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Thursday, July 12, 2012

“Sinais de Fogo” de Jorge de Sena (Guimarães)




com prefácio de Mécia de Sena


Enquadrado no contexto histórico da Guerra Civil Espanhola, este romance de estrutura épica seria, originalmente, a primeira parte de uma saga, cuja sequela nunca chegou a ser concluída, por uma série de vicissitudes da vida pessoal do escritor que o levaram a adiar durante décadas o projecto.

A Guerra Civil, que emoldura a trama central, é a mola impulsionadora do romance, tendo deflagrado em Espanha, após a tentativa malograda de golpe de Estado, contra a chamada Segunda República Espanhola (vide wikipedia). A mesma guerra terá durado três anos (1936-1939), tendo terminado com a vitória dos poucos revoltosos e a instauração de um regime ditatorial de carácter fascista, à semelhança do que acontecia em Itália, encabeçado pelo General Francisco Franco.

O século que havia precedido os acontecimentos de que falamos, tinha sido um período assaz turbulento no país vizinho, profundamente marcado por lutas entre liberais (palavra que é usada com um sentido oposto àquele que lhe é atribuído hoje em dia) e absolutistas (tal como acontecera em Portugal) e, mais tarde, entre monárquicos e republicanos, no contexto da perda das colónias americanas e filipinas. A economia espanhola sofre, no período da belle époque e na viragem do século, uma aceleração, com a expansão das industrias mineira e metalúrgica, sobretudo durante a Primeira Guerra Mundial. O resultado desse crescimento no país vizinho, não se reflectiu, no entanto, na mudança das condições sociais. A agricultura continuava a ser dominada por grandes latifundiários, os quais, mesmo assim, deixavam grandes extensões de terra por cultivar. Por outro lado, a Igreja tomava o partido destas élites agrárias, opondo-se às reformas sociais. Por último, a monarquia espanhola apoiava-se no poder militar para manter o regime.
Entretanto, ao mesmo tempo que crescia a economia, crescia também o movimento operário. O anarquismo tornou-se então a tendência política mais defendida pelos trabalhadores. O conflito entre classes torna-se cada vez mais recorrente – e frequente – num crescendum de violência com ambas as facções a assumir atitudes extremistas dos dois lados da contenda. Da oposição ao governo usurpador, grupos de militantes sindicalistas assassinam também religiosos, invadindo conventos e igrejas bem como industriais suspeitos de apoiar grupos de extermínio. As insurreições armadas de ambos os lados tornam-se frequentes. Entre 1937 e 1938 os republicanos fazem uma ofensiva em direcção a Teruel, recuperada depois pelos franquistas. As interferências francesa e britânica só conseguem deitar ainda mais achas para a fogueira do ódio civil entre duas formas de sistema político opostas, uma vez que a principal preocupação das maiores potências económicas europeias consistiu apenas em impedir o avanço de uma Frente Comunista na Europa Ocidental e não assumir como prioridade o impedimento das atrocidades ou o atenuar a injustiça social dentro da Península Ibérica. Em 1939, o poder cai definitivamente nas mãos dos franquistas ,cuja política é apoiada pelo chefe máximo do Governo Português de então: António de Oliveira Salazar.

Quanto à dimensão religiosa do conflito, o liberalismo em Espanha tinha assumido uma acção violentamente anti-clerical durante todo o século XIX, obtendo como resultado a identificação da Igreja com a extrema direita espanhola, incitando e apoiando a ofensiva concertada face ao radicalismo de esquerda em particular e aos ideais do socialismo em geral.

A Guerra Civil Espanhola envolveu dois contingentes militares compostos pela Frente Popular, que incluía as facções mais extremistas de esquerda como o comunismo e o anarquismo, mas também o governo liberal-democrático eleito, bem como os nacionalistas da Galiza, do País Basco e da Catalunha, o quais defendiam a legitimidade do regime que se tinha instalado recentemente – a República, instaurada em 1931 – e os respectivos estatutos de autonomia.; do outro lado, lutavam os Nacionalistas, grupo composto pelos monárquicos, pelos falangistas e militares da extrema direita, tendo como líderes o general José Sanjurgo – morto acidentalmente durante uma visita a Portugal – e Francisco Franco.

A sublevação de ideologia fascista visava impedir, custasse o que custasse, as instituições republicanas de se consolidarem de maneira estável e permanente. Da mesma forma, tentavam também impedir que o governo democrático fosse implementado por uma facção de esquerda e realizasse as profundas reformas económicas, jurídicas e políticas a que se tinha proposto. Aliada à Igreja, ao Exército e as latifundiários, esta facção nacionalista tinha como principal objectivo a implementação de um regime de inspiração fascista em Espanha. Apesar disso, muitos historiadores são de opinião que o franquismo não foi, de facto, um regime fascista no sentido purista do termo, uma vez que não se tratou de um regime político fundado com o apoio da quase totalidade das massas, sendo implementado sem preconizar uma política de massas propriamente dita – como sucedeu, por exemplo, com o caso alemão – e sem a mobilização permanente dos seus partidários para além de, também, não ter havido o envolvimento de uma burguesia emergente. Mas mesmo antes da queda dos regimes de Hitler e Mussolini, em 1945, o regime de Franco acabou por adquirir a forma de uma ditadura pessoal, apoiada pelos grupos que compunham as classes dominantes tradicionais, muito à semelhança do sucedido no Portugal salazarista.

As tropas republicanas em Espanha receberam ajuda internacional da antiga União Soviética e de Brigadas Internacionais compostas por militares de frentes socialistas e comunistas de todo o mundo. Foram vários os intelectuais americanos e europeus que apoiaram esta facção. O mais conhecido foi Ernest Hemingway, a que se juntaram George Orwell (Inglaterra), André Malraux e Antoine Saint-Éxupery (França) e, também a matemática francesa e católica, Simone Weil.. Os governos de França e Inglaterra uniram-se fora do conflito, impondo contudo um embargo à venda de armas àquele país. Os nacionalistas recebiam, contudo, o fornecimento de que necessitavam através da fronteira portuguesa e através da costa mediterrânica, o que alterava de forma decisiva a relação de forças entre as duas frentes a favor da facção de Franco.

As consequências da guerra reflectiram-se na morte demais de quatrocentos mil espanhóis e de uma queda brutal na economia – devida em grande parte à morte de centenas de cabeças de gado, queima de campos aráveis e milhares de casais destruídos, famílias desfeitas, a que se juntou a destruição massiva das principais estruturas de produção as quais levaram mais de quarenta anos a recuperar. Algumas fontes apontam para um número de mortes muito superior, mas dificilmente quantificável: cerca de dois milhões de mortos.

Na Galiza, formou-se uma bolsa de resistência que se manteve até 1956 mas que se foi apagando gradualmente após esse período. O franquismo utilizava muito o método dos “passeios nocurnos”, isto é, levava os presos políticos “a passear”, passeio do qual nunca regressavam, pois eram fuzilados e atirados depois para a vala comum, durante o “passeio”. Grande parte destes presos políticos continua até hoje desaparecidos, provavelmente enterrados em muitos destes locais e impossíveis de identificar.
Os campos de concentração mais conhecidos na Galiza são os de Lubian e Havarolla (Compostela), da ilha de São Simão (comarca de Vigo) – um campo de extermínio.



Jorge de Sena – Dados Biográficos

Jorge Cândido de Sena, nascido em Lisboa a 2 de Novembro de 1914, acabou por falecer em Santa Bárbara, Califórnia, a 14 de Junho de 1978. A sua actividade literária estende-se a áreas tão diversas como a poesia, a crítica, o ensaio, ficção e drama. Foi, também, tradutor e professor universitário.
Jorge de Sena é proveniente de uma família da alta burguesia lisboeta, composta por militares e altos funcionários do Governo da Primeira República, por parte do pai, e de comerciantes ricos do Porto, por parte da mãe. Fontes próximas afirmam ter tido “uma infância solitária, recolhida e infeliz o que resultou numa personalidade introspectiva, observadora e imaginativa”1. Foi sempre um ávido leitor, quer ao longo da infância quer da adolescência, para além de tocar piano e escrever poemas.
No limiar entre a adolescência e a idade adulta, acalentava já a ideia de se tornar oficial da marinha, chegando a entrar para a escola Naval, tal como a personagem Luís do romance. Mais tarde, entrou para o curso de Engenharia Civil, apesar da vocação para a Literatura. Termina o curso depois de publicar o seu primeiro volume de poesia intitulado Perseguição. O crítico João Gaspar Simões não se sentiu muito impressionado, ao passo que, Adolfo Casais Monteiro acha o livro inovador mas difícil.
Em 1947, Jorge de Sena inaugura uma carreira na área da Engenharia que teria a duração de 14 anos.
Em 1949, casa-se com Mécia de Freitas Lopes, irmã do crítico literário Óscar Lopes, um casamento de prolífica descendência, nove filhos ao todo. Jorge de Sena teve de trabalhar incansavelmente para sustentar a família: para além da actividade como engenheiro, dedicava-se também à edição literária, tradução e revisão de textos. Todas elas actividades que lhe roubavam grande parte do tempo à criação literária. Entretanto, a pequenez e a banalidade do quotidiano no Portugal de Salazar, sobretudo durante as décadas de 1950 e 1960, enfadavam-no, como se pode confirmar pela voz do narrador em Sinais de Fogo. Da mesma forma, a mediocridade, a mesquinhez e as intrigas no meio literário em Portugal, tornam o seu trabalho frustrante, mas ao mesmo tempo, servem-lhe de inspiração para criar...


O Exílio

A falta de apoio institucional à criação literária em Portugal limitava a Jorge de Sena a possibilidade de viver da escrita e largar de vez a engenharia. Limitava-lhe, também, a possibilidade de se dedicar exclusivamente à produção de uma obra de maior vulto. Por outro lado, a sua participação em actividades de carácter revolucionário – que se traduz numa tentativa de insurreição, abortada em 1959, muito à semelhança daquela que é descrita no romance, a qual precipita a saída do protagonista da casa dos tios na Figueira já nos últimos capítulos – coloca-o na situação de prisão eminente, no caso de alguns dos conspiradores ser preso pela PIDE e denunciá-lo.

Ainda em 1959, viaja até ao Brasil, a fim de participar num colóquio de estudos Luso-Brasileiros. Ali, é convidado a exercer a função de Professor catedrático de Literatura, no estado de São Paulo.
Adopta a cidadania brasileira por motivos profissionais, ficando com dupla nacionalidade. Em 1964, defende finalmente a sua tese de doutoramento em letras com Os Sonetos de Camões e o Soneto Quinhentista Peninsular. Ficou seis anos no Brasil, onde desfrutou da disponibilidade necessária à produção da sua obra em profundidade e com profissionalismo. Durante este interregno, foram escritas obras de ensaio, crítica, poesia, teatro e ficção. Parte de Sinais de Fogo e a quase totalidade dos contos de Novas Andanças do Demónio foram escritas neste período.
Mas a instauração da ditadura militar no Brasil, em Março de 1964, fez com que Jorge de Sena, já com uma antiga aversão a este tipo de regime, aceitasse o comvite da Universidade do Winsconsin, nos Estados Unidos, em 1965. Em 1967 é nomeado regente das cadeiras de Espanhol e português daquela universidade. Entre 1970 e 18978 regeu a cadeira de Literatura Comparada na Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara. Queixava-se, no entanto da “medonha solidão intelectual na América”, onde afirmava não existir “convívio intelectual algum”, assim como da esterilidade do espírito burguês do meio académico, o qual não se interessava pela sua obra.

Por altura do vinte e cinco de Abril, o escritor sente vontade de regressar definitivamente a Portugal, mas nenhuma universidade ou instituto cultural português o convida para desempenhar seja que função for, fazendo-o resignar-se a ficar nos EUA, onde já tinha carreira consolidada.
Jorge de Sena foi, provavelmente um dos melhores, senão mesmo o melhor, dos escritores portugueses do século XX, emparelhando com Miguel Torga, Herberto Hélder e José Saramago.

O seu espólio inclui hoje uma vasta quantidade de textos inéditos, em permanente fase de publicação, gerida pela esposa Mécia de Sena, que zela cuidadosamente pelo património literário, legado pelo autor.

Trama e personagens

A personagem principal deste romance autobiográfico de Jorge de Sena, é uma projecção do eu do Autor, ao qual atribui o seu próprio nome. Assim o Jorge do romance vive com os pais em Lisboa e é, tal como o autor, oriunda da alta burguesia, embora durante o tempo em que decorre a acção se encontre a gozar as férias de Verão na Figueira da Foz, em casa dos tios.

Os tios deste Jorge, o protagonista, são duas personagens tipo, construídas de modo a ilustrar a forma de estar típica de uma senhora de boas famílias, por um lado, e de um pater-famílias que se porta como o típico marialva, pelo outro.

A tia é uma mulher inteligente, bela e sedutora mas submissa, morre de medo do marido e faz aquilo que a sociedade espera dela: ser uma boa esposa (leia-se esposa obediente) e anfitriã elegante e discreta. Por imperativos sociais, prefere aguentar a constante falta de respeito do marido a ir viver com a mãe e conviver com o seu despotismo optando por ficar sem o estigma associado à condição de mulher divorciada em pleno Estado Novo.

O tio Justino exibe a prepotência e o chauvinismo de um homem habituado ao poder. Com Jorge, mostra-se bonacheirão, mas exibe, por outro lado, tendências homofóbicas em relação a alguns dos seus amigos e aos homossexuais em geral. Compraz-se em humilhar os alunos durante as aulas, sobretudo aqueles que exibem uma aparência mais frágil. Mulherengo, dedica-se a assediar as empregadas em casa, como forma de exercer o poder. Ostenta uma evidente falta de respeito pelas mulheres, empenhando-se em culpar a esposa pela morte do filho humilhando-a diante dos hóspedes.

Este tio de Jorge é um ex-militar da Primeira Guerra Mundial, casado com uma mulher bela e admirada, a qual que lhe lembra (fisicamente) a amante do tempo de guerra – uma aristocrata alemã, Greta, intelectual, detentora de autonomia financeira e laivos de mulher fatal que lembra muito a mulher de D. H. Lawence – casando com ela por razões económicas, também. As duas mulheres só têm e comum a aparência: a tia de Jorge, é uma mulher educada e formada para se dedicar inteiramente à casa e à família; uma mulher cujo principal papel é fazer com que o seu homem seja invejado pelos seus pares.

Os companheiros de Jorge – Rodrigues, Luís, Carlos, Almeida, Mercedes (a única rapariga do grupo com protagonismo relevante na trama) - formam um nicho no qual o protagonista se refugia do apertado controle social, exercido em casa pelo Tio Justino (nome que remete, ironicamente para uma obra do Marquês de Sade).

As Principais Dimensões da Obra

Sinais de Fogo pode ser analisado sob várias faces do mesmo prisma. A primeira delas consiste na dimensão política, que é a que tem maior peso, sobretudo na parte final e com especial incidência no perído após o regresso de Jorge a Lisboa; outra, tem a ver com a sexualidade, ou as várias sexualidades, que observamos na leitura do romance, estejam elas dentro ou fora daquilo que é socialmente aceite, isto é, dentro dos padrões de conduta da época com muito de Freud e do pensamento da escola psicanalítica em ligação directa ao movimento surrealista na literatura; e, por último temos a dimensão social, de onde podemos extrair o posicionamento do Autor face ao papel social da mulher não só nos estratos sociais mais elevados mas também nas classes trabalhadoras.

Por outro lado, a leitura de Sinais de Fogo também nos coloca a par do processo mental que leva o Autor Jorge de Sena a escrever poesia e a forma como qualquer tipo de génese criativa radica na emoção de onde o desejo se insinua por entre os elementos do real com a impertinência do impulso do inconsciente transfigurado pelo imaginário,exprimindo-se, assim, com o nonsense e incoerência típicas do mundo do sonho, da fantasia e do inconsciente que se insurgem por vezes no estado de vigília.

A Obra Magna de Jorge de Sena

De acordo com o prefácio de Mécia de Sena, Sinais de Fogo seria o título do primeiro poema composto pelo marido, o qual seria também o título do primeiro volume de uma saga épica intitulada de Monte Cativo. O Autor pretendia que este primeiro volume abrangesse o tempo da própria juventude até aos anos 1930 – aquando da implementação da ditadura de Franco e ao dealbar da segunda Guerra Mundial, no ano imediatamente anterior à sua eclosão (1938). Monte Cativo pretendia ser o enquadramento de Sinais de Fogo, cujo segundo volume teria início no período logo após a saída de Jorge da Faculdade, dando espaço a um vazio temporal que seria preenchido com analepses, uma vez que o volume anterior terminara na altura em que Jorge iria ingressar na Universidade. Pretendia-se, então, que este segundo volume abrangesse o período anos logo a seguir à licenciatura, até à altura do exílio e à conclusão da tese de doutoramento no Brasil.

Monte Cativo (segudo voume) é, assim desenvolvido segundo dois planos distintos: o primeiro inclui uma analepse, que abarca a infância do Autor, omitida na primeira parte, Sinais de Fogo, o qual inicia em 1936/37 terminando a 1938/39. Voltando ao segundo volume, no outro plano, teríamos o tempo presente, altura em que o protagonista vai exercer as funções de engenheiro de obras públicas no Porto.
O autor começou a escrever a saga em finais de 1940 e terminou a primeira apenas em 1968, após várias interrupções. Foi, também, objecto de várias revisões coordenadas por Mécia em 1984, 1995 e 2002.

Relativamente a este volume acabado, Sinais de Fogo; a estrutura narrativa, apesar de condensada em escassos anos, revela várias mudanças de estilo resultantes de um amadurecimento progressivo da escrita e das experiências vividas que se exprimem em cada vez maiores períodos de reflexão, à medida que avançamos na leitura do romance. O discurso apresenta situações deveras contrastantes, desde a leveza, associada a episódios caricatos e com uma boa dose de nonsense, protagonizados por Puigmal, no início do romance e m contraste com as bizarrias despóticas do tio Justino, narradas com a neutralidade concedida pela devida distância temporal. A medida que este volume se aproxima da sua conclusão, não podemos deixar de notar um discurso cada vez mais complexo, onde as reflexões não só estéticas mas também políticas e sociais vão gradativamente invadindo o espaço que antes era concedido, na sua maior parte, aos diálogos. Este terceirização do discurso permite também uma percepção mais apurada do comportamento e das motivações das personagens. Permite-nos, da mesma forma, observarmos, do ponto de vista do narrador, o grau responsabilidade individual de cada um dos intervenientes nos acontecimentos colectivos da trama.

Paixão adolescente, sexualidade dentro e fora do matrimónio

O namoro clandestino e semi-secreto de Jorge e Mercedes tem, necessariamente, de terminar, uma vez que se trata de um fogo que tudo consome, sem deixar nada à sua volta. Termina também por falta de autonomia de ambas as partes e falta de apoio das respectivas famílias, mais preocupadas em conseguir alianças financeiras do que com questões sentimentais. A relação de Jorge com Mercedes perece ser minada por todo um conjunto de interferências externas – o irmão, o ex-noivo, os pais de ambos –, as quais acabam por bloquear a comunicação e a confiança entre ambos. Mercedes é uma Eva que se deixa facilmente influenciar pelas pessoas que lhe são próximas.. A jovem, apesar de pertencer à alta burguesia, não possui autonomia nem liberdade de escolha do próprio caminho, numa sociedade onde a mulher só consegue conquistar a respeitabilidade dentro do casamento, desde que restringindo as suas actividades ao domínio da esfera privada. Mercedes é o oposto da personagem de D.H. Lawrece, Constance Chatterley. Esta última é uma mulher da alta burguesia britânica, aristocrata pelo casamento, que, tendo estudado em várias universidades europeias, tem uma vida livre, pautada por acesso a amizades com ambos os sexos, cosmopolita, capaz de discutir filosofia em grupos mistos, em pé de igualdade com os seus pares masculinos, tendo relações sexuais pré-maritais sem ser, por isso, estigmatizada. Já Mercedes é, pelo contrário, tal como a tia de Jorge, uma jovem destinada a tornar-se anfitriã de um marido abastado estando, no seu caso, fora de questão o exercício de uma profissão liberal.

Em relação à questão sexual e às relações sexuais fora do casamento, para além da situação de Mercedes e Jorge e à diferença de tratamento da questão sexual de acordo com o género, há também uma situação muito característica do Portugal do Estado Novo, abordada por Jorge de Sena: a permanência do costume medieval designado por “droît du seigneur”, ainda, muito enraizada na classe dominante portuguesa.

A homossexualidade latente é também um tema tabu que Jorge de Sena não se coíbe de abordar, embora não seja pioneiro na aua abordagem, uma vez que Eça de Queirós já o tinha feito num romance proibidíssimo de ser comercializado durante o Estado Novo (quem fosse apanhado com o respectivo volume em casa teria forçosamente de ir prestar declarações a PIDE-DGS): O crime do Padre Amaro, com a personagem Libaninho. Em Sinais de Fogo, Jorge sofre o assédio de Luís, jovem de sexualidade ambígua, patente na situação expressa na casa de passe e na festa báquico-orgíaca, com prostitutas e pederastas na Igreja em ruínas, um evidete desafio do Autor à ordem estabelecida e ao preceitos da moralidade hipócrita do Estado Novo. O ídolo do jovem Luís é Rodrigues, bissexual, que seduz além de senhoras de posses e solitárias, pederastas como Rufininho, o clone do Libaninho de Eça de Queirós. Este Rufininho mostra-se por sua vez de aspecto exterior efeminado apenas porque os homens de quem gosta preferem homens transfigurados pela feminilidade, com um certo hibridismo de género.

O tio Justino é uma personagem tão caricata quanto Rodrigues, apesar de, aparentemente, oposto no comportamento sexual. Dá aulas para aumentar o rendimento de uma reforma mínima, proveniente de uma curta carreira militar. Vive também das dívidas de jogo dos seus hóspedes espanhóis, fugidos a ditadura franquista. É durante as sessões de jogo que se discute a situação política no país vizinho, as lutas intestinas entre as várias facções e a colaboração do governo português com o regime de Franco. O Tio Justino tenta extorquir dinheiro, tanto aos hóspedes como à sogra por quem nutre um ódio fidagal. Correspondido, diga-se de passagem. É nitidamente uma personagem sádica quer e reação à mulher quer ao alunos, até no nome. No final do romance a este Tio Justino cai-lhe definitivamente a máscara de figura simpática que exibia perante o sobrinho, ao comportar-se de forma vil, traindo-o no exacto momento em que a situação em que o enredou, ameaçava voltar-se contra ele. Livra-se de Jorge, descartando-o com toda a frivolidade.

Os pais, a quem Jorge descreve no romance, são pessoas que se preocupam com o filho, apesar de não imaginarem o que se passa com as suas amizades dentro do grupo de pares. A família nuclear é o refúgio de Jorge. O pai mostra-se uma pessoa racional, pragmática, interessado em participar e conhecer a vida social do filho. A mãe é pintada como totalmente emotiva e algo carente, denunciando largos períodos de solidão e tédio quando o marido se encontra fora de casa em trabalho. Esta necessidade de companhia está patente na tentativa desesperada de manter o filho junto de si, assim como a Luís (uma espécie de desdobramento da personalidade do próprio filho).

Ousadia e Estilo

Jorge de Sena consegue mesmo ultrapassar em audácia o escritor britânico D.H. Lawrence o qual havia causado escândalo aquando da publicação da maior parte das suas obras, não só por romper com vários tabus sexuais da época (primeiras décadas do século XX) mas também por quebrar a rigidez dos preceitos da moral vitoriana e o respectivo (e apertado) sentido de pudor, ao descrever, por exemplo, com detalhes as tórridas cenas de paixão entre Constance Chatterley e o guarda florestal Oliver Mellors. Este autor dava, simultaneamente, a entender a possibilidade de existência não só de paixão mas também de afinidades entre pessoas oriundas de estratos sociais tão díspares como uma aristocrata e o filho de um mineiro. Jorge de Sena ultrapassa Lawrence sobretudo na questão da linguagem quando se trata de descrever o erotismo, num extremo golpe de audácia dadas a pesada censura existente durante o Estado Novo o que ma época seria considerado, no mínimo, subversivo. O autor chega mesmo a utilizar o calão, enquadrado no respectivo contexto social como, por exemplo, na casa de prostituição ou mesmo dentro do grupo de pares de Jorge em determinadas circunstâncias.

É de salientar também a beleza poética do discurso narrativo no meio envolvente do quarto da pensão de aspecto duvidoso, onde Jorge faz amor com Mercedes, perfeitamente equiparáveis às mais sublimes descrições eróticas do seu antecessor britânico. Trata-se de um erotismo literário, que se pode caracterizar por um lirismo carnal, entremeado de elementos poéticos, figuras de estilo, como metáforas, sinestesias e uma semântica profundamente sensual a transmitir ao leitor o máximo de informação possível pela via dos sentidos, como a descrição do quarto da pensão, depois de usado com destaque para a chamada de atenção de detalhes como o lavatório com as toalhas usadas e a cama enxovalhada.

Dada a sua complexidade e riqueza estilística, Sinais de Fogo pode-se considerar, um dos melhores romances do século XX escritos em português, mesmo tratando-se de uma obra inacabada o que, na nossa opinião, só lhe confere maior valor literário.

Jorge de Sena recebeu o Prémio Internacional de Poesia Etna-Taormina, pelo conjunto da sua obra póetica, da qual a obra Sinais de Fogo nos dá já um pequeno vislumbre, ao encaixar alguns dos poemas do Autor no desenvolvimento da narrativa, a explicar a evolução do processo mental na criação poética.

Em 1980, foi inaugurado o Jorge de Sena Center for Portuguese Studies, em Santa Barbara, na Universidade da Califórnia.

Cláudia de Sousa Dias
Setembro de 2011/7 de Junho de 2012

1Vide Wikipedia

12 Comments:

Blogger Ricardo Antonio Lucas Camargo said...

Cláudia, gostei muito da resenha. Revela este livro que ainda há fantasmas do salazarismo muito parecidos com os fantasmas do período castrense na América Latina. No Brasil, o romance que melhor retrata o período é, disparado, o "Incidente em Antares", do Érico Veríssimo.

3:45 AM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Ricardo o livro não foi escrito nas últimas décadas...trata-se de um clássico do século XX, escrito entre o início dos anos quarenta e acabado em 1968, mais ou menos na altura em que morre Salazar mas não a ditadura. A seguir tivemos
Marcelo Caetano.

Veríssimo só li ainda o Clarissa.

10:04 AM  
Blogger -pirata-vermelho- said...

Querida Cláudia,
não vejo como se poderia emparelhar o Jorge de Sena, o Torga e o Hoelder com o nobilificado Saramago.

4:18 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Cada qual no seu género. Saramago, definitivamente na prosa e nas alegorias. Jorge de Sena em prosa e em poesia. Helder, sem sombra de dúvida, na poesia. Torga, em poesia e em alguma prosa.

6:21 PM  
Blogger -pirata-vermelho- said...

Saramago, porém, aquém, independentemente do modo.

5:05 PM  
Blogger M. said...

Excelente resenha! Tenho grande vontade de ler Jorge de Sena, é uma das minhas inúmeras falhas!
Beijinhos,
Madalena

9:34 AM  
Blogger P said...

Grande figura, J de Sena. Admiro-o como figura maior das letras desde o tempo de universidade, desde que tive de comentar um dos 4 sonetos a Afrodite Anadiómena:

"Dentífona apriuna a veste iguana
de que se escalca auroma e tentavela.
Como superta e buritânea amela
se palquitonará transcêndia inana!"
Atrás deste texto estranho vieram os ensaios e tudo o resto; mais recentemente, redescobri as 'novas e velhas andanças do demónio', sempre um prazer e um estímulo á crítica.

Excelente texto, Cláudia!

2:29 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

obrigada, Bau!Está na altura de fazer outro post...

12:05 PM  
Anonymous Anonymous said...

Este seu texto, tão bem trabalhado, foi descaradamente copiado por um "senhor" que sem escrúpulos se apropriou dele e o publicou como sendo seu, como aliás costuma fazer.
Desculpe a ousadia da intromissão, não me diz respeito, mas escandaliza-me tamanha falta de vergonha.
Continuação de boas leituras e parabéns pelo trabalho que apresenta no blog.

8:03 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Boa tarde, Carmo.

Tem o link para essa publicação?

Gostaria muito de aceder.


CSD

8:31 PM  
Anonymous Anonymous said...

https://www.goodreads.com/review/show/1053078214?ref=ru_lihp_cm_rv_20_mclk-up3246088477

8:35 PM  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Hum...estou a ver. Ele traduziu e copiou integralmente a primeira parte do meu texto. Não faz muita diferença, porque essa primeira parte resultou da pesquisa on-line que fiz para enquadrar a obra no seu contexto histórico, sendo que a maior parte dessa informação foi retirada da wikipedia. Apesar de tudo a construção frásica é minha, pelo que ele deveria ter posto o link para o meu blogue na review que fez como parte da bibliografia e webgrafia utilizada.

Eu tive de fazer essa pesquisa porque o tenho servia de base à discussão publica da obra numa sessão na Biblioteca Municipal de Famalicão.

No entanto a parte biográfica relativa ao Autor e a discussão da obra propriamente dita é construção minha. E nisso ele não mexeu.

Mas eu vou colocar o link para o meu post nos comentários à review do dito senhor.

CSD

8:50 PM  

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