“Sinais de Fogo” de Jorge de Sena (Guimarães)
com prefácio de Mécia de Sena
Enquadrado no contexto histórico da
Guerra Civil Espanhola, este romance de estrutura épica seria,
originalmente, a primeira parte de uma saga, cuja sequela nunca
chegou a ser concluída, por uma série de vicissitudes da vida
pessoal do escritor que o levaram a adiar durante décadas o
projecto.
A Guerra Civil, que emoldura a trama
central, é a mola impulsionadora do romance, tendo deflagrado em
Espanha, após a tentativa malograda de golpe de Estado, contra a
chamada Segunda República Espanhola (vide wikipedia). A mesma guerra
terá durado três anos (1936-1939), tendo terminado com a vitória
dos poucos revoltosos e a instauração de um regime ditatorial de
carácter fascista, à semelhança do que acontecia em Itália,
encabeçado pelo General Francisco Franco.
O século que havia precedido os
acontecimentos de que falamos, tinha sido um período assaz
turbulento no país vizinho, profundamente marcado por lutas entre
liberais (palavra que é usada com um sentido oposto àquele que lhe
é atribuído hoje em dia) e absolutistas (tal como acontecera em
Portugal) e, mais tarde, entre monárquicos e republicanos, no
contexto da perda das colónias americanas e filipinas. A economia
espanhola sofre, no período da belle époque e na viragem do século,
uma aceleração, com a expansão das industrias mineira e
metalúrgica, sobretudo durante a Primeira Guerra Mundial. O
resultado desse crescimento no país vizinho, não se reflectiu, no
entanto, na mudança das condições sociais. A agricultura
continuava a ser dominada por grandes latifundiários, os quais,
mesmo assim, deixavam grandes extensões de terra por cultivar. Por
outro lado, a Igreja tomava o partido destas élites agrárias,
opondo-se às reformas sociais. Por último, a monarquia espanhola
apoiava-se no poder militar para manter o regime.
Entretanto, ao mesmo tempo que crescia
a economia, crescia também o movimento operário. O anarquismo
tornou-se então a tendência política mais defendida pelos
trabalhadores. O conflito entre classes torna-se cada vez mais
recorrente – e frequente – num crescendum de violência com ambas
as facções a assumir atitudes extremistas dos dois lados da
contenda. Da oposição ao governo usurpador, grupos de militantes
sindicalistas assassinam também religiosos, invadindo conventos e
igrejas bem como industriais suspeitos de apoiar grupos de
extermínio. As insurreições armadas de ambos os lados tornam-se
frequentes. Entre 1937 e 1938 os republicanos fazem uma ofensiva em
direcção a Teruel, recuperada depois pelos franquistas. As
interferências francesa e britânica só conseguem deitar ainda mais
achas para a fogueira do ódio civil entre duas formas de sistema
político opostas, uma vez que a principal preocupação das maiores
potências económicas europeias consistiu apenas em impedir o avanço
de uma Frente Comunista na Europa Ocidental e não assumir como
prioridade o impedimento das atrocidades ou o atenuar a injustiça
social dentro da Península Ibérica. Em 1939, o poder cai
definitivamente nas mãos dos franquistas ,cuja política é apoiada
pelo chefe máximo do Governo Português de então: António de
Oliveira Salazar.
Quanto à dimensão religiosa do
conflito, o liberalismo em Espanha tinha assumido uma acção
violentamente anti-clerical durante todo o século XIX, obtendo como
resultado a identificação da Igreja com a extrema direita
espanhola, incitando e apoiando a ofensiva concertada face ao
radicalismo de esquerda em particular e aos ideais do socialismo em
geral.
A Guerra Civil Espanhola envolveu
dois contingentes militares compostos pela Frente Popular, que
incluía as facções mais extremistas de esquerda como o comunismo e
o anarquismo, mas também o governo liberal-democrático eleito, bem
como os nacionalistas da Galiza, do País Basco e da Catalunha, o
quais defendiam a legitimidade do regime que se tinha instalado
recentemente – a República, instaurada em 1931 – e os
respectivos estatutos de autonomia.; do outro lado, lutavam os
Nacionalistas, grupo composto pelos monárquicos, pelos falangistas e
militares da extrema direita, tendo como líderes o general José
Sanjurgo – morto acidentalmente durante uma visita a Portugal – e
Francisco Franco.
A sublevação de ideologia fascista
visava impedir, custasse o que custasse, as instituições
republicanas de se consolidarem de maneira estável e permanente. Da
mesma forma, tentavam também impedir que o governo democrático
fosse implementado por uma facção de esquerda e realizasse as
profundas reformas económicas, jurídicas e políticas a que se
tinha proposto. Aliada à Igreja, ao Exército e as latifundiários,
esta facção nacionalista tinha como principal objectivo a
implementação de um regime de inspiração fascista em Espanha.
Apesar disso, muitos historiadores são de opinião que o franquismo
não foi, de facto, um regime fascista no sentido purista do termo,
uma vez que não se tratou de um regime político fundado com o
apoio da quase totalidade das massas, sendo implementado sem
preconizar uma política de massas propriamente dita – como
sucedeu, por exemplo, com o caso alemão – e sem a mobilização
permanente dos seus partidários para além de, também, não ter
havido o envolvimento de uma burguesia emergente. Mas mesmo antes da
queda dos regimes de Hitler e Mussolini, em 1945, o regime de Franco
acabou por adquirir a forma de uma ditadura pessoal, apoiada pelos
grupos que compunham as classes dominantes tradicionais, muito à
semelhança do sucedido no Portugal salazarista.
As tropas republicanas em Espanha
receberam ajuda internacional da antiga União Soviética e de
Brigadas Internacionais compostas por militares de frentes
socialistas e comunistas de todo o mundo. Foram vários os
intelectuais americanos e europeus que apoiaram esta facção. O mais
conhecido foi Ernest Hemingway, a que se juntaram George Orwell
(Inglaterra), André Malraux e Antoine Saint-Éxupery (França) e,
também a matemática francesa e católica, Simone Weil.. Os governos
de França e Inglaterra uniram-se fora do conflito, impondo contudo
um embargo à venda de armas àquele país. Os nacionalistas
recebiam, contudo, o fornecimento de que necessitavam através da
fronteira portuguesa e através da costa mediterrânica, o que
alterava de forma decisiva a relação de forças entre as duas
frentes a favor da facção de Franco.
As consequências da guerra
reflectiram-se na morte demais de quatrocentos mil espanhóis e de
uma queda brutal na economia – devida em grande parte à morte de
centenas de cabeças de gado, queima de campos aráveis e milhares de
casais destruídos, famílias desfeitas, a que se juntou a destruição
massiva das principais estruturas de produção as quais levaram mais
de quarenta anos a recuperar. Algumas fontes apontam para um número
de mortes muito superior, mas dificilmente quantificável: cerca de
dois milhões de mortos.
Na Galiza, formou-se uma bolsa de
resistência que se manteve até 1956 mas que se foi apagando
gradualmente após esse período. O franquismo utilizava muito o
método dos “passeios nocurnos”, isto é, levava os presos
políticos “a passear”, passeio do qual nunca regressavam, pois
eram fuzilados e atirados depois para a vala comum, durante o
“passeio”. Grande parte destes presos políticos continua até
hoje desaparecidos, provavelmente enterrados em muitos destes locais
e impossíveis de identificar.
Os campos de concentração mais
conhecidos na Galiza são os de Lubian e Havarolla (Compostela), da
ilha de São Simão (comarca de Vigo) – um campo de extermínio.
Jorge de Sena – Dados Biográficos
Jorge Cândido de Sena, nascido em
Lisboa a 2 de Novembro de 1914, acabou por falecer em Santa Bárbara,
Califórnia, a 14 de Junho de 1978. A sua actividade literária
estende-se a áreas tão diversas como a poesia, a crítica, o
ensaio, ficção e drama. Foi, também, tradutor e professor
universitário.
Jorge de Sena é proveniente de
uma família da alta burguesia lisboeta, composta por militares e
altos funcionários do Governo da Primeira República, por parte do
pai, e de comerciantes ricos do Porto, por parte da mãe. Fontes
próximas afirmam ter tido “uma infância solitária, recolhida e
infeliz o que resultou numa personalidade introspectiva, observadora
e imaginativa”1.
Foi sempre um ávido leitor, quer ao longo da infância quer da
adolescência, para além de tocar piano e escrever poemas.
No limiar entre a adolescência e a
idade adulta, acalentava já a ideia de se tornar oficial da marinha,
chegando a entrar para a escola Naval, tal como a personagem Luís do
romance. Mais tarde, entrou para o curso de Engenharia Civil, apesar
da vocação para a Literatura. Termina o curso depois de publicar o
seu primeiro volume de poesia intitulado Perseguição. O
crítico João Gaspar Simões não se sentiu muito impressionado, ao
passo que, Adolfo Casais Monteiro acha o livro inovador mas difícil.
Em 1947, Jorge
de Sena inaugura uma carreira na área da Engenharia que
teria a duração de 14 anos.
Em 1949, casa-se com Mécia de Freitas
Lopes, irmã do crítico literário Óscar Lopes, um casamento de
prolífica descendência, nove filhos ao todo. Jorge de Sena
teve de trabalhar incansavelmente para sustentar a família: para
além da actividade como engenheiro, dedicava-se também à edição
literária, tradução e revisão de textos. Todas elas actividades
que lhe roubavam grande parte do tempo à criação literária.
Entretanto, a pequenez e a banalidade do quotidiano no Portugal de
Salazar, sobretudo durante as décadas de 1950 e 1960, enfadavam-no,
como se pode confirmar pela voz do narrador em Sinais de Fogo.
Da mesma forma, a mediocridade, a mesquinhez e as intrigas no meio
literário em Portugal, tornam o seu trabalho frustrante, mas ao
mesmo tempo, servem-lhe de inspiração para criar...
O Exílio
A falta de apoio institucional à
criação literária em Portugal limitava a Jorge de Sena a
possibilidade de viver da escrita e largar de vez a engenharia.
Limitava-lhe, também, a possibilidade de se dedicar exclusivamente à
produção de uma obra de maior vulto. Por outro lado, a sua
participação em actividades de carácter revolucionário – que se
traduz numa tentativa de insurreição, abortada em 1959, muito à
semelhança daquela que é descrita no romance, a qual precipita a
saída do protagonista da casa dos tios na Figueira já nos últimos
capítulos – coloca-o na situação de prisão eminente, no caso de
alguns dos conspiradores ser preso pela PIDE e denunciá-lo.
Ainda em 1959, viaja até ao Brasil, a
fim de participar num colóquio de estudos Luso-Brasileiros. Ali, é
convidado a exercer a função de Professor catedrático de
Literatura, no estado de São Paulo.
Adopta a cidadania brasileira por
motivos profissionais, ficando com dupla nacionalidade. Em 1964,
defende finalmente a sua tese de doutoramento em letras com Os
Sonetos de Camões e o Soneto Quinhentista Peninsular. Ficou seis
anos no Brasil, onde desfrutou da disponibilidade necessária à
produção da sua obra em profundidade e com profissionalismo.
Durante este interregno, foram escritas obras de ensaio, crítica,
poesia, teatro e ficção. Parte de Sinais de Fogo e a quase
totalidade dos contos de Novas Andanças do Demónio foram
escritas neste período.
Mas a instauração da ditadura militar
no Brasil, em Março de 1964, fez com que Jorge de Sena, já
com uma antiga aversão a este tipo de regime, aceitasse o comvite da
Universidade do Winsconsin, nos Estados Unidos, em 1965. Em 1967 é
nomeado regente das cadeiras de Espanhol e português daquela
universidade. Entre 1970 e 18978 regeu a cadeira de Literatura
Comparada na Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara.
Queixava-se, no entanto da “medonha solidão intelectual na
América”, onde afirmava não existir “convívio intelectual
algum”, assim como da esterilidade do espírito burguês do meio
académico, o qual não se interessava pela sua obra.
Por altura do vinte e cinco de Abril, o
escritor sente vontade de regressar definitivamente a Portugal, mas
nenhuma universidade ou instituto cultural português o convida para
desempenhar seja que função for, fazendo-o resignar-se a ficar nos
EUA, onde já tinha carreira consolidada.
Jorge de Sena foi, provavelmente
um dos melhores, senão mesmo o melhor, dos escritores portugueses do
século XX, emparelhando com Miguel Torga, Herberto Hélder e
José Saramago.
O seu espólio inclui hoje uma vasta
quantidade de textos inéditos, em permanente fase de publicação,
gerida pela esposa Mécia de Sena, que zela cuidadosamente pelo
património literário, legado pelo autor.
Trama e personagens
A personagem principal deste romance
autobiográfico de Jorge de Sena, é uma projecção do eu do Autor,
ao qual atribui o seu próprio nome. Assim o Jorge do romance vive
com os pais em Lisboa e é, tal como o autor, oriunda da alta
burguesia, embora durante o tempo em que decorre a acção se
encontre a gozar as férias de Verão na Figueira da Foz, em casa dos
tios.
Os tios deste Jorge, o protagonista,
são duas personagens tipo, construídas de modo a ilustrar a forma
de estar típica de uma senhora de boas famílias, por um lado, e de
um pater-famílias que se porta como o típico marialva, pelo outro.
A tia é uma mulher inteligente, bela e
sedutora mas submissa, morre de medo do marido e faz aquilo que a
sociedade espera dela: ser uma boa esposa (leia-se esposa obediente)
e anfitriã elegante e discreta. Por imperativos sociais, prefere
aguentar a constante falta de respeito do marido a ir viver com a mãe
e conviver com o seu despotismo optando por ficar sem o estigma
associado à condição de mulher divorciada em pleno Estado Novo.
O tio Justino exibe a prepotência e o
chauvinismo de um homem habituado ao poder. Com Jorge, mostra-se
bonacheirão, mas exibe, por outro lado, tendências homofóbicas em
relação a alguns dos seus amigos e aos homossexuais em geral.
Compraz-se em humilhar os alunos durante as aulas, sobretudo aqueles
que exibem uma aparência mais frágil. Mulherengo, dedica-se a
assediar as empregadas em casa, como forma de exercer o poder.
Ostenta uma evidente falta de respeito pelas mulheres, empenhando-se
em culpar a esposa pela morte do filho humilhando-a diante dos
hóspedes.
Este tio de Jorge é um ex-militar da
Primeira Guerra Mundial, casado com uma mulher bela e admirada, a
qual que lhe lembra (fisicamente) a amante do tempo de guerra – uma
aristocrata alemã, Greta, intelectual, detentora de autonomia
financeira e laivos de mulher fatal que lembra muito a mulher de D.
H. Lawence – casando com ela por razões económicas, também. As
duas mulheres só têm e comum a aparência: a tia de Jorge, é uma
mulher educada e formada para se dedicar inteiramente à casa e à
família; uma mulher cujo principal papel é fazer com que o seu
homem seja invejado pelos seus pares.
Os companheiros de Jorge – Rodrigues,
Luís, Carlos, Almeida, Mercedes (a única rapariga do grupo com
protagonismo relevante na trama) - formam um nicho no qual o
protagonista se refugia do apertado controle social, exercido em casa
pelo Tio Justino (nome que remete, ironicamente para uma obra do
Marquês de Sade).
As Principais Dimensões da Obra
Sinais de Fogo pode ser
analisado sob várias faces do mesmo prisma. A primeira delas
consiste na dimensão política, que é a que tem maior peso,
sobretudo na parte final e com especial incidência no perído após
o regresso de Jorge a Lisboa; outra, tem a ver com a sexualidade, ou
as várias sexualidades, que observamos na leitura do romance,
estejam elas dentro ou fora daquilo que é socialmente aceite, isto
é, dentro dos padrões de conduta da época com muito de Freud e do
pensamento da escola psicanalítica em ligação directa ao movimento
surrealista na literatura; e, por último temos a dimensão social,
de onde podemos extrair o posicionamento do Autor face ao papel
social da mulher não só nos estratos sociais mais elevados mas
também nas classes trabalhadoras.
Por outro lado, a leitura de Sinais
de Fogo também nos coloca a par do processo mental que
leva o Autor Jorge de Sena a escrever poesia e a forma como
qualquer tipo de génese criativa radica na emoção de onde o desejo
se insinua por entre os elementos do real com a impertinência do
impulso do inconsciente transfigurado pelo imaginário,exprimindo-se,
assim, com o nonsense e incoerência típicas do mundo do sonho, da
fantasia e do inconsciente que se insurgem por vezes no estado de
vigília.
A Obra Magna de Jorge de Sena
De acordo com o prefácio de Mécia de
Sena, Sinais de Fogo seria o título do primeiro poema
composto pelo marido, o qual seria também o título do primeiro
volume de uma saga épica intitulada de Monte Cativo. O Autor
pretendia que este primeiro volume abrangesse o tempo da própria
juventude até aos anos 1930 – aquando da implementação da
ditadura de Franco e ao dealbar da segunda Guerra Mundial, no ano
imediatamente anterior à sua eclosão (1938). Monte Cativo
pretendia ser o enquadramento de Sinais de Fogo, cujo segundo
volume teria início no período logo após a saída de Jorge da
Faculdade, dando espaço a um vazio temporal que seria preenchido com
analepses, uma vez que o volume anterior terminara na altura em que
Jorge iria ingressar na Universidade. Pretendia-se, então, que este
segundo volume abrangesse o período anos logo a seguir à
licenciatura, até à altura do exílio e à conclusão da tese de
doutoramento no Brasil.
Monte Cativo (segudo voume) é,
assim desenvolvido segundo dois planos distintos: o primeiro inclui
uma analepse, que abarca a infância do Autor, omitida na primeira
parte, Sinais de Fogo, o
qual inicia em 1936/37 terminando a 1938/39. Voltando ao segundo
volume, no outro plano, teríamos o tempo presente, altura em que o
protagonista vai exercer as funções de engenheiro de obras públicas
no Porto.
O autor começou a escrever a saga em
finais de 1940 e terminou a primeira apenas em 1968, após várias
interrupções. Foi, também, objecto de várias revisões
coordenadas por Mécia em 1984, 1995 e 2002.
Relativamente a este
volume acabado, Sinais de Fogo; a estrutura narrativa, apesar
de condensada em escassos anos, revela várias mudanças de estilo
resultantes de um amadurecimento progressivo da escrita e das
experiências vividas que se exprimem em cada vez maiores períodos
de reflexão, à medida que avançamos na leitura do romance. O
discurso apresenta situações deveras contrastantes, desde a leveza,
associada a episódios caricatos e com uma boa dose de nonsense,
protagonizados por Puigmal, no início do romance e m contraste com
as bizarrias despóticas do tio Justino, narradas com a neutralidade
concedida pela devida distância temporal. A medida que este volume
se aproxima da sua conclusão, não podemos deixar de notar um
discurso cada vez mais complexo, onde as reflexões não só
estéticas mas também políticas e sociais vão gradativamente
invadindo o espaço que antes era concedido, na sua maior parte, aos
diálogos. Este terceirização do discurso permite também uma
percepção mais apurada do comportamento e das motivações das
personagens. Permite-nos, da mesma forma, observarmos, do ponto de
vista do narrador, o grau responsabilidade individual de cada um dos
intervenientes nos acontecimentos colectivos da trama.
Paixão adolescente,
sexualidade dentro e fora do matrimónio
O namoro clandestino e
semi-secreto de Jorge e Mercedes tem, necessariamente, de terminar,
uma vez que se trata de um fogo que tudo consome, sem deixar nada à
sua volta. Termina também por falta de autonomia de ambas as partes
e falta de apoio das respectivas famílias, mais preocupadas em
conseguir alianças financeiras do que com questões sentimentais. A
relação de Jorge com Mercedes perece ser minada por todo um
conjunto de interferências externas – o irmão, o ex-noivo, os
pais de ambos –, as quais acabam por bloquear a comunicação e a
confiança entre ambos. Mercedes é uma Eva que se deixa facilmente
influenciar pelas pessoas que lhe são próximas.. A jovem, apesar de
pertencer à alta burguesia, não possui autonomia nem liberdade de
escolha do próprio caminho, numa sociedade onde a mulher só
consegue conquistar a respeitabilidade dentro do casamento, desde que
restringindo as suas actividades ao domínio da esfera privada.
Mercedes é o oposto da personagem de D.H. Lawrece, Constance
Chatterley. Esta última é uma mulher da alta burguesia britânica,
aristocrata pelo casamento, que, tendo estudado em várias
universidades europeias, tem uma vida livre, pautada por acesso a
amizades com ambos os sexos, cosmopolita, capaz de discutir filosofia
em grupos mistos, em pé de igualdade com os seus pares masculinos,
tendo relações sexuais pré-maritais sem ser, por isso,
estigmatizada. Já Mercedes é, pelo contrário, tal como a tia de
Jorge, uma jovem destinada a tornar-se anfitriã de um marido
abastado estando, no seu caso, fora de questão o exercício de uma
profissão liberal.
Em relação à questão
sexual e às relações sexuais fora do casamento, para além da
situação de Mercedes e Jorge e à diferença de tratamento da
questão sexual de acordo com o género, há também uma situação
muito característica do Portugal do Estado Novo, abordada por Jorge
de Sena: a permanência do costume medieval designado por “droît
du seigneur”, ainda, muito enraizada na classe dominante
portuguesa.
A homossexualidade
latente é também um tema tabu que Jorge
de Sena não se coíbe de abordar, embora não seja
pioneiro na aua abordagem, uma vez que Eça de Queirós já o tinha
feito num romance proibidíssimo de ser comercializado durante o
Estado Novo (quem fosse apanhado com o respectivo volume em casa
teria forçosamente de ir prestar declarações a PIDE-DGS): O
crime do Padre Amaro, com a personagem Libaninho. Em Sinais de
Fogo, Jorge sofre o assédio de Luís, jovem de sexualidade
ambígua, patente na situação expressa na casa de passe e na festa
báquico-orgíaca, com prostitutas e pederastas na Igreja em ruínas,
um evidete desafio do Autor à ordem estabelecida e ao preceitos da
moralidade hipócrita do Estado Novo. O ídolo do jovem Luís é
Rodrigues, bissexual, que seduz além de senhoras de posses e
solitárias, pederastas como Rufininho, o clone do Libaninho de Eça
de Queirós. Este Rufininho mostra-se por sua vez de aspecto exterior
efeminado apenas porque os homens de quem gosta preferem homens
transfigurados pela feminilidade, com um certo hibridismo de género.
O tio Justino é uma
personagem tão caricata quanto Rodrigues, apesar de, aparentemente,
oposto no comportamento sexual. Dá aulas para aumentar o rendimento
de uma reforma mínima, proveniente de uma curta carreira militar.
Vive também das dívidas de jogo dos seus hóspedes espanhóis,
fugidos a ditadura franquista. É durante as sessões de jogo que se
discute a situação política no país vizinho, as lutas intestinas
entre as várias facções e a colaboração do governo português
com o regime de Franco. O Tio Justino tenta extorquir dinheiro, tanto
aos hóspedes como à sogra por quem nutre um ódio fidagal.
Correspondido, diga-se de passagem. É nitidamente uma personagem
sádica quer e reação à mulher quer ao alunos, até no nome. No
final do romance a este Tio Justino cai-lhe definitivamente a máscara
de figura simpática que exibia perante o sobrinho, ao comportar-se
de forma vil, traindo-o no exacto momento em que a situação em que
o enredou, ameaçava voltar-se contra ele. Livra-se de Jorge,
descartando-o com toda a frivolidade.
Os pais, a quem Jorge
descreve no romance, são pessoas que se preocupam com o filho,
apesar de não imaginarem o que se passa com as suas amizades dentro
do grupo de pares. A família nuclear é o refúgio de Jorge. O pai
mostra-se uma pessoa racional, pragmática, interessado em participar
e conhecer a vida social do filho. A mãe é pintada como totalmente
emotiva e algo carente, denunciando largos períodos de solidão e
tédio quando o marido se encontra fora de casa em trabalho. Esta
necessidade de companhia está patente na tentativa desesperada de
manter o filho junto de si, assim como a Luís (uma espécie de
desdobramento da personalidade do próprio filho).
Ousadia e Estilo
Jorge
de Sena consegue mesmo ultrapassar em audácia o escritor
britânico D.H. Lawrence o qual havia causado escândalo aquando da
publicação da maior parte das suas obras, não só por romper com
vários tabus sexuais da época (primeiras décadas do século XX)
mas também por quebrar a rigidez dos preceitos da moral vitoriana e
o respectivo (e apertado) sentido de pudor, ao descrever, por
exemplo, com detalhes as tórridas cenas de paixão entre Constance
Chatterley e o guarda florestal Oliver Mellors. Este autor dava,
simultaneamente, a entender a possibilidade de existência não só
de paixão mas também de afinidades entre pessoas oriundas de
estratos sociais tão díspares como uma aristocrata e o filho de um
mineiro. Jorge de Sena ultrapassa Lawrence sobretudo na questão da
linguagem quando se trata de descrever o erotismo, num extremo golpe
de audácia dadas a pesada censura existente durante o Estado Novo o
que ma época seria considerado, no mínimo, subversivo. O autor
chega mesmo a utilizar o calão, enquadrado no respectivo contexto
social como, por exemplo, na casa de prostituição ou mesmo dentro
do grupo de pares de Jorge em determinadas circunstâncias.
É de salientar também a
beleza poética do discurso narrativo no meio envolvente do quarto da
pensão de aspecto duvidoso, onde Jorge faz amor com Mercedes,
perfeitamente equiparáveis às mais sublimes descrições eróticas
do seu antecessor britânico. Trata-se de um erotismo literário, que
se pode caracterizar por um lirismo carnal, entremeado de elementos
poéticos, figuras de estilo, como metáforas, sinestesias e uma
semântica profundamente sensual a transmitir ao leitor o máximo de
informação possível pela via dos sentidos, como a descrição do
quarto da pensão, depois de usado com destaque para a chamada de
atenção de detalhes como o lavatório com as toalhas usadas e a
cama enxovalhada.
Dada a sua complexidade e
riqueza estilística, Sinais de Fogo pode-se considerar, um
dos melhores romances do século XX escritos em português, mesmo
tratando-se de uma obra inacabada o que, na nossa opinião, só lhe
confere maior valor literário.
Jorge de Sena recebeu o
Prémio Internacional de Poesia Etna-Taormina, pelo conjunto da sua
obra póetica, da qual a obra Sinais de Fogo nos dá já um
pequeno vislumbre, ao encaixar alguns dos poemas do Autor no
desenvolvimento da narrativa, a explicar a evolução do processo
mental na criação poética.
Em 1980, foi inaugurado o
Jorge de Sena Center for Portuguese Studies, em Santa Barbara, na
Universidade da Califórnia.
Cláudia de Sousa Dias
Setembro de 2011/7 de Junho de 2012
1Vide
Wikipedia
12 Comments:
Cláudia, gostei muito da resenha. Revela este livro que ainda há fantasmas do salazarismo muito parecidos com os fantasmas do período castrense na América Latina. No Brasil, o romance que melhor retrata o período é, disparado, o "Incidente em Antares", do Érico Veríssimo.
Ricardo o livro não foi escrito nas últimas décadas...trata-se de um clássico do século XX, escrito entre o início dos anos quarenta e acabado em 1968, mais ou menos na altura em que morre Salazar mas não a ditadura. A seguir tivemos
Marcelo Caetano.
Veríssimo só li ainda o Clarissa.
Querida Cláudia,
não vejo como se poderia emparelhar o Jorge de Sena, o Torga e o Hoelder com o nobilificado Saramago.
Cada qual no seu género. Saramago, definitivamente na prosa e nas alegorias. Jorge de Sena em prosa e em poesia. Helder, sem sombra de dúvida, na poesia. Torga, em poesia e em alguma prosa.
Saramago, porém, aquém, independentemente do modo.
Excelente resenha! Tenho grande vontade de ler Jorge de Sena, é uma das minhas inúmeras falhas!
Beijinhos,
Madalena
Grande figura, J de Sena. Admiro-o como figura maior das letras desde o tempo de universidade, desde que tive de comentar um dos 4 sonetos a Afrodite Anadiómena:
"Dentífona apriuna a veste iguana
de que se escalca auroma e tentavela.
Como superta e buritânea amela
se palquitonará transcêndia inana!"
Atrás deste texto estranho vieram os ensaios e tudo o resto; mais recentemente, redescobri as 'novas e velhas andanças do demónio', sempre um prazer e um estímulo á crítica.
Excelente texto, Cláudia!
obrigada, Bau!Está na altura de fazer outro post...
Este seu texto, tão bem trabalhado, foi descaradamente copiado por um "senhor" que sem escrúpulos se apropriou dele e o publicou como sendo seu, como aliás costuma fazer.
Desculpe a ousadia da intromissão, não me diz respeito, mas escandaliza-me tamanha falta de vergonha.
Continuação de boas leituras e parabéns pelo trabalho que apresenta no blog.
Boa tarde, Carmo.
Tem o link para essa publicação?
Gostaria muito de aceder.
CSD
https://www.goodreads.com/review/show/1053078214?ref=ru_lihp_cm_rv_20_mclk-up3246088477
Hum...estou a ver. Ele traduziu e copiou integralmente a primeira parte do meu texto. Não faz muita diferença, porque essa primeira parte resultou da pesquisa on-line que fiz para enquadrar a obra no seu contexto histórico, sendo que a maior parte dessa informação foi retirada da wikipedia. Apesar de tudo a construção frásica é minha, pelo que ele deveria ter posto o link para o meu blogue na review que fez como parte da bibliografia e webgrafia utilizada.
Eu tive de fazer essa pesquisa porque o tenho servia de base à discussão publica da obra numa sessão na Biblioteca Municipal de Famalicão.
No entanto a parte biográfica relativa ao Autor e a discussão da obra propriamente dita é construção minha. E nisso ele não mexeu.
Mas eu vou colocar o link para o meu post nos comentários à review do dito senhor.
CSD
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