“A Inexistência de Eva” de Filipa Leal ( Deriva)
Filipa Leal,
poeta, jornalista e, actualmente, colaboradora no programa “Câmara
Clara”,
dá-nos uma poesia minimalista mas na qual está contida uma
densíssima massa de ingredientes emocionais. Trata-se de uma poética
que fala do medo da perda, das palavras que ficam por dizer,
submersas na brancura imaculada de um mundo onde só a perfeição
tem lugar. As coisas importantes mas desestabilizadoras vindas do
mundo “lá fora” estão cuidadosamente embutidas nas entrelinhas,
apagadas pela aparente perfeição de um paraíso, belo, sem mácula
mas fortemente murado. Como tal, o leitor vê-se compelido a
descodificar as mensagens subliminares, cifradas, actividade que
torna a leitura muito mais exigente e absorvente, permitindo demarcar
a escrita desta jovem poeta da escrita banal.
Eva ou Lillith?
A obra A
Inexistência de
Eva, dá voz à alma de uma mulher
aparentemente submissa mas dotada de uma inquietude interior, que
poderá ter de pagar o preço da solidão e da incerteza para
preservar a identidade.
Ligada a esta “Eva” de
Filipa Leal, está também a simbologia da maçã,
directamente relacionada com o livro do Génesis. A Maçã representa
o Conhecimento. Conhecimento que é uma forma de Poder. E o desejo de
conhecimento e poder para conquista da independência – e da
liberdade – será talvez uma forma de rebeldia. Atitude que poderá
ser interpretada como uma espécie de insubordinação pela
insistência em abdicar da protecção daqueles que são os
guardiões do seu mundo perfeito e em romper o véu da imaculada
cegueira branca, vivida num Éden que é um sistema fechado. Um mundo
onde a felicidade assenta numa asséptica ignorância.
Uma Eva com alma de Lillith
vê-se, confrontada com a tentação de se deixar ficar
no casulo que vive. Para isso, terá de abdicar da possibilidade de
acesso ao Conhecimento, o que iria obrigá-la a sair dos limites do
mundo conhecido e a abdicar da própria identidade, ao ignorar o
mundo exterior em nome da segurança, que a impede de crescer e de
fazer as próprias escolhas. Ficar no Paraíso é deixar-se estar
dentro dos limites nas zona de conforto, que obriga a uma cega
obediência às convenções sociais, mesmo quando estas estão em
contradição com valores fundamentais como a ética, o direito ao
livre arbítrio, ao amor. A mesma obediência cega, sem espírito
crítico, implica abdicar da Sabedoria e da capacidade de discernir.
A capacidade de discernimento é também um elemento que serve de
guia a esta Eva, dividida entre duas forças opostas: a voz do medo e
a vontade de crescer. Essas mesmas forças formam um conjunto de
vozes sibilinas e anónimas, que lançam constantemente avisos à
laia de profecias, dirigidas a esta Eva.
Todo o conteúdo do livro
explica a ideia chave do livro do Génesis e desconstrói o mito do
Pecado Original. O medo de Eva em arriscar viver uma vida diferente é
instigado por uma destas vozes (as quais não temos a certeza se são
internas ou externas relativamente à personagem central da obra),
tendo em conta que o discurso é uma espécie de monólogo interno,
mas condicionado por entidades externas que influenciam o
comportamento desta Eva, a qual dá, por vezes ouvidos, à voz do
Medo, que lhe sussurra de forma insidiosa a sua suposta incapacidade
de sobreviver fora da protecção do Paraíso, da perfeita
tranquilidade do anonimato e da imaculada inexistência em que vive
mas sentindo-se atraída pela voz do Desejo, de crescer saber mais,
viver...
A presença constante da voz do medo visa destruir a sua
autoconfiança como se vê nos seguites excertos:
Perder-te-ás na
ausência da água do
rio.
e:
Assustar-te-á a
existência
de dia e
de noite.
Mas, contrariamente àquilo que afirma
a tradição bíblica, o impulso secreto da busca de conhecimento
insinua, do outro lado da consciência, que as consequências da
ignorância são muito mais nefastas do que os inconvenientes da
tomada de consciência despoletada pelo conhecimento.
Há um pássaro
que todas as
noites se
deita à tua porta
Como não sabes
a que horas anoitece,
nem o que
é anoitecer, se a
abrires,
esmagá-lo-ás.
O conflito pelo qual passa a “Eva”
desta obra, pode também ser interpretado como o risco implícito à
transposição para fora do círculo protector da família associado
à perda de um paradigma, num mundo desconhecido, onde as normas e
padrões de conduta social poderão ser radicalmente diferentes ou
simplesmente não existir.
Na maior parte dos micro poemas de
Filipa Leal, está sempre implícito o desejo de
libertação de uma prisão higiénica do mundo já desvendado.
Noutra dimensão, o texto dá-nos a
entender ser o Amor outra forma de conhecimento. E, no entender da
voz poética que o narra, o Amor encerra, em si próprio o mesmo
perigo que o veneno de uma víbora, como todo o conhecimento quando
usado para fins nefastos, ou uma experiência que não corre da
melhor forma.
Um dia tirou
da arca uma serpente
de barro,
amolecida pela humidade.
Juntou-lhe as
duas pontas e foi
Dobrando e
moldando o círculo.
Quando a
guardou, tinha já a
forma
De um coração.
Porque o conhecimento é também
transmitido através do amor ou da experiência de amar e do
sofrimento nela contido. Trata-se de conhecer o Bem o e Mal para
apurar a capacidade de distinguir, comparar, discernir.
O medo de abrir a porta ao
desconhecido, provém do receio de não mais poder regressar. Isto
por que ao Conhecimento nunca sucede a inocência. Daí os três
versos que se seguem:
Não há
serenidade para lá desta
sala.
Quando perceberes
que existe
O mundo, não
aceitarás a brancura.
A percepção da ideia do Mal implica,
por si só, que a concepção idealizada da Perfeição é a Suprema
Mentira.
Tradicionalmente, o Conhecimento é
visto como a Suprema Tentação por excelência, a tentativa do Homem
em igualar-se à Divindade, sobretudo nas civilizações antigas,
onde o conhecimento era restrito aos sacerdotes (como no antigo
Egipto, na Suméria, na Assírio-babilónia, na Judeia) que tinham
acesso às bibliotecas e controlavam o Saber, exercendo uma espécie
de contrapoder face à realeza. Na Bíblia, isto torna-se evidente,
sempre que os reis tentam sair da norma adaptando traços culturais
ou padrões de conduta importados de outras civilizações, casando
com mulheres estrangeiras ou permitindo a intrusão de costumes
vindos de fora, como é o caso do Rei Salomão o qual começou a ser
contestado quando o saber por si acumulado começou a ser um forte
concorrente à classe sacerdotal. Em A Inexistência
de Eva, somos confrontados com o olhar da
narradora através de uma outra face do mesmo prisma: a tentação
para esta “eva” é o comodismo oferecido por aqueles que lhe são
próximos.
Para Eva, o tempo esgota-se. O
deixar-se estar na segurança de um paraíso-prisão faz com que as
forças que impelem à ousadia de uma escolha diferente se escoem,
lenta e inexoravelmente. A maçã vai perdendo a cor à medida que
envelhece. O conhecimento adquirido torna-se obsoleto quando
estagnado. Tal como o amor, quando entra na rotina e não comporta o
mínimo sentimento de perigo. Da mesma forma, o saber que nunca é
questionado e tido como verdade absoluta e indesmentível.
Ambivalência na
escrita
A ambiguidade é uma constante na
escrita poética de Filipa Leal. Nunca chegamos
a saber ao certo que espécie de voz é aquela – se colectiva se
individual – que sussurra aos ouvidos de toas as Evas palavras como
estas:
Arrependes-te porque
sabes distinguir o Bem
do Mal.
Fora daqui, não
conseguirás fazê-lo.
Apesar de parecer estarmos diante de
uma contradição pois, como foi já foi dito, a experiência do
mundo exterior ajudará ao discernimento, a expressão pode
significar que a realidade tem muito mais nuances do que os
extremismos a preto e branco ou arquétipos puros do bem e do mal,
quando na verdade, estes dois elementos surgem em diferentes
proporções em cada situação e em cada ser individual. A mesma
expressão pode também significar que, fora dos limites, a Eva de
que aqui falamos poderá jamais conseguir regressar ao Paraíso pela
impossibilidade de voltar ao antigo estágio e regressar à vida
supostamente perfeita, depois de concluir assentar esta em pilares
muito pouco seguros.
Por último, temos a simbologia da
Árvore da Vida, doadora do conhecimento pela experiência que é a
sociedade:
A árvore
crescerá; dela cairão
folhas e flores,
mas não
conhecerás os frutos se
não
te deixares
cair”
Ou seja, um ser humano como esta Eva
é, também ele, produto da sociedade, do mundo exterior, não
podendo por isso também dela se isolar. Logo, os muros do Paraíso
são falsos e estão assentes em bases muito frágeis.
A Eva deste livro, no entanto, acaba
por deixar-se soterrar pelo medo e escolhe a falsa segurança,
reflectindo a escolha da esmagadora maioria das mulheres que optam
(ou porque não lhes são muitas vezes dadas as condições para
optar) por se deixarem ficar numa situação de dependência. Mas um
dia, a Mulher (Eva, a Vivente) poderá recuperar a coragem para tirar
a serpente do fundo da arca, no fundo do abismo. Poderá, no entanto,
ser tarde. O tempo passa. A vida resume-se à Inexistência de Eva.
Cláudia de Sousa Dias
Maio 2011 - 29.01.2012
6 Comments:
No princípio é o verbo... sempre.
Não conhecia.
pode sempre vê-la na "Câmara Clara" a declamar poesia.
Também não a conhecia, já não vejo o Câmara Clara há um bom tempo, mas agora ficou-me debaixo da mira!
Beijinhos, bom feriado!
Madalena
para ti também, que continuas a deliciar-nos com os teus petiscos!
Confesso que o único livro de poesia que possuo é da Florbela Espanca. Sou mais prosa :P
beijinhos e bom weekend!
Tens de abrir a porta à experiência da poesia...se quiseres passa de vez em quando no meu outro blogue, o rendez-vous, para veres a forma de expressão de outros poetas...
Beijo grande e bom fim de semana...
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