<obrigada, Bau. Hoje irá ser postada mais alguma coisa. Já é tempo.
Abraço.
<obrigada, Bau. Hoje irá ser postada mais alguma coisa. Já é tempo.
Abraço.
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